Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Parceiros da ditadura

As pessoas ligavam para a Rádio JB e algumas, em irada e desafiadora cobrança, questionavam a cobertura das eleições de 1982. ‘Como vocês estão dando esses resultados tão diferentes da Globo? Onde arranjaram números tão absurdos?’ Sempre que possível, eu mesmo ia ao telefone e dizia não saber como e o que a TV Globo colocava no ar. Garantia, no entanto, que a Rádio JB, como de hábito, apurava bem as suas informações e, por isto, suas notícias eram exatas e dadas com muita seriedade. ‘Nossos números são exatamente aqueles dos mapas liberados pelos juízes eleitorais, em cada Junta Apuradora.’ E, desde então, sempre que me perguntavam, respondia que nunca deixei de acreditar no trabalho dos profissionais da TV Globo. Não queria fazer prejulgamento, mas hoje um livro recém-lançado – Jornal Nacional – A noticia faz historia – facilita a compreensão dos fatos.

Por isto, agora, 22 anos depois, posso garantir que, pelo menos no que se refere às eleições de 1982 e ao Caso Proconsult, este livro sobre os 35 anos do Jornal Nacional é uma obra de ficção política. Tenta, inutilmente, retocar uma imagem que nunca mais poderá ser mudada: a TV Globo fez mesmo o jogo e foi sempre a parceira preferida da ditadura, até porque isto era conveniente e interessante a ambas.

Fui para a Rádio Jornal do Brasil por minha experiência em coberturas eleitorais para organizar e planejar um trabalho delicado. Afinal, estávamos ainda em pleno regime autoritário e aquela seria, pelo voto direto, a primeira eleição para governadores de estado. Naquelas históricas semanas e sem ter a mínima intenção, a minha voz ficou tão conhecida no Rio de Janeiro que, mesmo meses depois das eleições, as pessoas me reconheciam por ela, até no simples ato de pedir uma camisa em uma loja de roupas.

E não era para menos. Lia boletins sobre a marcha das eleições, a cada hora, durante dias e dias seguidos, falando pelo poderoso microfone da austera e respeitada Rádio Jornal do Brasil. Foi por acaso. Eu, Randolfo de Souza, Ricardo Bueno e outros companheiros somávamos e ponderávamos os votos passados por uma equipe de repórteres. Procópio Mineiro checava tudo e acompanhava atentamente a cobertura. Eram tantos os cálculos, projeções e análises eleitorais que, em determinado momento, não dava mais tempo para redigir os textos e lá fui eu dar os resultados, em lugar dos locutores. De certa maneira, isto foi um despropósito, tal a qualidade e a beleza das vozes que a Rádio JB dispunha. Mas, da ditadura do relógio, nem a JB poderia escapar.

A vivência dos fatos sobre as eleições de 1982 permite-me fazer críticas severas ao que está no livro Jornal Nacional – A noticia faz historia,. Eis a versão deste repórter sobre alguns pontos importantes ali assinalados:

1. Afirma-se que a Rádio JB, por ser rádio, trabalhava mais depressa que a televisão, até porque a exuberante TV Globo fez economia e passou a usar os dados do jornal. Grande novidade, por certo, quanto à rapidez na informação. Rádio é o veículo mais instantâneo, abrangente e merecedor de crédito, na mídia, mesmo agora com a veloz (e nem sempre confiável) internet.

É falsa, no entanto, a afirmação de que a Rádio JB recolhia somente dados das eleições majoritárias (governador e senador). Tínhamos todos os números mas, quanto aos votos para deputados (federais e estaduais), a JB divulgava inicialmente apenas os votos de bancada, para depois anunciar a posição individual dos candidatos.

Sem o total de votos de bancada, não se pode calcular efetivamente quem será eleito por partido. Não sabiam disto?

2. No livro, acusa-se a Rádio JB de tentar subornar a Proconsult para conseguir resultados por antecipação. Aqui, dois reparos inquestionáveis. Primeiro, mais uma vez a TV Globo assume a posição de porta-voz dos arapongas (nunca perdeu o vício, pois continua divulgando conversas telefônicas misteriosas e ouvindo fontes mais do que suspeitas que, por exemplo, divulgam depoimentos de ex-mulheres de políticos. Alguém já ouviu mulher ou marido falando bem do ex-companheiro?). O fato sobre a Proconsult: esta foi uma armação da Polícia Federal, certamente por ordem dos órgãos de segurança. Abriu inquérito policial e, durante o depoimento que fui obrigado a prestar, houve a sórdida tentativa do delegado da PF de incriminar-me, o que foi prontamente repelido. Acho que o delegado ficou tão atordoado ao ver a minha carteira da OAB/RJ que interrompeu o interrogatório e nunca mais me chamou.

E, segundo reparo a fazer: eu e o Procópio Mineiro tivemos, sim, contato com o Sr. Arcádio Vieira, mas para dizer a ele, como representante da Proconsult, que uma fonte nos havia informado que a Proconsult teria feito acordo com a TV Globo (e todo o Sistema Globo) para passar em primeira mão os números da apuração eleitoral. A propósito, a quantia a que o livro se refere é, talvez não por coincidência, a mesma a que o delegado federal se referia, ao tentar acusar-me levianamente, e exatamente a mesma, também, que a nossa fonte apontou como o possível acerto entre a TV Globo e a Proconsult. Tanta coincidência é intrigante. Principalmente a TV Globo, agora, usar versão e quantia que ouvi da boca do delegado submisso aos órgãos de segurança e informação.

3. A questão principal não é apontar a Proconsult e o foco, em conseqüência, não deveria ser no Arcádio, até porque não era ele o dono da empresa (havia gente mais poderosa por trás). Além disto, de propósito, fez-se toda esta encenação para não deixar exposto o principal articulador da tentativa de estelionato eleitoral: o Serviço Nacional de Informações (SNI). Agora, 22 anos depois, é inevitável citar o SNI, até em função do brilhante trabalho do Elio Gaspari, tão divulgado pelo próprio Sistema Globo. Está lá, nos livros do Elio, uma condenação final do Golbery ao SNI, criticado pelo general por se meter naquilo que não conhecia (como fraudar resultados eleitorais) e de uma forma tão desastrada. Há frases textuais a respeito, tiradas do próprio arquivo de Golbery.

4. Infelizmente, não foi apenas a TV Globo que buscou uma nova versão para o Caso Proconsult e as interferências do SNI nas eleições que abririam o caminho para a volta da democracia. A Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro criou na época uma CPI sobre o assunto. Na presidência da Casa, um conhecido parlamentar do PT. Como alvo e na berlinda, o Sr. Moreira Franco, que seria o principal beneficiário da tentativa de fraude. Nenhum partido levou o assunto adiante. Todos, inclusive o PDT, jogaram uma pá de cal, arquivando-se tal indesejável apuração.

Desta CPI consta, no entanto, um longo depoimento meu em que, há mais de duas décadas, denunciava o que recentemente o Elio Gaspari mostrou em sua criteriosa obra e a TV Globo não conseguiu mais esconder. E mais: o SNI agia de olho nas eleições presidenciais que viriam, em quatro anos. Mas que os órgãos de segurança conseguiram manchar, ajudando o regime autoritário a realizar uma escolha indireta. E, mais tarde, na sucessão presidencial, novamente a TV Globo exerceu triste papel, ao manipular o noticiário sobre o debate eleitoral televisivo.

Só uma última questão: livro de 400 páginas, da melhor qualidade gráfica, a apenas R$ 28?

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Repórter que denunciou o Caso Parasar (em 68) e o Caso Proconsult (82)