Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Notas sobre a criação de identidades particulares

A constatação da ambiguidade do romance tornado técnica de comunicação levou o sociólogo crítico da cultura a uma reflexão sobre a situação do gênero romanesco em face da realidade no momento antirrealista do romance, ao século vinte, a partir de uma cultura histórica difusa, vaga, sem pertença, uma cultura que não se individualiza sobre a qual se observa a extensão do mundo da comunicação social.

A supressão do objeto do romance por efeito cultural da preeminência da informação com o gênero reportagem e o predomínio da ciência leva à seguinte situação do romance do século vinte: para permanecer fiel à sua herança realista e continuar dizendo como são realmente as coisas, o romance tem que se afastar de um realismo voltado para reproduzir apenas a fachada e tem que promover o equívoco desta.

Dostoyevski, por exemplo, antecipando a transição da literatura do século vinte, tivera assimilado o sentimento de que o romance estava obrigado a romper com o positivo e apreensível e a assumir a representação da essência como das qualidades humanas, uma psicologia do caráter inteligível. Encontrando seu verdadeiro objeto na contraposição entre os homens vivos e as petrificadas (ou mumificadas) relações, a própria alienação se convertendo assim para o romance em meio artístico, como bem observou T. W. Adorno.

Estruturas comportamentais

Tendo em conta a coisificação como a outra face da desmitologização que se desenrola na base do processus de mediação próprio à sociedade de produção para o mercado, a crítica da cultura histórica mostra que a separação irreversível da ciência e da arte está em correlação com a coisificação do mundo. A análise da situação do romance leva, pois, à assertiva de que na transcendência estética se reflete o desencantamento do mundo, no sentido utópico de fim do mistério de envolvimento no mundo como apelo à aventura e ao reencontro de si mesmo e seu destino.

Daí o acentuado interesse no problema da individuação, pelo que a sociologia da literatura guarda interesse para os estudos em Direitos Humanos, corroborando o reconhecimento de que os seres humanos têm direitos iguais à sua própria identidade particular e personalidade.

Isto em maneira não conceitual, mas aproximando da história íntima, que cabe não confundir com os relatos de biografia dos personagens romanescos. A sociologia compreende a análise da correlação entre o mundo romanesco do personagem em suas relações com os objetos figurados, por um lado, e as transformações na vida social do século vinte por outro lado. Interesse de análise este provocado depois de Balzac e Stendhal devido à acentuada dificuldade reconhecida junto aos autores contemporâneos em descrever a biografia e a psicologia do personagem, sem limitar-se ao anedótico ou ao fato diverso.

Desse modo, os sociólogos buscaram verificar a hipótese de que a forma romanesca como estrutura das relações personagem/objetos no mundo do romance deve ser compreendida como sendo a mais imediatamente e a mais diretamente ligada às estruturas comportamentais de troca mercantil e de produção para o mercado, na medida em que admitem uma psicossociologia particular.

Uma unidade indivisível

Como veremos adiante, na pesquisa sobre o romance ao século vinte constatou-se a transforma¬ção da unidade estrutural personagem/objetos como levando não somente ao desaparecimento mais ou menos acentuado do personagem, mas, correlativamente, acentuando o reforço da autonomia dos objetos.

Constatação esta que logo faz lembrar a observação de que os mecanismos de auto-regulação da produção capitalista ao século vinte levaram ao deslocamento progressivo do que Lucien Goldmann chamou coeficiente de realidade do indivíduo, cuja autonomia e atividade foram transpostos para o objeto inerte.

Nada obstante, o ponto de vista da individuação mostra a criação de identidades particulares em arte literária romanesca. O procedimento narrativo com monólogo interior desenvolvido notadamente por Proust, por exemplo, que atende à exigência de suspensão da ordem objetiva espacio-temporal onde predomina a coisificação, permite ao narrador fundar um espaço interior todo seu.

Quer dizer, será exatamente pela arte do monólogo que o mundo vai sendo arrastado ao espaço interior assim fundado, e todo o externo se apresenta como um fragmento de interioridade: momento da corrente da consciência, desta forma resguardada em face da refutação pela ordem do mundo alheio. Tal a ‘técnica micrológica’ que T.W. Adorno interpreta ao observar que todo o primeiro livro de Proust – Combray – não é mais do que o desenvolvimento das dificuldades que tem uma criança para dormir quando a mãe bonita não lhe deu o beijo de boa noite.

Como se sabe, o termo ‘individuação’ foi adotado nas teorias metapsicológicas por influência de Schopenhauer, que fala do principium individuationis. Em geral, o conceito é utilizado em maneira abstrata para denotar o processus básico pelo qual uma pessoa se torna individual no sentido de afirmar-se uma unidade indivisível ou um ‘todo’.

Eficácia estética e emoções

O principium individuationis tornou-se objeto de estudo nas ciências sociais depois que, nos anos de 1920, os seguidores do culturalismo abstrato do filósofo Heinrich Rickert – dentre os quais Max Weber – insistiram no indivíduo e no individual como focos das significações, e estudaram o mundo histórico como essencialmente singular e individualizado nas condutas.

Em que pese o irrealismo dessa orientação abstrata, resultou que a afirmação do indivíduo como um todo verificando-se no mundo histórico ultrapassa os limites psicológicos dos estudos sobre desenvolvimento da personalidade, e surge como o princípio (abstrato) de individuação da cultura histórica.

Se, por sua vez, tomada do ponto de vista da filosofia da ciência, a individuação implica um método para atingir o real, a sociologia crítica da cultura em seu horizonte de disciplina científica reconhecerá o princípio de individuação da cultura histórica como essencialmente problemático, e tentará verificá-lo a partir da literatura, notadamente no gênero romanesco, onde tem foco privilegiado.

Sem embargo, em sua postura metodológica e visando compreender, ajuizar e classificar as obras com valor estético, o sociólogo toma o fato literário como não-reduzido às significações, sejam estas culturais, sociais, psicológicas.

A significação é frequentemente considerada como atributo de uma visão de mundo mais ou menos coerente. Se fosse tomada como único critério estético diminuiria os escritores, tornando-os insignificantes em face dos pensadores.

Por contra, em seu ponto de partida, o sociólogo toma o objeto literário como configuração de valor, na qual não é somente certo número de idéias que se encontram dotadas da máxima eficácia estética, mas também certo número de emoções.

Busca da realização e coisificação

Desta forma, ao se orientar para a apreensão do desejado em literatura, o sociólogo assume um ponto de vista interior ao fato literário, trazendo para o campo sociológico as experiências individuais indiretas e variadas de todos os subterfúgios, achados, disfarces, fugas, simulações etc.

Isto não quer dizer que os ‘ensinamentos’ sejam desprezados em favor da fantasia. Se as experiências literárias podem aportar alguma ‘lição’, importa que, afirmando sua identidade particular, personalidade e fé, os indivíduos reconhecem tais experiências indiretas porque em sua afetividade delas se ocupam.

Não que a identidade particular seja reduzida ao lúdico ou indiferente aos conteúdos e atividades. Os indivíduos desempenham papéis sociais variados em relação com os seus círculos sociais e com os demais, de tal sorte que, nessas situações concretas, as referidas experiências indiretas serão reconhecidas. Todavia, sua identidade particular não é fixa, posto que, da mesma maneira em que as coisas mudam de significado e os grupos mudam de função, os indivíduos mudam de caráter.

Em relação à sociologia da literatura do século 20, há um aprofundamento no individualismo para focar-se na própria individuation burguesa, na possibilidade mesma do que constitui ou diferencia um indivíduo de outro indivíduo em contexto de alienação, entendida esta última em sentido amplo como objetivação, e não estritamente como desrealização ou projeção para fora da realidade social.

Quer dizer, ao pesquisar a composição romanesca em sua ambiguidade como técnica de comunicação e em seu contexto de alienação, o sociólogo crítico da cultura observa que a busca romanesca da realização individual é colocada diante da coisificação, tomada esta não somente (a) como condição da ruptura libertadora – portanto condição negativa –, mas (b) como forma positiva, isto é, forma que torna objetivo o trauma subjetivo (torna objetiva a consciência desprovida de auto-afirmação).

Organização de impulsos somáticos

Tal o sentido positivo da coisificação para o problema da individuação em literatura romanesca: forma do caráter de mercadoria assumido pela relação entre os homens.

Daí a idealização de um retorno à memória da infância, que fixa um tempo perdido, quase uma tendência à introspecção, ao fechamento, de que nem Proust nem mesmo o freudismo escaparam.

Admite-se que a coisificação como objetivação do humano nas estruturas, correlaciona-se ao surgimento da subjetividade como aspiração aos valores, que, entretanto, por determinar-se na objetivação, resta em estado de mera aspiração, permanece vaga, correspondendo a uma cultura difusa, sem pertença, uma cultura que não se individualiza como foi dito.

Daí que, no plano mais elementar, a simples subjetividade apareça como pensamento letargado, perplexo, chegando à ataraxia, a qual não deve ser confundida às alienações mentais subjetivas, esquizofrenias ou delírios patogênicos em face da perda de contacto com a realidade, frequentemente provocados no envolvimento do indivíduo em alternativas irreconciliáveis para o sentimento de felicidade.

Embora haja domínio conexo entre a estética sociológica e as teorias metapsicológicas, o alcance crítico da sociologia literária sobressai.

T. W. Adorno equiparará na arte de avant-garde a caída da consciência (no sentido de redução da função representacional) uma vez desprovida de auto-afirmação em um conteúdo particular, como na ataraxia, à caída do sujeito individual como vivacidade e engenho – quer dizer, com a arte de Kafka trata-se de subtrair a análise do psiquismo, não para ficar junto ao sujeito da Psicologia, mas para confrontar o especificamente psicológico notado na concepção que ‘faz derivar o indivíduo a partir de impulsos amorfos e difusos‘, isto é faz derivar o Eu do Id (Isto), convertendo-o de entidade substancial, de ser em vigência do anímico, em ‘mero princípio de organização de impulsos somáticos‘, em engenho (astúcia, destreza, ardil).

Promessa humanista da civilização

Lembrará a imagem da mônada leibntziana fechada, sem janelas, mas que, na perspectiva artística, deve ser referida ao foco irradiador da narrativa de Kafka, por exemplo, ou, no dizer mesmo de T. W. Adorno: ‘A mônada sem janelas prova ser lanterna mágica, mãe de todas as imagens, como em Proust e em Joyce’ (Ver: Adorno, T.W.: Prismas, tradução Manuel Sacristán, Barcelona, Arial, 1962).

Desta forma, se descobre em Proust o exemplo de uma maneira de proceder artístico para o autor literário evitar a pretensão de que sabe exatamente ‘como foi’, a ‘pretensão de conhecimento’, o gesto e o tom do ‘foi assim’, que o romance deve excluir.

Na abordagem crítica da cultura a ação dramática do romance está envolvida em uma técnica da ilusão que reserva previamente ao leitor o papel limitado de realizar algo já realizado e participar assim do caráter ilusório do conteúdo representado – ainda que esse caráter ilusório vá sendo suprimido na história literária conforme se passe de Flaubert para Proust, Gide, Thomas Mann ou Musil e desemboque no que T.W. Adorno chama ‘reabsorção da distância estética’.

Todavia, a análise crítica da cultura não é desprovida de interesse específico, já que se trata de verificar a situação do romance em face da realidade no momento antirrealista do romance. Nada obstante, desse modo vem a ser favorecida a prevalência da relação com o leitor por fora e em detrimento da união autor-personagem-leitor, haja vista a asserção de que a alienação se converte em meio artístico para um tipo de romance cujo impulso é decifrar o enigma da vida externa, exigindo pôr em relevo além da fantasia a ambigüidade do romance como técnica de comunicação.

Seja como for, a sociologia da literatura e do gênero romanesco se desenvolve a luz da promessa humanista da civilização, que afirma o humano como incluindo em si, juntamente com a contradição da coisificação, também a coisificação mesma.

Fatiga do simbolismo social

Sem embargo, a relativização das identidades particulares acentua-se conforme a sociologia literária aprofunda no ponto de vista crítico da mencionada reabsorção da distância estética, e, no seu descontínuo amontoado de imagens, põe em relevo a arte da montage no contexto de alienação predominante ao século 20.

Se até Flaubert o romance atribuía uma identidade com perfil ao reservar ao leitor o papel já limitado de participar do caráter ilusório do conteúdo representado, torna-se indiscutível que a compreensão estético-sociológica do surrealismo e da literatura de avant-garde busca a montage de um espaço contemporâneo fissurado.

Referida na leitura proposta por Ernst Bloch para as obras romanescas de Julien Green, Marcel Proust, James Joyce, a arte poética da montage descreve um Eu cada vez menos perfilado, menos visível ao olho humano, mais minúsculo como caráter inteligível, em correspondência não só ao mundo desencantado da comunicação social, mas à sua figura de transição histórica, como mundo decaído da burguesia e do individualismo liberal.

Com efeito, nas análises desenvolvidas por Ernst Bloch, que é um pensador da utopia positiva, com suas categorias crítico-históricas em molde teológico imbricadas na efetividade da interpenetração do arcaico e do histórico na consciência coletiva, a reflexão da criação poética começa pela constatação do vazio cultural na situação da distração disseminada com a modernização acelerada nos anos 20.

Deste modo, caracteriza-se em reflexão de filosofia estética o que os sociólogos chamam fatiga do simbolismo social e que para esse autor, atento à dicotomia das formas de vida rural-tradicional e urbano-moderna, exige constatar a ocorrência de símbolos esotéricos, fechados, obscuros.

Sentimentos de medo e piedade

Por este tornarem-se opacos dos símbolos sociais, observa-se que, com a arte de Kafka, ressurge em feitio estranho a diferenciação e a confusão entre um mundo absorvido na realidade histórica, reflexo de antigos interditos que afloram à superfície nos períodos de decadência, por um lado e, por outro lado, um mundo até então situado no mais-além – referido aos romances de como Le Chateau ou Le Procés, e destacado na forma durável de ordens estamentais estranhas e longínquas.

Para Ernst Bloch, essa distinção em dois níveis na realidade histórica da consciência coletiva no período da decadência da cultura burguesa, revela respectivamente que raramente neste mundo deste tempo os sentimentos do medo e da piedade foram tão estritamente reaproximados, sendo a esta confusão que se buscam os elementos de decomposição, que são ao mesmo tempo os elementos do sonho, e aos quais se refere a compreensão poético-sociológica do surrealismo e da literatura de avant-garde, como configurações de um espaço contemporâneo fissurado.

Esse esforço poético pode ser bem notado em escritores como Julien Green – elaborando a construção onírica da vida sufocante e morna que se conserva de parte – ou Marcel Proust, elaborando a construção onírica da memória na hora ampliada da agonia como o objetivo de toda uma vida; ou ainda, James Joyce, elaborando por sua vez a construção onírica da montage, onde se reencontram as ruínas do presente.

Não se deve deixar de notar, entretanto que, por detrás dos afundamentos recortados nessas construções oníricas há o envolvimento pela obscuridade do vazio cultural no período de decadência da cultura liberal e do individualismo – de que a confusão dos sentimentos de medo e piedade dá repercussão.

Inumeráveis Eu

De acordo com os comentários de Ernst Bloch, o espaço contemporâneo fissurado que é pintado nas metáforas de Julien Green corresponde a um Eu de quem o medo se apossou e que é torturado por seus sonhos. Todavia, é também o espaço de uma ação desprovida (sem caráter moral), tornada inteiramente reduzida a indivíduos privados de toda a comunidade, seres humanos brutos como as bestas que, porém, se tornam grandes como os afrescos ou como as paisagens, pois cada um dentre eles representa uma paixão.

Então, só há paixões solitárias, só há, seduzindo, o destino disfarçado desta paixão. Não há saída alguma. A sedução, o enfeitiçamento é compacto e suga inteiramente seus suportes humanos. Nesse espaço contemporâneo pintado poeticamente por Julien Green reina um odor de folhas mortas, cheira a cômodos trancados cujos ocupantes parecem jamais sair.

Quanto ao espaço contemporâneo fissurado em Proust, em virtude da finesse e da micrologia em sua mirada que a tudo recolhe, parece mais saliente o que, em alternativa à imagem filmográfica adorniana da lanterna mágica, Ernst Bloch chama sonho no objeto, designando a qualidade poética ou o foco irradiador das imagens e das metáforas literárias.

Em Proust, compõe-se um espaço cujas imagens só se desdobram aprés-coup, em seus mosaicos não-euclidianos da agonia; um espaço curvo acima de um Eu que vê decorrer a sua própria vida e a vida exterior; um Eu que apreende com extrema acuidade o que está perdido; que põe por escrito a caída de um mundo em declínio: caleidoscópio de grandes damas, belos senhores, aventureiros: les héros du déluge.

Tudo parece real nesse espaço proustiano e tudo contém os interstícios onde se aninham as metáforas. Destaca Ernst Bloch que são metáforas tiradas de esferas decaídas, sejam estas as mesas dos restaurantes sejam os planetas como o sol – designado a suntuosa e milenar múmia desembaraçada de todas as suas ataduras – nas quais a regra da vida social virou liturgia.

Nesse espaço contemporâneo proustiano, a personalidade é desagregada em ‘inumeráveis Eu’ que não sabem coisa alguma uns dos outros, mas cujos mundos se recortam.

Resgate onírico

Quanto ao comentário de Ernst Bloch sobre o espaço contemporâneo fissurado em Joyce, sobressai de início a imagem surrealista de uma boca sem Eu, em meio à decomposição que atinge a própria língua, desprovida esta de toda a forma pronta e acabada, logo, aberta e confusa.

As palavras estão em disfunções, perderam sua inserção ao serviço do sentido. O que de ordinário fala, o suposto sujeito que faz de narrador, brinca com as palavras em momentos de fatiga, nos silêncios da conversação ou no falar sem dizer dos seres sonhadores e instáveis que povoam a suposta narrativa.

Segundo Ernst Bloch, deve-se apreciar a montage no Ulysse, de Joyce, como um work in progress: simultaneamente atelier e criação. Atelier que, porém, não está acima, mas também faz parte da decomposição.

Vale dizer, a língua observa as regras gramaticais, mas não segue em absoluto as regras da lógica do seu tempo. Na montage no Ulysse de Joyce a língua tanto se recorta como um copo quebrado em pedaços, tanto se cristaliza como em um caleidoscópio em movimento, ou circunda estreitando a ação no feitio das cintas.

A compreensão que se tem da língua na narrativa de Joyce é de que ela deve ter sua origem na relação primária, sonora e imaginada; que ela deve ter seu sentido na liberação e na captação da vida inconsciente. É isto o que desperta a língua para a vida: as palavras recobrindo seu valor pré-lógico.

 Sem dúvida, como já remarcou Georges Lukacs em seus ensaios sobre Thomas Mann, a atitude de Ernst Bloch para com a obra de James Joyce é de apreciação admirada. Tanto é assim que, priorizando em arte o resgate onírico da antiga cultura legada do Gótico Tardio por via das insurgências campesinas do século 16, bem como o da Escolástica medieval, Ernst Bloch minimiza qualquer postura prévia na leitura de Joyce.

Linguagem nua e impudica

Deste ponto de vista, se quisermos compreender o sintoma e o símbolo que se considera como representando a obra joyceana, pouco importa saber se Joyce obteve êxito, se a sua empresa de embrutecimento dos personagens tivera jamais alcançado o enlevo do poema; pouco importa se em maneira geral é Joyce um autor sério ou o mercador de uma não-idéia impensável, nebulosa da rememoração burguesa da terra após a morte da terra, após uma catástrofe cósmica.

Segundo Ernst Bloch, tampouco é importante saber se Ulysse confirma ao menos a lógica de um mundo decaído e opaco, mesmo sem projetar no porvir a luz de uma reviravolta transparente.

Com certeza, o estilo de Joyce em Ulysse corresponde a um mundo sem controle, e acolhe como fermento a desagregação que se compõe de início como a do Eu no monólogo interior, e depois, como a desagregação da coerência burguesa dos objetos.

Aliás, na apreciação crítica por Ernst Bloch, deve-se sublinhar a particularidade do monólogo em Joyce, que não mais deixa intacta e reconhecível a pessoa na permanência do Eu.

Quer dizer, nas anteriores composições do monólogo em outros autores a pessoa conservava ainda muitas coerências de superfície perfeitamente conscientes, muitas coberturas morais. Em Joyce pelo contrário: aqui a pessoa deixou de ter inclusive o Eu como testemunha.

O corpo daquele que fala quase desapareceu, o corpo que encerrava a linguagem, liberando assim um dilúvio anônimo. Trata-se de uma linguagem em tal torrente nua e impudica, sem retoques e sem barragens que todos os naturalismos de antes se reduzem em comparação com uma cerimônia de Corte.

Dinâmica furtiva de expressão

Assim, como jatos de vapor re-ascendentes do inconsciente, nascem nessa linguagem liberada as criações de palavras dementes, preenchendo os abissais, os tesouros sem dono, os abismos dos seres ordinários habitantes da obra joyceana: a arquitetura de um romantismo que pela primeira vez consegue reunir as maneiras de dizer múltiplas em uma só.

O lugar e objeto da ação em Ulysse é uma jornada na vida de pessoas sem importância, ação tão fluida esta cujo lugar-objeto bem poderia ser não uma, porém muito mais do que mil e uma jornadas (ver a versão ao português, dos anos 60, por Antônio Houaiss).

A obscenidade, a crônica, o contar estórias, a escolástica, o magazine, a gíria, Freud, Bérgson, o Egito, a árvore, o homem, a economia, a nuvem se afundam e reaparecem nesse rio de imagens, se misturam, se interpenetram em uma desordem que, não obstante o caos, desde então busca sua forma não mais em Prometeu, porém, sim, em Proteu, o embaralhador da natureza em fermentação.

Traçando assim as grandes linhas inscritas na composição do Ulysse de Joyce, Ernst Bloch observa que a montage do espaço contemporâneo fissurado, por mais artificial que seja, ou se transforma em uma grande migração dos objetos eles mesmos ou vem a ser a mera sombra de uma metamorfose artística, o que se consegue compondo seres voluntariamente ordinários e indiferentes, mas seres completos, para quem coisa alguma é estranha; que, sem vírgula, falam ao infinito, e, sem conhecimento, fazem digressões a perder de vista.

Tal montage compreende no simbolismo decomposto e sem coerência a distinção de um mundo absorvido e de um mundo que até a modernização e o crescimento industrial fora situado no mais-além, ambos ressurgindo em feitio estranho na vida deste mundo deste tempo.

Se essa arte dissolve o Eu como identificação traz em compensação uma dinâmica furtiva de expressão por analogia do gênero épico, que está a oscilar: sendo descendente para a desordem no mesmo feitio em que se eleva de soslaio.

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Sociólogo, Rio de Janeiro, RJ