Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Guerra é ruim, mas sem repórter é pior – Parte 1


1. Introdução


O presente trabalho é resultado de monografia de conclusão do Curso de Jornalismo do Departamento de Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, apresentada em julho de 2009, sob orientação da professora Rosa Nívea Pedroso.


O título desse trabalho foi extraído do livro-reportagem O Gosto da Guerra, escrito por José Hamilton Ribeiro. O repórter usou a frase ‘Guerra é ruim, mas sem repórter é pior’ para dar o nome ao primeiro capítulo da segunda parte da obra. A sentença, apesar de curta, diz muito a respeito da guerra, mas diz mais ainda sobre a importância do jornalismo para a sociedade. Já que os repórteres não podem evitar que as guerras ocorram, que ao menos eles exponham, tragam à tona, todas mazelas, todas as consequências para a população civil e para os próprios soldados que um conflito armado acarreta.


Escolhemos fazer o trabalho tendo O Gosto da Guerra como objeto de análise, por três motivos principais. O primeiro deles é o gosto que temos pela literatura e também pelo jornalismo, desse modo nada melhor para juntar as duas coisas do que um livro-reportagem. Na nossa opinião, o livro-reportagem representa uma das poucas oportunidades que o jornalista tem para abordar uma história de forma ampla e aprofundada, sem precisar se preocupar com a quantidade de linhas que serão escritas e nem mesmo com o prazo de entrega. Além disso, esse tipo de veículo permite ao seu autor uma maior liberdade na forma como a história será contada e na linguagem usada. O segundo motivo é o interesse que sempre tivemos pela Guerra do Vietnã. Esse interesse foi despertado pelos vários filmes que tratam do conflito e de suas consequências, entre eles se destacam: Platoon, de Oliver Stone; Appocalypse Now, de Francis Ford Coppola e Corações e Mentes, o clássico documentário de Peter Davis. O terceiro motivo, e o que mais nos chamou a atenção para O Gosto da Guerra, foi o acidente sofrido por José Hamilton enquanto ele acompanhava uma operação do exército norte-americano, e a forma como este fato e suas consequências foram relatados na obra.


José Hamilton Ribeiro talvez não seja o mais famoso, mas com certeza é um dos mais importantes e premiados jornalistas brasileiros. Ganhador de sete prêmios Esso (é o maior vencedor do prêmio até hoje), ele é um repórter à moda antiga, daqueles que acreditam que a reportagem deve ser feita fora da redação, onde a história está acontecendo, onde os fatos estão se sucedendo, ao invés de ficar sentado apurando pelo telefone ou pesquisando pela internet, como acontece cada vez mais nos dias de hoje. E foi sendo fiel a essa corrente que ele sofreu o acidente com a mina terrestre, e acabou ficando sem o seu pé esquerdo. Mas apesar de ter sofrido muito, e de ter penado por vários dias em um hospital do exército norte-americano no Vietnã, ele não se resignou. O saldo de sua cobertura da guerra foi um livro-reportagem que se tornou um grande clássico, fundamental para qualquer jornalista ou estudante de jornalismo, e também para aqueles que querem saber do que realmente uma guerra é feita.


O problema de pesquisa deste trabalho é analisar como foi feita a apuração jornalística que levou à produção do livro-reportagem O Gosto da Guerra, escrito pelo jornalista José Hamilton Ribeiro. Para realizar essa análise, foi usado o método da análise de conteúdo. Para isso, dividimos o estudo em sete capítulos que serão listados e justificados a seguir.


O capítulo de Introdução tem como objetivo justificar a escolha do obra e de seu autor, e esclarecer a sua importância não só para nós, como também para o campo jornalístico. Explicamos também o interesse que temos pelo assunto guerra do Vietnã, e pelos livros-reportagem.


No segundo capítulo, chamado de ‘O sentido do jornalismo’, procuramos mostrar as principais características do jornalismo e sua importância dentro de uma sociedade democrática. Na sequência falamos sobre a reportagem, seus tipos, suas características, suas fontes e sua relevância para o jornalismo. Também tratamos do livro-reportagem, da relação atávica que o jornalismo tem com a literatura e de como isso se manifestou na experiência do new journalism. Para finalizar falamos a respeito da lacuna que o livro-reportagem preenche dentro do universo jornalístico. Um universo onde cada vez mais o imediatismo vem antes da qualidade e do aprofundamento.


No terceiro capítulo, chamado de ‘Trabalho de campo e reportagem’ procuramos mostrar a importância que um bom trabalho de apuração jornalística tem para a reportagem. Para ilustrar, usamos a relação que alguns autores tem feito entre a etnografia, realizada pelos antropólogos, e o trabalho de campo realizado pelos jornalistas. Casos clássicos como o de João do Rio, que consagrou a figura do jornalista flaneur, no Brasil, e de Gay Talese, que criou a expressão ‘jornalista serendipitoso’, também foram citados. Por fim, falamos da necessidade que o jornalista tem de sair da redação, de estar disposto a ‘sujar os sapatos’ para ir atrás dos fatos. Em tempos de internet isso é, infelizmente, cada vez mais raro.


No quarto capítulo, intitulado ‘A Guerra do Vietnã’ começamos falando sobre as características geográficas do Vietnã e também sobre a origem de seu povo. Na sequência tratamos do histórico de guerras e invasões sofridas pelos vietnamitas antes do conflito com os norte-americanos. Para terminar, falamos da guerra com os EUA, seus motivos, suas origens e suas consequências. O objetivo desse capítulo foi mostrar um pouco do histórico guerreiro dos vietnamitas, uma nação que desde sua origem esteve acostumada a lutar com invasores estrangeiros. Essa contextualização ajuda a entender alguns dos motivos que os levaram a vencer o exército mais poderoso do mundo.


O quinto capítulo recebeu o nome de ‘Metodologia de pesquisa’, e nele foi explicado o processo de análise de conteúdo, quais são suas etapas e características principais. Para finalizar, falamos a respeito das categorias temáticas que selecionamos para analisar O Gosto da Guerra, quais elas eram e o porquê da sua escolha.


No sexto capítulo, intitulado de ‘Um repórter disposto a colocar a própria vida em risco’, é onde fazemos a análise do livro propriamente dita. Usando como base as categorias temáticas escolhidas, analisamos a forma como José Hamilton realizou o seu trabalho de reportagem, a maneira como ele encarou a guerra, os personagens que o repórter destacou e as suas opiniões a respeito do conflito armado. Para ilustrar tudo isso, extraímos trechos de O Gosto da Guerra que nos pareceram além de relevantes, representativos do caráter da obra.


No capítulo de Conclusão procuramos mostrar, de forma resumida, o que conseguimos aprender ao longo da feitura desse trabalho. Para isso, falamos a respeito da importância da cobertura jornalística dentro de uma guerra, da forma como José Hamilton realizou a apuração jornalística que o levou à construção do livro, da importância do livro-reportagem no universo jornalístico atual e da relevância do jornalismo no mundo atual.


 


2. Sentido do jornalismo


O jornalismo possui, dentro dos segmentos da comunicação de massa, o papel fundamental de informar e orientar. Enquanto o entretenimento busca divertir, entreter o público, e a propaganda tenta persuadir o público a comprar os produtos que estão sendo anunciados, o jornalismo se concentra em apurar, registrar e depois divulgar os fatos ocorridos para esse mesmo público. O que alimenta essa função do jornalismo são as ocorrências sociais sobre as quais ele se debruça para, a partir delas, manter a sua audiência por dentro dos acontecimentos, permitindo então que ela se mantenha orientada diante da enxurrada de fatos que ocorrem diariamente na sociedade atual.


O teórico alemão Otto Groth (apud LIMA 1993, p. 20-21) aponta quatro características fundamentais dos periódicos, que vem a ser os veículos nos quais o jornalismo exerce a sua função: universalidade (abordagem feita pelos periódicos dos mais diversos campos do conhecimento humano); atualidade (o fato reportado deve apresentar uma relação com o momento presente); periodicidade (repetição constante no tempo das diferentes edições de um periódico); difusão coletiva (os periódicos circulam por diferentes grupos sociais que são distribuídos cultural, econômica e geograficamente de modo heterogêneo).


No seu livro Páginas Ampliadas, Edvaldo Pereira Lima resume o fenômeno jornalístico da seguinte forma:




Assim, o jornalismo serve ao propósito de informar e orientar sobre fatos da, mantendo um vínculo de contato periódico com a audiência, que é dispersa geográfica e socialmente, tratando de temas que dizem respeito aos mais variados campos do saber humano. (1993, p. 21)


Todo o conjunto formado pelas funções, reais e aparentes, desempenhadas pelo jornalismo, é materializado através das mensagens que são articuladas jornalisticamente. Ou seja, essas mensagens obedecem certos preceitos que são próprios da narrativa jornalística que, com o passar do tempo, foi desenvolvendo uma maneira peculiar de se expressar. Para entender esse fenômeno, devemos levar em conta que com a intenção de universalizar o conteúdo das informações, os jornalistas tiveram de desenvolver uma maneira particular de traduzir as ocorrências para um público que é heterogêneo e disperso.


Devido a essa necessidade, o jornalismo contemporâneo, caracterizado pela produção em larga escala, estandardizada, que começou a nascer no século XIX, com o surgimento das agências de notícias e das cadeias de jornais, na Europa e nos Estados Unidos, encontrou no elemento notícia a sua fórmula básica de comunicar. A definição de notícia e as suas diferenças com relação à reportagem serão abordados com maior profundidade na sequência deste capítulo.


Para suprir a necessidade do ser humano de receber notícias, de ser informado, as sociedades criaram esse sistema chamado jornalismo. Por isso, segundo Kovach e Rosenstiel, nos preocupamos com a natureza das notícias e do jornalismo de que dispomos. Afinal de contas, isso tudo influencia nossa qualidade de vida, os nossos pensamentos e a nossa cultura.


Na seqüência, os autores destacam os elementos essenciais ao bom jornalismo e a sua importância dentro de um estado democrático. O jornalismo fornece a uma determinada cultura um elemento único, muito especial que é a informação confiável, independente, compreensível e precisa, sendo todos esses atributos fundamentais para a liberdade dos cidadãos. A finalidade do jornalismo, de acordo com Kovach e Roesenstiel, é fornecer às pessoas informação, para que assim elas possam ser livres e tenham capacidade de se autogovernar.


Para que isso seja possível, os autores enumeraram nove pontos fundamentais para o exercício do bom jornalismo: a primeira obrigação do jornalismo é com a verdade; sua primeira lealdade é com os cidadãos; sua essência é a disciplina da verificação; seus praticantes devem manter independência daqueles a quem cobrem; o jornalismo deve ser um monitor independente do poder; o jornalismo deve abrir espaço para a crítica e o compromisso público; o jornalismo deve empenhar-se para apresentar o que é significativo de forma interessante e relevante; o jornalismo deve apresentar as notícias de forma compreensível e proporcional; os jornalistas devem ser livres para trabalhar de acordo com sua consciência (KOVACH ; ROSENSTIEL, p. 22-23).


A imprensa contribui na definição da identidade das comunidades, ajuda as pessoas a criarem uma linguagem comum e a compartilhar conhecimentos baseados na realidade que as cerca. O jornalismo também ajuda a comunidade a identificar os seus objetivos, definir quem são os seus heróis e os seus vilões. É por isso que os autores consideram o conceito de jornalismo e o conceito de criação de uma comunidade e de uma sociedade democrática, diretamente ligados.


Voltando a falar da necessidade que as pessoas têm de receber informação, os autores citam o chamado Instinto de Percepção. Segundo Kovach e Rosenstiel (2004, p. 36), elas necessitam saber o que acontece além de sua própria experiência, precisam estar a par dos fatos que estão ocorrendo do outro lado do país e do mundo. Conhecer o desconhecido lhes permite administrar e planejar suas vidas, lhes dá segurança.


A notícia é o elemento da comunicação que nos informa os fatos em andamento, o que está acontecendo no mundo exterior, quais são seus temas e suas figuras. Quanto maior for a tendência de uma sociedade dispor de notícias e informações, mais democrática ela será. As sociedades, à medida que se tornavam mais democráticas, acabavam se inclinando na direção de um pré-jornalismo. ‘A democracia mais antiga, a grega, se apoiava em um jornalismo oral, no mercado de Atenas, no qual ‘tudo que era importante para o interesse público ficava ao ar livre’, escreve o professor de jornalismo John Hohenberg (apud KOVACH ; ROSENSTIEL, 2004, p. 36).


2.1 A reportagem


Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari, na introdução de seu livro Técnica de Reportagem, destacam o fato de a reportagem ser um gênero privilegiado dentro do jornalismo. Segundo os autores, nenhum outro formato jornalístico consegue restituir os fatos com tanta veracidade para o leitor. ‘Seja no jornal nosso de cada dia, na imprensa não-cotidiana ou na televisão, ela se afirma como o lugar por excelência da narração jornalística’ (SODRÉ ; FERRARI, 1986, p. 9).


A reportagem se consolidou dentro da prática jornalística a partir dos anos 1920 com o surgimento das revistas semanais de informação geral e do chamado jornalismo interpretativo. Isso se deu, segundo Edvaldo Pereira Lima, devido ao dilema em que a imprensa norte-americana se viu no final da década de 1910. ‘Já existe o telégrafo, as agências noticiosas estão a pleno vapor, o volume de informações com que o leitor norte-americano é brindado pelos jornais é considerável, mas mesmo assim é surpreendido com a eclosão da Primeira Guerra Mundial’ (LIMA, 1993, p. 24). Percebeu-se, então, que os veículos estavam muito atrelados aos fatos, ao mero relato das ocorrências, no entanto eram incapazes de interligá-los de uma maneira que mostrasse ao público o sentido e o rumo que os acontecimentos estavam tomando.


Foi a partir da percepção dessa deficiência que a sociedade passou a exigir um tratamento informativo mais qualificado. E foi para suprir essa necessidade que surgiu, nos Estados Unidos, a revista Time, voltada para os acontecimentos dos bastidores, para as conexões entre os fatos, de maneira a proporcionar um aprofundado entendimento da vida contemporânea. O formato fez tanto sucesso que se espalhou pelo mundo, e hoje existem várias publicações inspiradas no formato consagrado pela Time: Cambio 16 na Espanha, L’Europeo na Itália, Veja no Brasil e Der Spiegel na Alemanha.


A prática da grande reportagem, e o jornalismo interpretativo, uma de suas principais formas de expressão, foram se consolidando com o passar do tempo. A idéia desse jornalismo é não se restringir ao aqui e o agora típico das notícias, e sim buscar o sentido, as conseqüências e os porquês dos fatos de uma forma mais ampla e profunda.


Nilson Lage faz uma resumida e objetiva diferenciação entre reportagem e notícia. Segundo ele, a primeira ‘é a exposição que combina interesse do assunto com o maior número possível de dados, formando um todo compreensível e abrangente'(LAGE, 2001, p. 112). Já a segunda, normalmente trata da mudança ou rompimento na ocorrência usual dos fatos e pressupõe um texto bem mais fragmentado e sintético. Sodré e Ferrari citam a definição dada por Charnley para notícia: ‘é a informação corrente dos acontecimentos do dia posta ao alcance do público’ (SODRÉ ; FERRARI, 1986, p. 17). Segundo esse autor, ‘notícia não é a morte do ditador, mas o relato que é feito dessa morte’.


Outro fator que diferencia a notícia da reportagem é a atualidade. A notícia deve tratar de fatos recentes e o seu anúncio deve ser imediato. Segundo Sodré e Ferrari, apesar de não prescindir da atualidade, a reportagem não possui o caráter urgente tão característico da notícia. Isso porque a sua função é diferente. A reportagem contextualiza e traz detalhamento ao que já foi noticiado, mesmo quando o seu teor é informativo, predominantemente. Exemplo disso são as reportagens que recapitulam grandes acontecimentos ocorridos há anos ou décadas, como assassinatos de políticos importantes ou guerras.


As perguntas respondidas pelo jornalista no lide de uma reportagem (quem, o quê, como, quando, onde, por quê) quando desdobradas constituem uma narrativa. No entanto, ao contrário do que acontece nas narrativas ficcionais (conto, novela, romance), as reportagens não são fruto do imaginário de seus autores, e sim, relatos de fatos ocorridos. Para que o público confie no que está sendo contado pelo jornalista, este deve fazer um relato bastante impressionista, objetivo e humanizado dos fatos. Ele deve buscar o ângulo que melhor revele a realidade, além de descobrir aspectos interessantes do assunto tratado, que poderiam passar despercebidos aos olhos de um observador desatento. O repórter deve servir de ponte, uma espécie de intermediário entre o leitor e o ocorrido. Isso fará com que as pessoas se sintam próximas dos fatos, como se realmente os tivessem testemunhado.


A pauta da reportagem geralmente é programada a partir de um fato gerador de interesse, que passa então a ser encarado de uma perspectiva editorial. Para tanto, não basta o repórter acompanhar os desdobramentos do evento, ele também precisa levantar as implicações, descobrir o que antecedeu aquele fato, enfim, interpretar e investigar. Lage cita o exemplo de um desastre aéreo que tenha ocorrido. A cobertura noticiosa pode falar, nos dias seguintes ao acidente, a respeito da retirada dos destroços, do inquérito que investiga as possíveis causas, do enterro dos mortos e da recuperação dos sobreviventes.


Em se tratando de reportagem, poderão surgir textos sobre a indústria aeronáutica, a segurança dos vôos e o funcionamento dos aeroportos; ou histórias pessoais relacionadas ao acidente que tenham conteúdo dramático ou inusitado.


Apesar de geralmente haver um fato desencadeador, Lage destaca que ‘nada impede porém, que se programem reportagens sem gancho, principalmente relacionadas a serviço, como comportamento ou temas ligados à saúde'(2001, p. 40). Mas em todos os casos, lembra o autor, a pauta da reportagem inclui a natureza da matéria (exposição de tema, narrativa etc.), o contexto, a linha editorial, o assunto e o fato gerador, quando houver. Deve haver também um detalhamento das expectativas em torno do aproveitamento do repórter na exploração do tema e de quais recursos estarão a sua disposição.


2.1.1 Fontes e origem


Poucos são os textos jornalísticos que se originam apenas da observação direta dos fatos, até porque isso restringiria muito o campo de atuação dos repórteres. A maior parte deles traz informações fornecidas por pessoas ou instituições que testemunharam ou participaram de eventos de interesse público. Esses personagens são o que Nilson Lage (2001) chama de fontes. Cabe aos repórteres questionar e selecionar essas fontes, obter delas depoimentos e dados, processá-los segundo as técnicas jornalísticas e, por fim, colocá-los em um contexto.


Nilson Lage considera que ‘as fontes podem ser mais ou menos confiáveis, pessoais, institucionais ou documentais’ (2001, p. 62). O autor as classifica em três grupos distintos. No primeiro estão as oficiais, as oficiosas e as independentes; no segundo estão as primárias e as secundárias; e no terceiro estão as testemunhas e os experts.


As fontes oficiais são aquelas mantidas pelo Estado; por órgãos que carregam algum poder estatal, tais como os cartórios de ofício e as juntas comerciais; e por empresas ou organizações, como associações, fundações e sindicatos. As fontes oficiosas são as que, mesmo sendo vinculadas reconhecidamente a um indivíduo ou uma entidade, não podem, no entanto, falar oficialmente em seu nome, o que quer dizer que podem ser desmentidas. Já as fontes independentes são aquelas sem o vinculo de uma relação de poder ou interesse especifico no caso em questão.


As fontes primárias são aquelas que fornecem as versões, os fatos e os dados de uma história. São nelas que os jornalistas se baseiam para colher o material essencial para a composição da matéria. Já as fontes secundárias são consultadas pelo repórter para que este possa construir os contextos ambientais ou as premissas genéricas, ou até mesmo preparar a pauta de uma matéria. Há casos em que vale a pena consultar primeiro as fontes secundárias, para só depois entrevistarmos as primárias. No entanto, em outras situações a fonte secundária pode aprofundar e detalhar o assunto, já previamente tratado pelas fontes primárias.


Supõe-se que se quer fazer uma reportagem sobre determinado assunto, o plantio de arroz em regiões arenosas, por exemplo. Nesse caso, as fontes primárias serão os agricultores e os agrônomos que trabalham para eles. No entanto, será prudente, antes de partir para a investigação, consultar fontes secundárias, que poderiam ser geógrafos, ambientalistas, economistas e funcionários de alguma instituição de apoio à agricultura ou de pesquisa agropecuária. Esse precaução permitirá ao repórter evitar perguntas impertinentes ou pouco relevantes, e também questionar e tentar aprofundar o assunto quando as respostas não forem muito convincentes.


Num segundo caso, citado por Lage (2001, p.66), imaginemos que se vai fazer uma matéria sobre a descoberta acidental de moedas e peças antigas de cerâmica em uma escavação urbana. Os descobridores do material são a fonte primária, no entanto o valor do que foi descoberto será melhor calculado se o relato deles for confrontado com a documentação do arquivo municipal ou com a opinião de historiadores experientes, ambos funcionando como fonte secundária nesse caso.


A testemunha é importante como fonte, por ela normalmente trazer uma carga de emoção e parcialidade no seu relato. Isso porque, dificilmente se consegue testemunhar e registrar todos os lados de uma questão. Em uma guerra, por exemplo, é muito provável que a pessoa acabe se identificando com um dos lados do conflito, o agressor ou o agredido, o vencedor ou o vencido. Certamente, se um repórter entrevistar um muçulmano e um judeu ortodoxo sobre a questão Palestina, os relatos que ouvirá serão bastante divergentes e conflitantes, por mais bem intencionados que sejam ambos.


Normalmente, o testemunho imediato é o mais confiável. ‘Ele se apóia na memória de curto prazo, que é mais fidedigna, embora eventualmente desordenada e confusa; para guardar fatos na memória de longo prazo, a mente os reescreve como narrativa ou exposição, ganhando em consistência o que perde em exatidão factual’, (LAGE, 2001, p. 67).


Os experts são usados normalmente como fontes secundárias, procuradas quando se buscam interpretações de eventos ou versões sobre eles. Os mais usados são professores universitários, médicos, advogados e economistas. O repórter deve ter cuidado com esse tipo de fonte, pois elas muitas vezes usam um linguajar muito hermético, comum para as pessoas de sua área, mas estranho para o público em geral. Cabe então ao jornalista fazer com que o entrevistado se expresse de maneira clara e simples sobre o assunto, sob o risco de as pessoas não entenderem grande parte da análise feita.


Apesar de serem fundamentais para a prática do jornalismo, as fontes devem sempre ser vistas e tratadas com muito cuidado. O jornalista nunca pode esquecer a velha máxima da profissão que diz: ‘os interessados produzem e fornecem os fatos’. Isso significa que a fonte sempre tem algum interesse envolvido no assunto em questão, mesmo que ela faça tudo para não deixar isso transparecer. Cabe então ao repórter checar os dados obtidos, confrontar as informações fornecidas pelas fontes, investigar a fundo mesmo aquilo que já parece solucionado, enfim, fazer de tudo para chegar o mais próximo possível da verdade dos fatos. Outra observação importante é a necessidade de variar as fontes. O jornalista não deve cair no comodismo de usar sempre os mesmos especialistas ou os mesmo políticos, por mais que isso possa parecer mais prático. A repetição excessiva de fontes acaba viciando a informação, e muitas vezes distorcendo a forma com que o próprio repórter encara o assunto.


2.1.2 Tipos


Sodré e Ferrari (1986) consideram que o jornalismo contemporâneo comporta uma grande variedade de tipos de reportagem. No entanto, os autores destacam três modelos como sendo fundamentais: a reportagem de fatos; a reportagem de ação e a reportagem documental.


A reportagem de fatos (Fact-story) faz um relato dos acontecimentos de maneira objetiva, obedecendo na redação o formato clássico da pirâmide invertida. Assim como ocorre na notícia, os fatos são narrados por ordem decrescente de importância, ou seja, vai-se do mais importante para o menos importante.


A reportagem de ação (Action-story) começa sempre pelo fato mais instigante da história, para depois seguir relatando de maneira movimentada e aos poucos, os detalhes seguintes. Nessas reportagens é fundamental que os acontecimentos se desenrolem de forma enunciante, aproximando o leitor, que deve se sentir envolvido pela visualização das cenas, como se estivesse em um filme.


A reportagem documental (Quote-story) faz um relato da história apresentando de forma objetiva os seus elementos, que vêm seguidos de citações que esclarecem e complementam o assunto abordado. Apesar de ser muito usado no jornalismo impresso, esse modelo é mais comum nos documentários de cinema ou de televisão. Por ser bastante expositiva, a reportagem documental aproxima-se da pesquisa. Em alguns casos ela adquire um teor de denúncia, mas na maior parte das vezes, calcada em dados que lhe fundamentam, ela acaba ganhando um caráter pedagógico.


Esses modelos são bem característicos, mas não são rígidos, podendo haver combinações entre eles. ‘Para quebrar a frieza de uma reportagem documental, por exemplo, e captar o interesse do leitor para o assunto, muitas vezes usam-se recursos da ‘action-story‘ou da ‘fact story‘ (SODRÉ ; FERRARI, 1986, p. 57). Também pode ocorrer o oposto, ou seja, uma reportagem de fatos ou ação que contenha, em determinados pontos, referências a documentos (dados numéricos, depoimentos de especialistas ou estatísticas). Normalmente isso ocorre quando a reportagem é derivada de uma notícia, e o repórter deseja, além de esmiuçar a informação, contextualizar melhor os fatos.


2.3 O que é o livro-reportagem


Segundo define Edvaldo Pereira Lima, ‘o livro-reportagem é o veículo de comunicação impressa não-periódico que apresenta reportagens em grau de amplitude superior ao tratamento costumeiro nos meios de comunicação jornalística periódicos’ (1993, p. 29). Essa maior amplitude pode ser compreendida como uma ênfase mais acentuada no tema tratado – quando comparada à revista, à mídia eletrônica e ao jornal impresso – seja no âmbito extensivo, ‘de horizontalização do relato’, seja no âmbito intensivo, que diz respeito ao aprofundamento do tema, seja no que diz respeito à conjugação desses dois fatores.


Para definir o que venha a ser um livro, será usado o conceito explicitado no Dicionário de Comunicação, de Carlos Alberto Rabaça e Gustavo Barbosa, e que foi citado por Lima no seu Páginas Ampliadas:


Publicação não-periódica que consiste materialmente na reunião de folhas de papel impresso ou manuscritas, organizadas em cadernos, soltas ou presas por processo de encadernação e técnicas similares. Distingue-se do folheto por possuir maior número de páginas: segundo as normas da Unesco, considera-se livro a publicação com mais de 48 páginas. (RABAÇA ; BARBOSA, apud LIMA, 1993, p. 29).


O livro-reportagem, na visão de Lima, ‘distingue-se das demais publicações classificadas como livro por três condições essenciais’ (1993, p. 29) a saber:


Primeiro, quanto ao conteúdo, o livro-reportagem aborda um objeto que corresponde a algo que de fato aconteceu, algo que remete ao real, ao factual. A verossimilhança e a veracidade são pré-requisitos essenciais. O real pode ser entendido aí tanto como uma questão, uma idéia vigente ou uma situação mais ou menos perene, quanto como uma ocorrência social já definida.


Segundo, quanto ao tratamento, no que diz respeito à montagem, à linguagem e à edição do texto, ‘o livro-reportagem apresenta-se como eminentemente jornalístico’. O conceito de linguagem jornalística usado aqui é aquele usado por Nilson Lage, segundo o qual ela ‘ mobiliza outros sistemas simbólicos além da comunicação lingüística'(LAGE, apud LIMA, 1993, p. 30), incluindo aí os sistemas analógicos – fotografias, charges, ilustrações-, o projeto gráfico e o próprio sistema lingüístico, este incluindo os títulos, as manchetes, os textos e as legendas. A linguagem jornalística rege-se no plano lingüístico a partir de determinadas restrições que impõem um equilíbrio entre a aceitação social e a comunicação eficiente, tornando-a assim, constituída basicamente de expressões, palavras e regras combinatórias que são aceitas no registro formal, mas que também se encaixam no registro coloquial. Nesse mesmo plano, surgem as desejáveis qualidades de exatidão, clareza, concisão e precisão. Em linhas gerais, o livro-reportagem segue as especificidades da linguagem jornalística, claramente identificadas na mensagem veiculada, mas obviamente oferece um tratamento mais maleável que os demais veículos.


Terceiro, quanto à função, o livro-reportagem pode se desdobrar dentro das finalidades típicas do jornalismo, que são orientar, informar, explicar. Desse modo, a narrativa do livro-reportagem pode ser trabalhada de uma forma apenas extensiva, sem aprofundar nem especificar muito o objeto abordado, mas mesmo assim, tratando-o de uma maneira superior com relação aos periódicos. O livro também pode partir para uma visão unilateral da questão abordada, defendendo certos princípios definidos e assim praticando o chamado jornalismo opinativo. Pode abordar uma questão a partir de diversos ângulos, procurando suas variadas causas e conseqüências, usando vários pontos de vista a respeito do assunto, praticando assim o chamado jornalismo interpretativo. Há também os livros de jornalismo investigativo, de denúncia, no qual o autor vai em busca de provas, entrevista pessoas, pesquisa documentos e registros, a fim de aprofundar e esclarecer ao máximo o tema tratado.


Eduardo Belo tem uma definição do que venha a ser livro-reportagem não muito diferente da de Lima, citada no início desse texto. Segundo aquele autor, ‘é possível dizer que livro-reportagem é um instrumento aperiódico de difusão de informações de caráter jornalístico. Por suas características, não substitui nenhum meio de comunicação, mas serve como complemento a todos’ (2006, p.41). Para Belo, o livro-reportagem é o meio capaz de reunir a maior quantidade de informação de forma contextualizada e organizada sobre determinado tema e representa, além disso, uma das formas mais ricas de mídia no que diz respeito à experimentação, ao aprofundamento da abordagem, construção da narrativa e ao uso da técnica jornalística.


A partir dessa definição pode-se perceber como os conceitos de livro-reportagem e de jornalismo estão intimamente ligados. Principalmente quando falamos do jornalismo crítico, feito com profundidade, de forma séria e analítica. Belo considera o livro, do ponto de vista técnico, como o mais rico instrumento para o exercício da profissão de jornalista. Excluindo-se o fator temporal, tendo em vista que normalmente não aborda assuntos de caráter mais efêmero, o livro permite a aplicação e exploração intensas de todos os demais princípios do periodismo. As características que distinguem o jornalismo em livro daquele praticado por outros meios são o conteúdo, a forma e, em especial, a dimensão.


Segundo Belo, ‘para a reportagem ganhar status de livro – ou o livro ganhar status de reportagem – são necessárias algumas condições, como o caráter não perecível ou pelo menos de maior durabilidade do assunto’ (2006, p. 42). O livro-reportagem, como não é tão imediatista quanto a cobertura midiática, geralmente abre oportunidade para abordagens originais, diferentes, criativas e mais aprofundadas. Temas históricos, biografias e relatos de episódios marcantes (revoluções, guerras, movimentos populares, assassinatos) são os temas clássicos desse tipo de obra. Mas é claro que não são os únicos. Qualquer tema que mereça uma abordagem mais aprofundada, que possa interessar a alguém, é passível de ser objeto de um livro-reportagem.


2.3.1 Um breve histórico e a atávica relação do jornalismo com a literatura


Dentre as várias formas de comunicação jornalística, é a reportagem, especialmente aquela em formato de livro, a que mais toma emprestado os recursos do fazer literário. Segundo Lima, a literatura e o jornalismo impresso intersectam-se, aproximam-se e afastam-se, particularmente desde que a imprensa ganhou sua face moderna, industrial, a partir da última metade do século XIX (1993, p.135). Nos primórdios da era moderna, jornalismo e literatura tinham em comum o ato da escrita. Quando o texto jornalístico evoluiu da notícia para a reportagem, fez-se necessário o surgimento de técnicas mais apuradas para o tratamento da mensagem. Devido a já citada proximidade entre as atividades, parece claro o motivo pelo qual os jornalistas, mesmo que inconscientemente, foram buscar na literatura as suas próprias formas de contar a realidade.


Do mesmo modo, muitos escritores de ficção acabaram buscando o jornalismo não só como uma forma de subsistência, mas também como uma boa maneira de promover e aprimorar os seus dotes literários. No Brasil, por exemplo, ninguém menos que Machado de Assis, um dos principais nomes da nossa literatura, iniciou sua vida profissional dentro de uma redação como tipógrafo e revisor de jornal, enquanto seguia, paralelamente, construindo sua carreira de escritor. Outros escritores de destaque também passaram pela imprensa durante a segunda metade do século XIX. Manuel Antonio de Almeida, autor de Memórias de um Sargento de Milícias, trabalhou no Correio Mercantil (Rio de Janeiro), já José de Alencar chegou a ser redator-chefe do Diário do Rio de Janeiro.


Até o início do século XX, na verdade, a imprensa e a literatura seguem entrelaçadas. Vários jornais produzem folhetins, possuem suplementos literários, enfim, dão bastante espaço para a arte literária e seus autores. Segundo Pereira Lima, ‘é como se o veículo jornalístico se transformasse numa indústria periodizadora da literatura da época’ (1993, p. 136). O lado divulgador, a oportunidade de levar a obra a um grande número de pessoas, eram o que fazia os escritores se relacionarem com a imprensa.


Ainda falando dessa estreita relação entre o jornalismo e a literatura, Pereira Lima citou o jornalista e PhD em literatura norte-americano, Tom Wolfe, considerado o porta-voz do new journalism (corrente do jornalismo essa que será tratada no tópico seguinte). Wolfe encontra, ‘no nascedouro mesmo do romance, o objetivo nítido de praticar uma literatura da realidade’ (apud LIMA, 1993, p. 140). Segundo ele, no romance Joseph Andrews, de Henry Fielding, publicado em 1742, já havia um germe do que poderia ser chamado de fiel reprodução do cotidiano social. Os escritores Daniel Defoe, Samuel Richardson e Smollet seguiram essa mesma linha, que terminou originando a chamada literatura de realismo social, que durante o século XIX levou o romance ao posto de gênero literário de prestígio. Mas foi com nomes até hoje relevantes na literatura universal como Tolstoi, Dostoievski, Balzac, Dickens e Mark Twain, que o realismo social encontrou seu auge. Esses romancistas, na opinião de Wolfe, captavam a realidade, a vida do seu tempo, como se fossem repórteres de sua época.


Dessa forma, é fácil perceber que o realismo social reproduzia o real da mesma forma que a reportagem faria mais adiante. Segundo Lima:


A imprensa européia e norte-americana do período de 1840 a 1870 ainda está evoluindo, a reportagem surgirá mais à frente, voltada à presentificação, ancorada no relato da informação factual, como extensão da notícia. Nisso, haveria visível diferença. Mas, na reprodução de situações ou de acontecimentos de maior permanência no tempo, essa literatura era o canal por excelência de transmissão do real, no sentido com que se pode entender a concepção da crônica histórica. O relato de acontecimentos, o acompanhamento do cotidiano, a elucidação do que ocorre com uma sociedade em transformação, que se urbaniza, que se industrializa, que se moderniza, enfim, os efeitos dessa mudança sobre os indivíduos, sobre os grupos sociais, são as tarefas a que se propõem muitos dos escritores do realismo social. Assim, ‘Thackeray era o cronista de Londres na década de 1840 e Balzac era o cronista de Paris e de toda a França após a queda do Império (1993, p. 141).


No fim do século XIX e início do século XX, o realismo social começa a decair na Europa. Isso se dá pelo fato de os autores terem começado a achar que o romance estava se restringindo muito ao relato do cotidiano. No entanto, o gênero começa a se firmar nos Estados Unidos no período após a Primeira Guerra Mundial e termina por atingir seu auge naquele país durante a década de 1930. Nomes como William Faulkner, Ernest Hemingway, William Saroyan e John Steinbeck, fundamentais para a literatura americana do século passado, surgiram nessa época. Desse realismo social, gerado e amadurecido na Europa, e levado para a América do Norte quando já se encontrava em decadência, é que a atividade jornalística tiraria a principal contribuição para a reformulação estética da narrativa feita em profundidade. E é o realismo social que, segundo Pereira Lima, vai impulsionar o jornalismo literário, e consequentemente o desenvolvimento do livro-reportagem moderno.


2.3.2 A experiência do new journalism


A necessidade do jornalismo de aprimorar o seu aparato expressivo, por um lado, e de melhorar a sua capacidade de captação da realidade, por outro, começou a ser suprida com o advento do new journalism. Segundo Lima, ‘os profissionais que passaram a produzir nessa corrente – que Tom Wolfe recusa chamar de movimento – abririam uma porta de possibilidades vastas, primeiro em publicações periódicas e depois no livro-reportagem’ (1993, p. 146). Essa corrente conseguiu, na segunda metade do século XX, não só resgatar, mas principalmente revolucionar a prática do jornalismo literário.


Os Estados Unidos dos anos 1960 ferviam em um caldeirão de contra-cultura. Ocorria no país, principalmente na Califórnia e em Nova York, uma grande revolução cultural e de costumes. Era o período dos hippies, da liberdade sexual, das manifestações contra a Guerra do Vietnã e a favor da liberação das drogas. Filmes como Sem Destino, e personalidades como Timothy Leary faziam a cabeça de toda uma geração que clamava por liberdade.


No entanto, apesar de toda essa efervescência social e cultural, os romancistas da época não estavam interessados em retratar as mudanças que a sociedade estava sofrendo. Falar sobre costumes era visto como algo ultrapassado. Em decorrência disso o realismo social entrou em decadência, e a classe literária passou a apostar em outros tipos de romance. Floresceram então diversos tipos de romances: romances freudianos, romances de idéias, romances surrealistas.


Isso fez com que os jornalistas, vistos até então como escritores inferiores pela elite literária, tivessem um campo bastante propício para trabalhar. Tom Wolfe, assim como Gay Talese, Truman Capote e Norman Mailer, esses dois últimos vindos da literatura de ficção, se agarraram à oportunidade e a aproveitaram da melhor forma possível. ‘Então, os romancistas tinham tido a gentileza de deixar para nossos rapazes um corpo de material bem bonzinho: toda a sociedade americana, na verdade’ (WOLFE, 2005, p.52).


Wolfe destaca que os jornalistas aprenderam, empiricamente, a desenvolver os recursos que consagraram os autores do realismo, tais como Balzac, Dickens e Gogol. Segundo ele, essa corrente da literatura se destacava pela sua capacidade de transmitir a realidade de forma concreta, de envolvimento emocional, de absorver e fascinar o leitor. Na opinião do autor, considerado o porta-voz do new journalism, os jornalistas descobriram que a força do realismo se sustentava em quatro recursos.


O básico era a construção cena a cena, contar a história passando de cena para cena e recorrendo o mínimo possível à mera narrativa histórica. (…) registrando o diálogo completo, o que constituía o recurso número 2. Os escritores de revista, assim como os primeiros romancistas aprenderam por tentativa e erro algo que desde então tem sido demonstrado em estudos acadêmicos: especificamente, que o diálogo realista envolve o leitor mais completamente que qualquer outro recurso.(…) O terceiro recurso era o chamado ‘ponto de vista da terceira pessoa’, a técnica de apresentar cada cena ao leitor por intermédio dos olhos de um personagem particular, dando ao leitor a sensação de estar dentro da cabeça do personagem, experimentando a realidade emocional da cena como o personagem a experimenta. (…) O quarto recurso sempre foi o menos entendido. Trata-se do registro dos gestos, hábitos, maneiras, costumes, estilos mobília, roupas, decoração, maneiras de viajar, comer, manter a casa, modo de se comportar com os filhos, com os criados, com os superiores, com os inferiores, com os pares, além dos vários ares, olhares, poses, estilos de andar e outros detalhes simbólicos do dia-a-dia que possam existir dentro de uma cena. (…) O registro desses detalhes não é mero bordado em prosa. Ele se coloca junto ao centro de poder do realismo, assim como qualquer outro recurso da literatura (WOLFE, 2005, p. 53).


Segundo Lima, o new journalism começou em jornais como o Herald Tribune, The New York Times e o Daily News. Depois de evoluir e passar para as revistas dominicais de alguns desses periódicos, o amadurecimento se deu em revistas independentes como a New Yorker e a Esquire. O auge foi atingido com a obra prima de Truman Capote, A Sangue Frio. O texto foi publicado primeiramente em capítulos pela revista New Yorker em 1965. No ano seguinte foi publicado em forma de livro e fez com que Capote, um escritor de ficção cuja carreira andava meio estagnada, voltasse ao estrelato. Outras obras de destaque do new journalism são Fama e Anonimato de Gay Talese, Os Exércitos da Noite de Norman Mailer, e Radical Chique e o Novo Jornalismo de Tom Wolfe.


2.3.3 A lacuna preenchida dentro do universo jornalístico


A imprensa se preocupa cada vez mais com o imediato, o instantâneo. A rapidez, a necessidade de dar o furo antes da concorrência prevalecem sobre a profundidade e a contextualização dos fatos. Diante desse quadro, torna-se cada vez mais importante que haja algum tipo de refúgio para aqueles que buscam os porquês, os reais motivos por trás dos acontecimentos, a verdadeira face dos personagens que muitas vezes são apenas mais um número na estatística das grandes publicações.


Pois o livro-reportagem serve justamente como o refúgio, tanto para o público, quanto para os próprios jornalistas, quando estes querem explorar a fundo um tema. No livro não há limitação de espaço e muito menos um prazo apertado para entregar o texto. Enfim, a preocupação não é com a velocidade, e sim com a qualidade do produto final.


No seu livro Páginas Ampliadas, Edvaldo Pereira Lima destaca que ‘o livro-reportagem estende a função informativa e orientativa do jornalismo impresso cotidiano na medida em que cobre vazios deixados pela imprensa, em que amplia, para o leitor, a compreensão da realidade’ (1993, p. 55). Segundo o autor, essa complementação não se dá apenas no que diz respeito aos fatos cotidianos vistos isoladamente, mas em um sentido mais amplo de visão do mundo atual. Para atingir esse objetivo, o livro-reportagem potencializa todos os recursos operacionais usados na prática do jornalismo. O resultado disso é que algumas qualidades típicas, vindas das mais diversas influências, fontes e procedimentos jornalísticos, se mesclam e se potencializam no livro-reportagem, e acabam ganhando contornos que o particularizam.


Para Eduardo Belo, ‘o livro pede um nível de detalhamento, profundidade e contextualização que outros veículos não conseguem oferecer'(2006, p. 42). Pelo trabalho mais aprofundado de pesquisa que exige, e pela sua maior extensão, o livro é superior aos veículos periódicos devido a sua maior possibilidade de inter-relacionar fatos diferentes, desdobrar a história e explorar as suas ramificações. Isso sem falar na liberdade de narrativa que o livro permite. Respeitando a veracidade dos fatos, o autor é livre para contar a história da maneira que lhe for mais conveniente ou interessante. Por fim, Belo destaca que o livro ‘é uma forma de ter uma visão mais ampla e profunda, sem a fragmentação que caracteriza a cobertura jornalística cotidiana'(2006, p. 42).


Devido a essas características peculiares, Lima considera o livro-reportagem um gênero específico dentro da atividade jornalística.


3. Trabalho de campo e reportagem


Para escrever uma matéria, o repórter precisa antes de tudo apurar o que ocorreu, saber quem são os envolvidos, quais são os motivos que levaram aquele fato a acontecer e quais são ou serão as suas conseqüências. Para obter essas respostas, é necessário um trabalho de pesquisa, de investigação, e que muitas vezes exige uma boa dose de paciência e dedicação. Isso, infelizmente nem sempre ocorre, visto que muitos repórteres insistem em fazer jornalismo usando apenas o telefone e o computador, prescindindo do acompanhamento dos fatos in loco.


Esse trabalho todo que envolve a apuração jornalística, se parece muito com aquele realizado pelos antropólogos quando estes estão analisando uma determinada sociedade. Por isso, a semelhança que alguns autores encontram entre a etnografia e a reportagem. No artigo intitulado ‘A reportagem como experiência etnográfica’, Liraucio Girardi Jr. define a etnografia como:


Um conjunto de procedimentos de coleta de dados e análise de informações, baseados na observação direta, na entrevista, no contato com o sujeito/objeto de interesse que nos possibilita uma tentativa de interpretação de suas formas de organização, representação, construção de identidades, experiências culturais, etc. (2000, p. 20).


Girardi sugere que o repórter use o procedimento etnográfico como uma forma de fugir da padronização dos textos praticada nas redações de jornais e revistas. Para o autor, o jornalista que conseguir aprofundar o conteúdo de suas reportagens, pode realizar uma etnografia da própria sociedade em que vive. É claro que isso nem sempre é possível, pois há constantemente uma pressão para cumprir o prazo, sem falar no crescente corte de verbas que as redações vêm sofrendo, o que termina dificultando esse processo de aprofundamento, principalmente no caso da imprensa diária. O próprio Girardi comenta que o repórter, pelas próprias características da atividade jornalística, enfrenta certas limitações quando tenta se aproximar da atividade etnográfica, mas que isso não o impossibilita de fazer uso de algumas das suas reflexões.


3.1 O jornalista-flâneur


Se muitas vezes o jornalista deve se aproximar do antropólogo na hora de cobrir e investigar uma história, em outras ele deve se aproximar dos vagabundos, daqueles que caminham a esmo pela cidade, despreocupados, mas com a certeza de que alguma história interessante cruzará o seu caminho. É o que Marcelo Bulhões chama de repórter-flâneur, personagem imortalizado na história da imprensa brasileira pela figura de João do Rio.


Segundo Bulhões, a flânerie é um aspecto definidor da importância da obra jornalística de João do Rio. Foi usando esse método que o repórter conseguiu a alcunha de grande documentarista das mudanças urbanas e sociais vividas pelo Rio de Janeiro do início do século XX. Com seus textos que oscilavam entre a crônica e a reportagem, João do Rio foi um observador atento das metamorfoses que a então capital nacional vivia no âmbito dos hábitos, dos costumes e do comportamento entre os anos 1900 e 1920.


Apesar de pregar a vagabundagem, João do Rio nunca deixava ao largo o seu espírito de jornalista. Como bem define Bulhões ‘no caso de João do Rio, o flâneur estará mesmo investido dos atributos do ofício jornalístico, pois ele sai às ruas e aguça o olhar direcionado para o efêmero da vida mundana, registrando o circunstancial, captando tipos sociais da Belle Époque‘ (2006, p. 56).


E de fato João do Rio ia fundo nas suas investigações. Seu olhar era curioso e ele estava disposto a freqüentar os ambientes mais sórdidos, conversar e conviver com os tipos mais estranhos, ignorados pela maioria das pessoas, para conseguir a sua história. Para escrever, por exemplo, a série de reportagens, que depois seria transformada em livro, As Religiões do Rio, o repórter se meteu nos submundos das seitas místicas e dos credos do Rio de Janeiro. O trecho a seguir foi extraído por Bulhões de As Religiões do Rio e expõe de forma bastante eloqüente o método de reportagem usado por João do Rio:




Dei numa sala vasta cheia de gente. Candeeiros de querosene com refletores de folhas pregados às paredes pareciam uma fileira de olhos, de focos de locomotiva golpeando as trevas numa pertinaz interrogação. A atmosfera, impregnada de cheiros maus de pó de arroz e de suor, sufocava. Encostei ao portal indeciso. Remexia e gania entre aquelas quatro paredes o mundo estercorário do Rio. Velhos viciados à procura de emoções novas, fúfias histéricas e ninfomaníacas, mulatas perdidas, a ralé da prostituição, tipos ambíguos de calças largas e meneios de quadris, caras lívidas de rôdeurs das praças, homens desbriados, toda essa massa heteróclita cacarejava impaciente para que começasse a orgia (JOÃO DO RIO, apud BULHÕES, 2006, p. 54).


É claro que hoje em dia é difícil imaginar um repórter caminhando a esmo pela cidade, observando e vagabundeando à espera de uma boa história. Mas nem por isso o legado deixado por João do Rio perdeu a sua validade. Afinal de contas, ter um olhar curioso e acurado, ir a fundo nas investigações, freqüentar sem medo os mais diversos ambientes e conviver com os mais variados personagens da vida urbana nunca vão deixar de ser atributos elogiáveis em um jornalista.


3.2 O jornalista serendipitoso


Gay Talese, um dos maiores expoentes do new journalism, se autodefinia como um serendipitoso, ou seja, ‘alguém capaz de fazer, por acaso, descobertas felizes ou úteis’. Desse modo, ao caminhar por Nova York e conversar com pessoas comuns, anônimas, ele acaba descobrindo histórias fantásticas, que rendem grandes matérias.


Foi usando esse método que ele escreveu as histórias que compõem o primeiro capítulo de seu livro Fama e Anonimato, intitulado Nova York: a jornada de um serendipitoso. Nele podemos ler interessantes relatos sobre a rotina das faxineiras do Empire State Building, a dura vida dos motoristas de ônibus de Manhattan, a trajetória de um ex-pugilista que se tornou massagista de senhoras ricas e a de outro que se tornou barman. Porteiros, barbeiros, engraxates, ou seja, pessoas que fazem parte das nossas vidas, com as quais cruzamos diariamente, mas das quais pouco ou quase nada sabemos, se tornam interessantes personagens dos textos de Talese. Prova de que nem só as celebridades e os poderosos rendem boas histórias. Prova também de que o repórter deve ir para as ruas, estar no local onde as coisas estão acontecendo.


Para realizar o livro-reportagem A Ponte, sobre a construção da ponte Verrazano-Narrows, entre o Brooklyn e Staten Island, em Nova York, Talese passou todo o tempo que foi possível entre 1961 e 1964, envolvido com a obra e os seus operários. O repórter muitas vezes colocou um capacete e se misturou com os homens no canteiro de obras, visitou os barracões em que eles ficavam e chegou inclusive a ir com eles visitar suas famílias em alguns finais de semana.


Mas o apogeu da técnica de observação e apuração de Talese foi atingido com o perfil que o repórter fez de Frank Sinatra para a revista Esquire. Apesar do seu perfilado ter lhe negado uma entrevista, que havia sido prometida, Talese conseguiu fazer com que ‘Frank Sinatra está resfriado’ seja considerado até hoje um dos grandes textos da história do jornalismo. Através de conversas com mais de uma centena de pessoas que freqüentavam o universo do famoso cantor, desde produtores e executivos de estúdios, passando por donos de restaurantes e mulheres, até músicos e atores que trabalhavam com Sinatra, o repórter conseguiu informações que numa simples conversa com o cantor provavelmente não teria obtido. A situação foi definida da seguinte forma por Talese:




Embora eu não tenha tido a oportunidade de me sentar e conversar a sós com Frank Sinatra, essa circunstancia talvez seja um dos pontos fortes do artigo. O que ele poderia ter dito (sendo ele uma das personalidades mais bem guardadas) teria revelado melhor quem ele era do que um escritor que atentamente o observasse em ação, vendo-o em situações de tensão, ouvindo-o e acompanhando com vagar os aspectos menos espetaculares de sua vida? (TALESE, 2004, p. 520).


O resultado disso foi um artigo de 55 páginas, que custou milhares de dólares para a revista, e consumiu ao todo nove semanas de exaustivo trabalho por parte do repórter. Pode parecer absurdo para os padrões atuais, mas talvez nem tão absurdo se for levado em conta que o texto entrou para a história da imprensa, para não dizer da literatura mundial.


Talese é um inimigo confesso do gravador, instrumento que segundo ele é eficiente mas embrutecedor. Na sua opinião, o repórter não deve buscar a transcrição exata de um diálogo superficial e apressado, e sim o insight que se origina da análise profunda e perspicaz do interlocutor, seus gestos, suas feições e reações. Segundo Talese, é mais importante o repórter perceber o que as pessoas pensam do que registrar o que elas dizem. Ele define assim seu próprio método:




Mais importante que o que elas dizem é o que elas pensam, embora num primeiro momento seja difícil para elas articular o próprio pensamento, além de exigir do entrevistador muita ponderação e reflexão sobre o que há na mente do entrevistado – o que eu busco com todo cuidado é encorajar e estimular as pessoas sobre as quais escrevo, ao mesmo tempo que lhes faço perguntas, questões e me identifico com elas, enquanto as acompanho em reuniões, em andanças sem compromisso antes do jantar ou depois do trabalho. Seja onde for, procuro estar presente em meu papel de confidente curioso, um companheiro de viagem digno de confiança que procura examinar o seu interior, tentando descobrir, esclarecer e afinal descrever com palavras (minhas palavras) o que essas pessoas representam e o que pensam (TALESE, 2004, p. 512).


3.3 A necessidade de sujar os sapatos


Reiterando o que já foi dito nesse capítulo, no posfácio que escreveu para a edição brasileira de Fama e Anonimato, o jornalista Humberto Werneck critica os jornalistas que fazem reportagem sem sair da redação. Werneck cita Gay Talese como um exemplo de repórter que sai à rua atrás das histórias. Segundo ele, essa categoria de repórteres está se tornando cada vez mais rara.


Um dos motivos para esse fato seria o uso demasiado e até indevido de ferramentas tecnológicas como o telefone e a internet. Esses recursos, que deveriam ser complementares no processo de busca por informações, estão se tornando as ferramentas preferenciais dos repórteres durante a investigação. Isso acaba por desvirtuar a prática jornalística, visto que o repórter deixa de estar presente aos acontecimentos, deixa de sentir o clima das situações, o ânimo das pessoas, a reação das autoridades. Some-se a isso o drástico corte nos quadros das redações e nos salários dos profissionais e se terá uma explicação para o nivelamento por baixo que grande parte da mídia apresenta atualmente.


Werneck (apud TALESE, p. 525) ressalta que em muitas redações, pelo Brasil afora, os repórteres não saem mais à rua para investigar hipóteses ou garimpar novidades, razão de ser da prática jornalística, e sim para confirmar suposições e teses, ou até mesmo para enquadrar a realidade, caso essa não colabore, às pautas concebidas genialmente pelas chefias. Há casos em que as legendas são escritas antes mesmo da foto ter sido tirada, ou de repórteres que saem atrás de alguma fonte que diga o que eles querem que seja dito.


O jornalista Ricardo Kotscho (apud TALESE, p. 527) chegou a sugerir a eliminação das linhas telefônicas nas redações como uma drástica forma de obrigar os jornalistas a saírem da toca, pois, como destaca Werneck, ‘se chegou a cobrir enchente por telefone. Hoje, mesmo no espaço nobre de publicações graúdas, longas entrevistas são feitas sem que o jornalista veja a cara do entrevistado’ (apud TALESE, 2004, p. 527). Método esse que contraria totalmente a tese defendida por Talese, na qual o jornalista deve não se ater apenas às palavras, e sim às nuances, ao semblante do entrevistado, seus gestos, seu tom de voz, para assim tentar desvendar o que de fato estava passando em sua cabeça, desvendar o que se escondia sob o véu das palavras e das frases prontas. Werneck conta uma história ocorrida com Ricardo Kotscho para ilustrar a sua teoria de que os jornalistas devem sair com mais freqüência da zona de conforto das redações. ‘A um colega, intrigado ao vê-lo abancado, quase todo dia, numa cadeira de engraxate na alameda Santos, Ricardo Kotscho explicou: ‘É que eu preciso! Repórter que vai à rua suja os sapatos’ (apud TALESE, 2004, p. 527).


No próximo capítulo, faremos a contextualização histórica da guerra do Vietnã, conflito que serviu de cenário para a produção do livro O Gosto da Guerra.


4.1 O país


O Vietnã se localiza, junto com Camboja e Laos, na região da Indochina, no Sudeste Asiático. O clima do país é tropical, influenciado fortemente pelas monções, ventos periódicos que, ao longo do ano sopram do continente para o oceano e depois deste para o continente. No período que vai de janeiro a julho, os ventos sopram do continente para o oceano, causando a estação de seca (monções de inverno). No restante do ano, os ventos sopram do oceano para o continente, causando fortes chuvas (monções de verão). A área total do Vietnã é de 330 mil km2 e sua população atual é de 84 milhões de habitantes, dos quais 75% são rurais.


No aspecto étnico, o povo vietnamita ‘[…] é fruto da mestiçagem entre os imigrantes chineses e os povos thai, que habitavam esta área’ (VIZENTINI, 2006, p. 12). Na Indochina a cultura hindu mesclou-se com a chinesa, sendo a segunda predominante no Vietnã (que em chinês quer dizer ‘estrangeiros do sul, literalmente) e a primeira no Laos e no Camboja.


Os vietnamitas são um povo muito antigo. Estima-se que os imigrantes do sul da China tenham chegado ao delta do Rio Vermelho no século III a.C. Um século mais tarde o império chinês incorporou o estado no Nam-Viet, criado na região, ao que se seguiu mais de um milênio de dominação. Apesar da longa duração do domínio chinês, os vietnamitas jamais aceitaram a situação passivamente e lutaram das formas mais variadas para se libertarem. Isso criou na região uma tradição de resistência aos povos invasores que seria comprovada com a forte reação dos nativos à ocupação francesa no século XIX e posteriormente à ocupação japonesa e norte-americana no século XX.


Boa parte do território da península da Indochina é coberta de densas florestas. Esse detalhe foi de vital importância nas guerras dos povos locais contra estrangeiros, já que os nativos sabiam muito bem como usar a geografia local a seu favor. Além de usarem a floresta como refúgio, os vietnamitas faziam armadilhas camufladas usando árvores e bambus, imperceptíveis aos olhos do inimigo. Também construíam redes de túneis subterrâneos que lhes permitiam se locomover sem serem notados.


4.2 A ocupação dos franceses e dos japoneses


Na partilha do Sudeste Asiático feita pelos países europeus e pelos Estados Unidos, no final do século XIX, a França ficou com a península da Indochina (Vietnã, Camboja e Laos) toda para ela. Mas essa condição de nação ocupada não deixou a população local nada satisfeita.


Nelson B. Olic conta em A Guerra do Vietnã (1988) como se deu a reação dos nativos. ‘Apesar de serem constantes no Vietnã as revoltas contra a colonização, foi somente no início do século 20 que surgiram movimentos mais organizados: o Partido Nacionalista e o Partido Comunista, reflexo, por assim dizer do que ocorria na vizinha China’ (p.14). Esses partidos simbolizavam a resistência aos países imperialistas, e se fortaleceram, o Comunista principalmente, quando os japoneses ocuparam o Vietnã, em 1940.


O Japão buscava ampliar os mercados para seus produtos industrializados e também a obtenção de matérias-primas no Extremo Oriente. Como a França havia sido dominada pela Alemanha (aliada do Japão) na Segunda Guerra, os franceses ficaram sem moral para resistir à invasão japonesa na sua colônia. No entanto, os nipônicos mantiveram a administração colonial a cargo dos franceses até 1945.


Em 1941 foi criada a Liga Revolucionária para a Independência do Vietnã, popularmente chamada de Movimento Vietminh. Com ideais predominantemente comunistas, o movimento era tanto anti-japonês como anti-francês. Seu líder, Ho Chi Min, acabou se transformando em líder nacional e símbolo da resistência à ocupação estrangeira.


Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o Japão foi obrigado pelos acordos de armistício a desocupar a Indochina. ‘Os vietminhs, aproveitando-se do ‘vazio político’criado, declararam a independência do Vietnã’ (OLIC, 1988, p. 16). Após quatro anos lutando contra os japoneses, o Vietminh já dominava totalmente algumas regiões do norte do país, e tinha um domínio parcial de certas áreas do sul. Então, no dia 2 de setembro de 1945, Ho Chi Minh proclamou, em Hanói, a independência do Vietnã.


Essa demonstração de poder do Vietminh desagradou os franceses, que prontamente retomaram seu domínio no sul do país. O Vietminh dominava boa parte do norte, onde era mais forte e organizado. O movimento administrava os seus domínios levando em conta as tradições e preocupações da população local, o que lhe deu forte respaldo e apoio popular.


Como os franceses propunham uma independência limitada, na qual o país seguiria sob o jugo francês, mesmo depois de independente, e o Vietminh almejava a unificação e a total independência do Vietnã, as negociações se tornaram bastante complicadas. ‘Como o acordo não foi possível, no final de 1946 irrompeu a guerra, conhecida como Guerra da Indochina, que opôs os franceses contra os guerrilheiros vietminhs’ (OLIC, 1988, p. 16).


4.3 A guerra da Indochina


Como os franceses eram melhor equipados,com armamentos mais modernos e uma boa estrutura logística, os vietminhs foram obrigados a se refugiar em regiões isoladas, perto da fronteira com a China, de onde iniciaram uma luta de guerrilhas. Os nativos aguardavam o apoio dos comunistas chineses, e devido a sua inferioridade material e armamentista, precisavam evitar a guerra tradicional, já que se ela ocorresse os inimigos levariam ampla vantagem. ‘Com isso, os franceses reafirmaram seu domínio sobre a maior parte do sul (Cochinchina), sobre o centro (Anã) e, no norte (Tonquim), consolidaram o domínio sobre o delta do rio Vermelho, a área mais povoada e urbanizada da região’ (OLIC, 1988, p. 17).


Os conflitos, entre os anos de 1948 e 1953, se concentraram principalmente no norte do Vietnã. Por terem maior poder de fogo, os franceses mantinham e reforçavam suas bases nas proximidades do rio Vermelho, já que nessas condições os guerrilheiros vietminhs tinham poucas chances. No entanto, quando saíam dessas áreas protegidas, os franceses se encontravam em desvantagem, visto que os nativos conheciam melhor o terreno, e por isso suas táticas de guerrilha eram mais eficientes nesses locais.


No final de 1953, com uma forte ofensiva aérea, o exército francês dominou a estratégica aldeia de Dien Bien Phu. No entanto, alguns fatores não previstos pelos franceses começaram a pesar a favor dos vietminhs. Além das chuvas de verão, que se iniciaram e dificultaram os ataques aéreos da França, também houve um incremento na ajuda vinda da China, após o término da Guerra da Coréia. Mas o que provavelmente mais pesou a favor dos vietnamitas foi a grande sagacidade do general Vo Nguyen Giap, líder militar do Vietminh.


Segundo Olic, o general Giap fez uso de métodos muito criativos para enfrentar o forte poder bélico francês, que era bastante superior ao seu. ‘Fez com que os canhões (recebidos dos chineses) fossem desmontados e transportados para as colinas ao redor de Dien Bien Phu, por meio de bicicletas especialmente reforçadas’ (OLIC, 1988, p. 17).


Então, no dia 13 de março de 1954, o exército francês foi atacado totalmente de surpresa pela artilharia vietminh, que acabou inutilizando o campo de aviação de Dien Bien Phu. Isso fez com que os vietminhs fossem conquistando áreas cada vez maiores, até que em 7 de maio de 1954 os franceses se renderam.


Após essa emblemática derrota da França, em maio do mesmo ano iniciaram-se em Genebra, na Suíça, as negociações diplomáticas que decidiram os rumos da região da Indochina. Camboja e Laos tornaram-se nações independentes. ‘O Vietnã foi dividido, na altura do paralelo 17, em Vietnã do Norte, com capital em Hanói, e Vietnã do Sul, com capital em Saigon.’ (OLIC, 1988, p.22) O Vietnã do Norte passou a ser chamado oficialmente de República Popular e Democrática do Vietnã do Norte, e tinha uma orientação comunista. Já o Vietnã do Sul tinha um orientação capitalista, claramente inspirada no modelo norte-americano.


No entanto, esse acordo firmado na Suíça não contentou todos os vietnamitas. Alguns setores da sociedade do Vietnã do Sul e os líderes do Vietnã do Norte não aceitaram de bom grado a divisão do país. Estava plantado o germe de um novo conflito envolvendo vietnamitas e uma nação estrangeira.


4.4 A guerra do Vietnã


A Guerra do Vietnã será aqui contada de forma resumida, com o intuito de contextualizar o conflito, sem no entanto, entrar nos seus pormenores. A divisão do confronto entre EUA e Vietnã em três fases é a mesma usada por Nelson B. Olic no seu livro A Guerra do Vietnã.


4.4.1 O conflito começa a se configurar


Os acordos assinados em Genebra, em 1954, criaram não só uma nova configuração política para a Indochina, como também proibiam a introdução de novos armamentos na região. Além disso, os acordos previam eleições gerais, que seriam supervisionadas por uma comissão internacional, em 1956. No entanto, com a não participação dos EUA e do Vietnã do Sul nos acordos, o equilíbrio geopolítico da região continuou bastante frágil.


A França havia colocado no poder, no Vietnã do Sul, o imperador Bao Dai. Este colocou Ngo Dinh Diem como seu primeiro-ministro. Após um começo conturbado, Diem se firma no comando da nação. Então, em 1955, ele dá um golpe de Estado que derruba Bao Dai e proclama a República. O Vietnã do Sul, apesar de fraco e cheio de problemas, passa a receber forte apoio de Washington. Isso porque os EUA viam o país como um aliado na luta contra a expansão comunista no Sudeste Asiático.


O governo de Dinh Diem foi se tornando cada vez mais autoritário. As eleições que seriam realizadas em 1956 foram suspensas, enquanto o nepotismo, a corrupção e a ineficácia só faziam crescer. Tudo isso, aliado a algumas medidas impopulares como a suspensão da reforma agrária, implantada pelo Vietminh, fizeram com que a oposição a Dinh Diem crescesse de forma substancial. ‘No começo, os atos de insurreição foram contidos pelo governo, mas a partir de 1960 formou-se a Frente de libertação Nacional (FLN), com um exército guerrilheiro conhecido pelo nome de Vietcong'(OLIC, 1988, p. 24). Os objetivos da FLN eram tirar Diem do poder e posteriormente unir o Vietnã do Sul ao Vietnã do Norte.


4.4.2 Primeira fase da guerra: o início da escalada norte-americana


Em 1961, o governo de John Kennedy enviou 300 pilotos de helicóptero para o Vietnã do Sul. Em 1962 o número de ‘consultores militares’ norte-americanos no país asiático já era de 12 mil, e em 1963 esse número passou para 20 mil. Até o ano de 1968 a quantidade de homens enviados por Washington só aumentou.


‘Concomitantemente à ajuda militar ao Vietnã do Sul, os EUA procuraram influenciar Diem a fazer algumas reformas políticas, mas seu governo estava demais comprometido com a corrupção e o favoritismo’ (OLIC, 1988, p. 26). Em decorrência dessa falta de rumo, o governo de Diem foi derrubado por um golpe militar em novembro de 1963. Nos dois anos seguintes ocorreram sucessivos golpes de Estado que acabaram deixando a situação política do país ainda mais deteriorada.


Enquanto isso, no Vietnã do Norte ocorria um processo de implementação do modelo socialista. A partir de 1960, a ajuda externa recebida, que até então era feita pela Rússia e pela China, passa a ser prioritariamente russa. Por sua vez, o Vietnã do Norte ajudava o Vietcong, no Vietnã do Sul, o que fez com que vastas áreas da região passassem ao controle dos vietcongues.


Os norte-americanos passaram a perceber que o inimigo era mais ‘duro na queda’do que eles haviam imaginado. Era necessário agir de forma mais enérgica. ‘O pretexto surgiu com os incidentes de Tonquim (agosto de 1964), quando os comandantes de dois barcos norte-americanos, que vigiavam o litoral norte-vietnamita, alegaram ter sido atacados por lanchas do Vietnã do Norte’ (OLIC, 1988, p. 27). Em decorrência disso, o Congresso americano deu ao então presidente, Lyndon Johnson, autorização para iniciar os bombardeios sobre o Vietnã do Norte. Apesar dessa ofensiva, cerca de 75% do território sul-vietnamita continuava em poder dos vietcongues em 1965.


Mas a situação começou a mudar em 1966, quando as operações de guerra norte-americanas começaram a surtir efeito tanto no Vietnã do Norte como nas áreas dominadas pela guerrilha vietcongue no Vietnã do Sul. O Vietnã do Norte, mesmo resistindo bem, teve seu território e sua infraestrutura econômica abalados pelos intensos bombardeios, e no Vietnã do Sul, áreas que pertenciam aos vietcongues foram perdidas.


Apesar dessas vitórias, a situação dos EUA não estava nada fácil. Além de ter um forte apoio popular, os vietcongues conheciam muito bem as florestas e regiões montanhosas, o que lhes dava ampla vantagem nas batalhas de guerrilha. Nesse período, outro fator de preocupação para os norte-americanos começou a surgir: ‘a opinião pública mundial e a norte-americana , em particular, mostravam-se cada vez mais contrárias a participação dos EUA na guerra’. (OLIC, 1988, p. 29).


Para aproveitar essa situação, os vietcongues, junto com o Vietnã do Norte, planejaram fazer uma forte ofensiva contra o Vietnã do Sul. Os ataques começaram no dia 31 de janeiro de 1968 (durante os feriados do ano novo lunar vietnamita, o Tet) e ficaram conhecidos como Ofensiva do Tet. A idéia era abalar os adversários militar e psicologicamente, causando um grande número de baixas e conquistando o maior número possível de províncias e cidades do Vietnã do Sul, principalmente Saigon. Apesar de seu início fulminante, na segunda semana de combates os sul-vietnamitas e norte-americanos retomaram o controle da situação e assumiram novamente as regiões que o inimigo havia conquistado. No entanto, a Ofensiva do Tet cumpriu plenamente o seu objetivo de desgastar ainda mais a imagem das forças armadas e do governo norte-americano perante sua sociedade. As manifestações anti-guerra que já estavam ocorrendo nos EUA e ao redor do mundo aumentaram ainda mais.


A Ofensiva do Tet, que marca o fim da primeira fase da guerra, teve três conseqüências imediatas: a suspensão dos bombardeios norte-americanos sobre o Vietnã do Norte, que vinham ocorrendo desde 1965; o início das conversações de paz em Paris (maio de 1968), visando buscar uma solução política para o término do conflito; a tentativa de vietnamização da guerra, com a saída gradativa dos efetivos militares norte-americanos (OLIC, 1988, p. 31).


4.4.3 Segunda fase da guerra: a vietnamização do conflito


Richard Nixon quando assumiu o governo dos Estados Unidos, em 1969, estava disposto a cumprir sua promessa de campanha de ‘trazer os rapazes para casa’. No entanto, a decisão norte-americana de só deixar o Vietnã quando a ajuda dos norte-vietnamitas aos vietcongues cessasse fez com que as negociações de paz em Paris ficassem enroladas por mais de três anos.


Enquanto isso, os combates diminuíam em número e intensidade, à medida que os soldados norte-americanos iam sendo mandados de volta para casa. Os que ficavam, por sua vez, estavam com o moral cada vez mais abalado. ‘O uso de drogas, as deserções, as idéias negativas sobre a guerra – trazidas pelos novos recrutas – e o não acatamento de ordens dos oficiais […] mostram claramente o estado de ânimo em que viviam os pracinhas norte-americanos no Vietnã’ (OLIC, 1988, p. 31).


No dia 27 de janeiro de 1973 o acordo de paz foi firmado em Paris, e no dia seguinte anunciou-se o cessar-fogo. No final de março do mesmo ano, Nixon afirmou ao povo norte-americano que os Estados Unidos haviam conquistado uma ‘paz honrosa’ no Vietnã. O Vietnã do Norte saiu claramente fortalecido do episódio, já que o acordo de paz dividiu o Vietnã do Sul em áreas de domínio do vietcongue e do exército do Vietnã do Norte, e em áreas do domínio de Saigon. Mesmo com a ajuda financeira e bélica norte-americana, que continuaria sendo enviada, acreditava-se que o governo do Vietnã do Sul não duraria muito mais tempo.


4.4.4 Terceira fase da guerra: o ato final


O acordo de Paris, entre outras coisas, estabeleceu a retirada total dos assessores e das tropas estrangeiras em um prazo de 60 dias; a criação de um novo governo no Vietnã do Sul, eleito democraticamente sob a supervisão de observadores internacionais; e a troca de prisioneiros.


Fora a troca dos prisioneiros de guerra e a retirada dos soldados norte-americanos, pouco do acordo foi cumprido. Vivia-se uma ‘paz de mentira’, onde cada um dos lados queria tirar o máximo de vantagens possível.


Com os EUA vivendo uma grave crise interna, que acabaria com a renúncia do presidente Nixon, a ajuda prestada ao Vietnã do Sul passou a ser cada vez menor. Por outro lado, o Vietnã do Norte recebia um forte auxílio da URSS. Aproveitando-se disso, as tropas do vietcongue e do Vietnã do Norte passaram a avançar sobre as áreas antes dominadas pelo Vietnã do Sul.


No final de março de 1975, metade do Vietnã do Sul já estava ocupada pelos comunistas, e experts militares previam que a ação definitiva do conflito aconteceria em Saigon, para onde convergiam os refugiados civis, o exército sul-vietnamita em retirada e as tropas ofensivas vietcongues e norte-vietnamitas (OLIC, 1988, p. 38).


Gerald Ford, que havia substituído Richard Nixon na Casa Branca, afirmou no dia 24 de abril de 1975 que a ‘Guerra do Vietnã havia terminado, pelo menos no que dizia respeito aos EUA’ (OLIC, 1988, p. 38). Poucas horas depois de os últimos americanos terem partido, na manhã do dia 30 de abril, os portões do palácio presidencial de Saigon foram derrubados por tanques norte-vietnamitas. Com a rendição incondicional dos representantes do governo sul-vietnamita, a Guerra do Vietnã estava terminada.


4.4.5 O saldo da Guerra


Dos 2,7 milhões de norte-americanos que foram ao Vietnã, 60 mil perderam a vida e 300 mil foram feridos. A maioria dos 566 prisioneiros norte-americanos que foram libertados pelos vietnamitas fez declarações públicas criticando a atitude dos EUA na guerra.


Para o povo vietnamita o preço pago pelo conflito foi bem maior. O país teve quase 30% da sua superfície arável inutilizada por bombas, armas químicas e napalm. No sul do Vietnã o saldo da guerra foi o seguinte: ‘três milhões de desempregados, quatro milhões de analfabetos […], 360 mil mutilados, oitocentas mil crianças órfãs, um milhão de viúvas, duzentas mil prostitutas, dezenas de milhares de viciados, mendigos e delinqüentes’ (VIZENTINI, 2006, p. 84). O saldo total de mortos, segundo o autor, foi de 2 milhões de pessoas, a maioria delas civis.


5. Metodologia de pesquisa


5.1 Análise de conteúdo


A partir de uma concepção ampla, a análise de conteúdo pode ser considerada um método usado pelas ciências humanas e sociais que tem como finalidade a investigação de fenômenos simbólicos através de diferentes técnicas de pesquisa. Durante o trabalho de análise, o pesquisador se vale da inferência, que nada mais é do que uma dedução feita de maneira lógica a respeito dos dados que estão sendo avaliados. A inferência serve para trazer à tona aquilo que não está explícito, como, por exemplo, as impressões que um repórter teve ao realizar a matéria, ou as intenções do entrevistado ao responder às perguntas feitas na entrevista.


Em seu artigo ‘Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação’, Wilson C. da Fonseca Júnior cita as três características fundamentais que a análise de conteúdo possui atualmente na visão de Krippendorff:




orientação eminentemente empírica, exploratória, ligada a fenômenos reais e com finalidade preditiva; transcendência das noções de conteúdo normais, abrangendo as idéias de canal, mensagem, sistema e comunicação; uma metodologia própria, que possibilita ao investigador programar, avaliar, e comunicar de forma crítica um projeto de pesquisa com independência de resultados (FONSECA JÚNIOR, 2006, p. 286).


Para Krippendorff (apud FONSECA JÚNIOR, 2006, p. 287-288), ao adotar a análise de conteúdo, o pesquisador deve considerar os seguintes marcos de referência:


Primeiro, os dados, tais como estes se apresentam ao analista: por serem os elementos básicos da análise de conteúdo, os dados formam a superfície que o analista tem de penetrar. Por esse motivo é importante deixar claro quais dados estão sendo analisados e como eles foram definidos.


Segundo, o contexto dos dados: não se pode ignorar que um discurso ocorre em função de um determinado contexto e que certas condições desse contexto influenciam na elaboração do discurso. Desse modo, é importante explicitar qual o contexto dos dados, que deve ser delimitado respeitando os problemas práticos e convenções de cada disciplina. A mesma mensagem pode ser analisada de maneira diferenciada no âmbito da sociologia, psicologia, comunicação ou ciências políticas.


Terceiro, o conhecimento do pesquisador: se o texto científico, propriamente dito, se configura como um discurso, os conhecimentos e interesses do pesquisador também ajudam a determinar a construção do contexto no qual as suas inferências se realizarão. Desse modo, torna-se necessário que os pressupostos formulados pelo pesquisador a respeito da relação entre os dados e seu contexto sejam explicitados.


Quarto, o objetivo da análise de conteúdo: todas as análises de conteúdo devem enunciar, de forma clara, o objetivo ou a finalidade de suas inferências. Os estudos exploratórios feitos preliminarmente podem ajudar o pesquisador a decidir qual o melhor enfoque a ser dado para o seu trabalho. Esta decisão, por estar diretamente relacionada ao material que será analisado, é muito importante. Normalmente, os projetos de análise de conteúdo contém um objetivo geral e vários objetivos específicos.


Quinto, a inferência como tarefa intelectual básica: toda análise de conteúdo tem como tarefa relacionar os dados obtidos com certos aspectos do seu contexto. Uma coisa é analisar as manchetes de determinado jornal, outra bem distinta é compreender como o público reage a essas manchetes, a partir da análise de conteúdo desse material.


Sexto, a validade como critério de sucesso: apesar da análise de conteúdo ser motivada justamente pela falta de provas diretas a respeito dos fenômenos analisados, que são o objeto da inferência, é preciso que se estabeleçam critérios para a validação de resultados, para que dessa forma outras pessoas possam comprovar a exatidão das inferências.


5.1.1 As etapas


A pesquisadora francesa Laurence Bardin (apud FONSECA JUNIOR, 2006, p. 288-303) estruturou o método da análise de conteúdo em cinco etapas distintas: organização da análise; codificação; categorização; inferência; tratamento informático.


Quanto à organização da análise: a análise de conteúdo é organizada em três etapas cronológicas:


Pré-análise: trata do planejamento do trabalho que será elaborado e procura sistematizar as idéias iniciais através do desenvolvimento de sucessivas operações, que são contempladas pelo plano de análise;


Exploração do material: trata da análise propriamente dita. Envolve operações de codificação feitas a partir de regras formuladas anteriormente. Quando a pré-análise é bem feita, essa fase se restringe à mera administração das decisões tomadas previamente;


Tratamento dos resultados obtidos e interpretação: os resultados brutos devem ser tratados de uma maneira que eles se tornem válidos e significativos. As operações estatísticas, quando são usadas, permitem que sejam feitos modelos, quadros de resultados e diagramas. As inferências do analista podem ser propostas a partir desses resultados.


Antes de definir qual será o corpus do trabalho, o pesquisador deve realizar a leitura flutuante. Esse processo ocorre quando se tem o primeiro contato com o material que será analisado, com a intenção de conhecer o texto e se deixar invadir pelas impressões e orientações que este transmite. A realização da leitura leva à escolha do referencial teórico e do tema que será abordado, passando também pela formulação dos objetivos, das hipóteses de pesquisa e do problema. Feito isso, ‘o próximo passo será a constituição do corpus, ou seja, a definição do conjunto de documentos a serem submetidos à análise’ (FONSECA JÚNIOR, 2006, p. 292).


As decisões tomadas a respeito do corpus condicionam a ênfase que será dada na pesquisa (análise qualitativa ou quantitativa). Quando o volume de material a ser analisado for muito grande, procedimentos de estatística deverão ser adotados para que se tenha uma visão de conjunto, o que exige uma análise quantitativa. Num caso como esse, perde-se em profundidade, mas ganha-se em abrangência. Caso o objetivo seja aprofundar o conteúdo, o processamento de um grande volume de dados torna-se impraticável, devendo-se então optar pela realização de uma análise qualitativa.


Quanto à codificação: é nessa etapa que os dados brutos são transformados de forma sistemática, segundo regras de classificação, agregação e enumeração, com o objetivo de esclarecer para o analista quais são as características do material selecionado. A principal função da codificação é fazer a ligação entre o material que foi escolhido para a análise e a teoria que será usada pelo pesquisador. Essa etapa é dividida em três fases distintas:


a) o recorte – onde é feita a escolha das unidades de contexto e de registro;


b) a enumeração – onde são escolhidas as regras de enumeração que serão usadas;


c) a classificação e agregação – onde é feita a escolha das categorias (categorização), que será melhor explicada no item seguinte do trabalho.


As unidades de registro são consideradas partes de uma determinada unidade de amostragem, que já foi anteriormente estabelecida na etapa de constituição do corpus. Se a unidade de amostragem for um livro, por exemplo, as unidades de registro podem ser alguns de seus personagens, ou alguns de seus capítulos. Para que as unidades de registro sejam compreendidas corretamente, muitas vezes é necessário fazer referência ao contexto em que elas estão inseridas. É aí que entram as unidades de contexto, muito úteis para a compreensão do verdadeiro sentido de determinadas mensagens. Já as regras de enumeração dizem respeito ao modo de quantificação das unidades de registro que conduzirão a determinação de índices.


Quanto à categorização: essa etapa consiste em classificar e reagrupar as unidades de registro em um reduzido número de categorias, tendo como objetivo tornar compreensível a totalidade dos dados e a sua diversidade. Os critérios de categorização, segundo Bardin, ‘[…] podem ser semântico (categorias temáticas), sintático (verbos, adjetivos), léxico (classificação das palavras segundo seu sentido) e expressivo (categorias que classificam as diversas perturbações da linguagem, por exemplo)’ (apud FONSECA JUNIOR, 2006, p. 288). A categorização ainda envolve outras duas etapas que são a classificação e o inventário. A primeira trata de repartir os elementos, reunindo todos eles em grupos similares de maneira que seja conseguida uma organização das mensagens. Já a segunda se restringe a apenas isolar os elementos.


Quanto à inferência: esta é a parte mais fértil da análise de conteúdo, justamente por estar concentrada nos aspectos implícitos da mensagem que está sendo analisada. O analista lê o material buscando descobrir o que está nas entrelinhas, tudo aquilo que mesmo não estando explícito acaba sendo transmitido pela mensagem. Esse procedimento é usado no campo da comunicação para se descobrir em que condições foram produzidas as mensagens analisadas, ou seja, quais variáveis influenciaram o emissor da mensagem. Essas variáveis podem ser sociológicas, psicológicas ou culturais ou até mesmo serem relativas ao contexto em que a mensagem foi produzida.


Desse modo, percebe-se que a análise de conteúdo está fundamentada na articulação entre aquilo que o texto apresenta na sua superfície, de forma ampla, e os aspectos que determinam as suas características. As inferências podem ser divididas em dois tipos, as específicas e as gerais. As específicas são aquelas que possuem vínculo com o caso específico do problema que está sendo analisado. Já as gerais são aquelas que extrapolam o caso específico do objeto que está sendo investigado.


Quanto ao tratamento informático: o uso do computador na análise de conteúdo é dividido, atualmente, em três tipos principais:


** auxílio em estudos e descobertas, usado quando se tem a intenção de criar um panorama generalizado do conteúdo analisado (classes, variedade e distribuição dos dados);


** análises estatísticas, utilizadas para classificar, reorganizar, transformar e descrever os dados obtidos através de índices numéricos, tendo como objetivo o seu processamento em softwares;


** análise de conteúdo por computador, quando o objetivo é a realização de inferências, ou seja, representar determinado aspecto do contexto social dos dados.


5.2 A escolha das categorias


Para analisar o livro-reportagem O Gosto da Guerra, do jornalista José Hamilton Ribeiro, este trabalho dividirá a obra referida em categorias temáticas. Cada uma dessas categorias escolhidas representa um tópico que mereceu destaque durante a leitura do livro. A idéia deste trabalho é, a partir da análise desses tópicos e da maneira na qual José Hamilton os abordou, observar como foi feita a apuração jornalística que levou à construção de O Gosto da Guerra. Para isso, foram escolhidas as categorias de análise que representam de forma bastante ilustrativa o que foi: a guerra propriamente dita, suas conseqüências, seus protagonistas e suas vítimas; o trabalho de apuração do repórter; o acidente sofrido por José Hamilton e seus desdobramentos. Em síntese, as categorias temáticas a serem trabalhadas no próximo capítulo serão as seguintes: a ida; o repórter ‘soldado’; os soldados norte-americanos; a rotina da guerra; os vietcongues; o acidente; a vida no hospital; a participação norte-americana; as religiões vietnamitas; as mulheres da guerra; a volta décadas depois.


6. Um repórter disposto a colocar a própria vida em risco


Ao cruzar o levantamento teórico realizado neste trabalho, com a leitura de O Gosto da Guerra, percebe-se toda a riqueza da obra escrita por José Hamilton Ribeiro. Além de ter sido feito a partir de um excelente trabalho jornalístico, no qual o repórter colocou em risco não só a sua integridade física, mas a própria vida, o livro oferece uma leitura dinâmica e sempre envolvente. O autor fez questão de não se ater apenas ao conflito armado propriamente dito, e sim mostrar as suas implicâncias na vida cotidiana dos vietnamitas, os reflexos no núcleo familiar dos nativos, no seu comércio e na sua alimentação, entre tantas outras coisas que podem mudar na rotina de um povo quando a sua nação está em guerra. O lado norte-americano também não foi esquecido. Os efeitos da guerra nos soldados, os seus traumas, medos e perturbações adquiridos no campo de batalha, os seus hábitos sexuais, as suas vestimentas e as suas opiniões a respeito da participação dos Estados Unidos no conflito, tudo isso é tratado na obra.


José Hamilton cumpre, com esse livro-reportagem, o papel fundamental do jornalismo de apurar, registrar e divulgar os fatos para o público interessado. Para isso, o repórter fez um relato ao mesmo tempo objetivo, humanizado e cheio de impressões suas a respeito do que viu, viveu, sentiu e sofreu durante o seu período no Vietnã. E na sua busca por informações inéditas, diferentes daquelas obtidas nas coletivas de imprensa ou fornecidas pelos press releases do governo norte-americano, ele conversou com os mais diversos tipos de pessoas. Enfermeiras, médicos, padres, soldados norte-americanos, oficiais norte-americanos, chefes de família vietnamitas, outros jornalistas, um suposto vietcongue (era praticamente impossível para um estrangeiro saber quem de fato era vietcongue), enfim, todos que passaram pelo caminho de José Hamilton e se dispuseram a falar foram ouvidos por ele.


Enquadrar O Gosto da Guerra dentro de uma classificação de livro-reportagem rígida é uma tarefa praticamente impossível. Isso porque, a obra tem trechos de: reportagem de ação, como na cena em que José Hamilton pisa na mina terrestre, descrita com uma riqueza que a torna cinematográfica; diário de bordo, quando o repórter conta como foi a sua saída do Brasil e tudo o que aconteceu até chegar ao Vietnã; crônica de costumes, quando relata a sua visita a um pagode budista ou quando comenta as roupas usadas pelos soldados norte-americanos; livro de memórias, quando José Hamilton descreve os seus difíceis dias no hospital, seus medos, seus desejos, suas angústias e frustrações.


Umas das melhores partes do livro são aquelas em que se faz uma espécie de crônica de costumes do Vietnã. Assim como os principais nomes do realismo social e posteriormente do new journalism, José Hamilton mostra a realidade concreta, factual, longe das versões espetacularizadas ou oficialescas, tão caras à grande mídia. O autor faz questão de não restringir o relato da guerra a apenas o que acontece nos salões dos poderosos ou nos campos de batalha, e sim abordar as influências do conflito na vida cotidiana das pessoas. Hábitos alimentares, a estrutura familiar, a religiosidade, a forma de se vestir e de se divertir, a vida sexual, a maneira de encarar a guerra, todos esses aspectos foram abordados, e sempre que possível, a visão dos dois lados do conflito (norte-americanos e sul-vietnamitas de um lado, e vietcongues do outro) foi mostrada.


Devido a esse fato, O Gosto da Guerra possui um caráter não só jornalístico, mas também antropológico. Até porque, o próprio trabalho de apuração realizado por José Hamilton, pode ser considerado um belo exercício de etnografia. Assim como Gay Talese colocou um capacete e foi se misturar aos operários que construíam a ponte Verrazano-Narrows para escrever A Ponte, José Hamilton vestiu um uniforme e uma mochila e foi para o front se misturar com os soldados norte-americanos. Tamanho foi o envolvimento do repórter que acabou ele mesmo virando notícia ao pisar numa mina terrestre durante uma ‘operação de limpeza’ do exército norte-americano.


Em resumo, O Gosto da Guerra não é um livro muito preocupado com heróis militares ou figurões políticos, e sim com crianças, prostitutas, médicos, enfermeiras, contrabandistas, padres e mães. Enfim, é uma obra que fala de todos estes personagens que enriquecem o amálgama da guerra, mas que normalmente são deixados à margem das manchetes e holofotes. Mas para fazer, em apenas um mês, todo esse levantamento jornalístico, é preciso não apenas um repórter disposto a sujar os sapatos, e sim um que esteja disposto a colocar a própria vida em risco.


Seguindo os pressupostos metodológicos apresentados no capítulo anterior, analisaremos o livro de acordo com as categorias temáticas eleitas. Elas servirão para ilustrar o que já foi dito até agora sobre O Gosto da Guerra, e também para mostrar quais aspectos da obra nos pareceram mais relevantes.


6.1 A ida


Quando o redator-chefe da revista Realidade, Paulo Patarra, chegou para José Hamilton no final de 1967 e lhe disse que estava confirmado o envio de um repórter da revista para o Vietnã, e que o pessoal da redação dizia que ele tinha preferência, este não hesitou um instante e disse na hora que topava. ‘Todo repórter é também um aventureiro. Está sempre de espírito preparado para enfrentar situações novas e aventuras. E o Vietnã era uma grande, uma fantástica aventura’ (RIBEIRO, 2005, p. 40).


Depois de pronto o passaporte e feito o seguro de vida, no dia 17 de fevereiro de 1968 José Hamilton seguiu para Paris, cidade que tinha representações diplomáticas do Vietnã do Norte e do Vietnã do Sul, a fim de conseguir visto de entrada para os dois países. No final do mês, após ter cumprido pela metade a sua missão na capital da França, já que só conseguiu visto para o Vietnã do Sul, o repórter seguiu para Nova Delhi, na Índia, de onde pegaria o voo que o levaria para Saigon. A explicação para não ter conseguido o visto para o Vietnã do Norte foi a seguinte: ‘Só entrava no Vietnã do Norte jornalista previamente avalizado pelo PC de cada país, quer dizer, só neguinho que estava a fim de falar bem’ (RIBEIRO, 2005, p. 108).


Dentre os passageiros que estavam no aeroporto de Nova Delhi no dia 6 de março, José Hamilton era o único que ia para o Vietnã. Já no avião, ele encontrou um jovem vietnamita, estudante de medicina, vindo da Suíça que também estava indo para Saigon. A sua primeira impressão foi de que o Vietnã era muito melhor que a Índia.


Não fosse o grande número de aviões de bombardeio – pousados ou levantando voo com enorme barulho – e o rombo que o bombardeio da ofensiva do Tet tinha produzido na torre de controle do aeroporto alguns dias antes, ninguém diria que se estava chegando à capital de um país em guerra. Gente completamente descontraída no aeroporto, mínimas formalidades policiais e de alfândega para o desembarque, filas de motoristas de praça esperando passageiros (RIBEIRO, 2005, p. 44-45).


6.2 O repórter soldado


Após ter ficado dez dias em Saigon e arredores como civil, José Hamilton se tornou um ‘soldado americano’. Para se tornar um correspondente de guerra, era necessário primeiro credenciar-se no Centro de Imprensa do governo do Vietnã do Sul e depois no MACV (Comando de Assistência Militar ao Vietnã, dos Estados Unidos), sendo que o segundo era o que valia. Feito o cadastramento e assinado o documento isentando o governo norte-americano de qualquer responsabilidade sobre o que viesse a acontecer com o repórter durante o trabalho junto às tropas do Tio Sam, ‘[…] recebe-se uma papelada imensa com mil informações sobre a guerra, o horário e o regulamento das entrevistas coletivas diárias, os aspectos morais e jurídicos da participação americana, o regulamento e as instruções de como portar-se’ (RIBEIRO, 2005, p. 47). As bases militares possuem ‘clubes de imprensa’ com bar, restaurante, dormitório, máquina de escrever, telefone, e alguns tinham até ar-condicionado e cinema ao ar livre. Mas de todas essas facilidades, teve uma que impressionou José Hamilton em especial: ‘[…] para ir a qualquer base militar americana avançada o correspondente tem avião de graça, desde que avise da viagem com uma antecedência de seis horas’ (RIBEIRO, 2005, p. 47).


Feita essa parte burocrática, era necessário adquirir os mais de vinte itens que constavam na lista de equipamentos do correspondente de guerra. O material podia ser comprado em um local que tinha o sugestivo nome de ‘Mercado de ladrões’ de Saigon. Além do uniforme completo, constavam na lista: pastilhas para purificar água, pastilhas de sal, cobertor, mosquiteiro de filó contra pernilongo, colchonete, cantil, lanterna, papel higiênico, mapa, latas de comida e kit de primeiros socorros.


Dos vinte e tantos itens que compunham a lista, dois deixaram José Hamilton intrigado: pistola e camisinha. Mas o fato é que a vida de correspondente de guerra não é feita apenas de regalias e conversas com militares, os repórteres também passam trabalho e correm riscos ao acompanharem as tropas. A justificativa para a pistola é simples, quem acompanha uma operação militar é visto pelo inimigo como um combatente qualquer. E os vietcongues normalmente não fazem prisioneiros, eles simplesmente fuzilam após o interrogatório. Então, ‘a maioria dos correspondentes de guerra no Vietnã carrega uma pistola para ter oportunidade de se matar no caso de ser ferido (ou feito prisioneiro)’ (ARNETT apud RIBEIRO, 2005, p. 128). Já a camisinha tinha uma finalidade mais trivial. Ela servia como uma espécie de bolsa para embalar dinheiro, cigarro, fósforos e outras coisas que não podiam ser molhadas quando se ia atravessar um rio ou banhado.


E de fato, José Hamilton, enquanto acompanhava a Companhia D do exército norte-americano, cruzou rios, caminhou pelo mato, subiu barrancos e teve que caminhar com água pela cintura por um longo tempo para atravessar o brejo de uma lagoa. E numa dessas missões, em que a Companhia tentava localizar e destruir uma caverna vietcongue, quando todos estavam chafurdados numa água barrenta, com as armas na altura da cabeça, o inimigo foi avistado, armado com uma metralhadora e a apenas 100 metros de distância. A situação de estar à mercê de um vietcongue deixou José Hamilton apavorado. ‘Meu corpo todo estremeceu, pois tive a certeza de que aquele homem sozinho, com apenas uma metralhadora, poderia matar-nos a todos em questão de minutos’ (RIBEIRO, 2005, p. 14). No entanto, apesar do susto o vietcongue apenas observou a situação mais um pouco e sumiu no outro lado da colina em que se encontrava. Quando perguntou para Shimamoto, o fotógrafo japonês que havia contratado para lhe acompanhar, por que ele não tinha tirado nenhuma foto de toda aquela situação, o oriental deu uma resposta que parecia prever o pior que ainda estava por vir: ‘Não tem importância. Ainda vou achar coisa melhor’ (RIBEIRO, 2005, p. 14).


6.3 Os soldados norte-americanos


‘Como é bom ser soldado norte-americano! O diabo é a guerra – não fosse ela, a vida aqui em Quang Tri seria até bem gostosa’ (RIBEIRO, 2005, p. 3). Claro que esse comentário tem uma boa carga de ironia, mas mesmo assim ele não deixa de ser verdadeiro. O governo dos Estados Unidos montou uma estrutura invejável para suprir as necessidades de seus soldados no Vietnã..


Cada soldado, por mais distante que fosse o local de sua operação, tinha duas refeições quentes por dia. Cerveja e revista de mulher pelada também eram artigos que não podiam faltar, assim como lâmina de barbear, cigarro, chocolate, chicle, entre outras coisas. Tudo de graça e em abundância. Todas essas providências eram tomadas para que o moral das tropas se mantivesse sempre alto. Além dessas regalias, outras duas coisas ajudavam a manter elevada a auto-estima dos soldados. Uma delas era o rateio da morte, para cada soldado norte-americano morto, havia 13 vietcongues abatidos. Outra coisa era o correio, que não ficava uma semana sem entregar cartas com notícias da América para os soldados. Para os que nada recebiam, fora criado um serviço especializado em escrever cartas fictícias, com letra feminina e nas quais uma suposta menina, de quem o soldado provavelmente não se lembrava, prometia aguardar ansiosamente o seu retorno para sua cidade natal.


Outro fator que levantava a moral dos soldados era a certeza de que eles jamais seriam abandonados no campo de luta. E o mais incrível é que em média, um soldado ferido levava vinte minutos para ir do local em que estava na batalha até um hospital. Esse tempo é menor do que se leva para socorrer um ferido em um acidente de trânsito em Chicago ou Nova York.


No entanto, ‘apesar de tanta coisa boa, os GI fazem o ‘jogo da mulher amada’para ser mantida a ilusão de que faltam poucos dias para voltarem – vivos! – para casa’ (RIBEIRO, 2005, p.5). O jogo consistia em dividir a foto de alguma beldade em tantos pedaços quantos são os dias que o soldado ainda tem de ficar na guerra. Feito isso, cada dia que passa o soldado pega a caneta e cobre um pequeno pedaço do corpo de sua ‘amada’.


Uma coisa que chamou a atenção de José Hamilton e do seu fotógrafo japonês foi a quantidade de soldados tatuados e também as inscrições dos jeans e das camisetas que eles usavam. O jeans mais procurado em Saigon era o que tinha escrito: ‘Quando eu morrer, vou para o céu, pois meu inferno já vivi no Vietnã’ (RIBEIRO, 2005, p. 6). Na camiseta de outro dizia o seguinte: ‘Estou com fome, quero um vici [Uma das formas usadas pelos soldados norte-americanos para se referir ao inimigo. Vici vem da abreviatura de vietcongue, v.c.] para o almoço’ (RIBEIRO, 2005, p.6). Segundo José Hamilton, essas inscrições diziam muito a respeito do estado psicológico em que se encontravam os ‘guerreiros ianques’.


Para passar o tempo, os soldados liam e escreviam cartas, comiam chocolate, jogavam baralho, liam o jornal militar, fumavam um cigarro, tomavam uma cerveja gelada… Já o problema relacionado à vida sexual dos combatentes, era resolvido com uma semana de férias, com literalmente tudo pago em um país amigo da região. Os países escolhidos para o turismo sexual dos soldados foram Tailândia, Formosa, Japão, Filipinas e Coréia do Sul.


Teoricamente, essa semana de amor desenfreado deveria servir para suprir as necessidades dos soldados de tal maneira que eles permaneceriam as outras 47 semanas de sua estada no Vietnã sem sexo. Mas, ‘na prática, ao lado de cada grande local de concentração de soldados no Vietnã há, também, um grande bordel. Fora a atividade dos inferninhos, boates e bares nas cidades, os quais mantêm esses nomes só para a polícia ver. Ou não ver’ (RIBEIRO, 2005, p. 7).


Mas é claro que nem tudo é farra e distração na vida dos soldados. Nas conversas que teve com seus companheiros de tropa e também com o pessoal do hospital, no período em que ficou internado, José Hamilton pôde perceber vários deles com graves distúrbios emocionais e psicológicos. Dentre eles, um dos que mais lhe impressionou foi um sargento chamado Anthony (Tom).


Ao contrário da maioria dos sargentos ianques, grandes, pesados e truculentos, Tom é ligeiro e magrinho. Ele garante que já matou, pessoalmente, 34 vietcongues.


Tom fala muito em matar, em ‘ver os miolos’- é o único assunto que o empolga. Está indo para o seu terceiro ano no Vietnã e diz que, terminando a guerra, pretende ser mercenário na África, na América Latina ou ‘em qualquer lugar onde me paguem 500 dólares por mês. Ele se acha preparado para fazer guerra contra guerrilha em qualquer lugar do mundo. Às vezes se trai. Quando, por exemplo, lhe pergunto o que faz do seu soldo: – Deixo quase tudo nos Estados Unidos, só recebo 30 dólares por mês aqui. Quero ver se com essa economia arranjo a vida da minha família, que tem estado com muita má sorte nos últimos tempos. (RIBEIRO, 2005, p.10-11).


Os quatro soldados que assistem à conversa discordam de Tom, mas ele segue irredutível. Na opinião dele a guerra só deve acabar depois que todos os vermelhos (vietcongues) forem esmagados. Para José Hamilton, o caso de Tom não é mais de fuzil ou de napalm (a coisa mais sensacional que existe, segundo o sargento) e sim de tratamento mental. Sua alma foi envenenada pela guerra.


Outro caso de perturbação provocada pelo campo de batalha é o de Peter. José Hamilton o conheceu quando estava internado no 22o Hospital de Cirurgia, na Landing Zone Betty. Peter era o soldado responsável pela farmácia da base e sua vida é atormentada por um pesadelo que o persegue: ‘toda noite ele sonha que o vietcongue assaltou de madrugada a base, as sentinelas estavam dormindo, e os Charlies [uma das formas usadas pelos norte-americanos para se referir aos vietcongues] então cortaram a cabeça de todo mundo’ (RIBEIRO, 2005, p.26). Ele conta que esse pânico começou no dia em que, participando de uma batalha como enfermeiro, teve que ficar cuidando de dois feridos dentro de uma casinha isolada, enquanto, na direção oposta a batalha continuava. Por algum motivo então, a ação mudou de rumo, e um grupo de soldados ianques atacou a casinha com um lança-chamas, pensando que ela havia sido ocupada pelo inimigo. ‘Quando senti a onda de calor sufocante, e as labaredas lambendo o teto de palha, percebi que íamos morrer assados. Saí pela porta dos fundos e, por pouco, não fui atingido por uma rajada de balas’ (RIBEIRO, 2005, p. 26).


Depois disso, Peter não conseguiu participar de mais nenhuma operação. Seu medo, segundo José Hamilton, raia à psicose. Desde então, ele dorme e passa a maior parte do seu tempo livre escondido em um abrigo individual que conseguiu convencer os superiores a construírem especialmente para ele. O abrigo é um buraco cavado no chão e protegido por sacos de areia que não oferece nenhuma condição para se ficar dentro dele por um longo período. Mesmo assim, Peter nunca sai do seu, nem mesmo quando chove e água deixa tudo empoçado. ‘Tenho dois filhos, companheiro. E choro só de pensar que posso morrer bestamente aqui e deixar os guris sem pai lá nos EUA…’ (RIBEIRO, 2005, p. 26).


6.4 A rotina da guerra


José Hamilton conta que a primeira impressão que teve ao chegar ao Vietnã foi a de que havia descido no país errado. O aeroporto funcionava, as lojas estavam abertas, o câmbio negro de moeda rolava normalmente e as crianças seguiam indo para a escola. Ele chegou a se perguntar onde é que estava a guerra que via todo dia pela televisão.


Vai uma distância muito grande entre o que a tevê mostra (ou o cinema) e a realidade de uma guerra. A tevê e o filme reúnem episódios, editam, põem ritmo, enfiam música e efeitos especiais, e no fim, o que foi uma coisa monótona e arrastada – como a Guerra do Vietnã – , acaba um espetáculo glamoroso o suficiente (se não falso o suficiente) para ganhar estatuetas do Oscar e Leões de Cannes (RIBEIRO, 2005, p. 107).


Mas é claro que mesmo não tendo o ritmo frenético e espetacular que a televisão e os filmes mostram, a guerra acaba alterando a vida e a rotina das pessoas. Em Saigon, capital do Vietnã do Sul e uma das cidades mais atingidas e afetadas pelo conflito, bairros inteiros foram destruídos por incêndios e bombardeios. Além disso, a chegada de quase um milhão de soldados estrangeiros contribuiu muito para o aumento da prostituição e do contrabando no país.


Existia em Saigon, no ano de 1968, uma instituição com o curioso nome de ‘Mercado de Ladrões’. Lá se achava de tudo e a um bom preço, só não convinha o cliente querer saber muitos detalhes sobre a origem dos produtos. Outra grande fonte de contrabando eram os famosos piéx (post of exchange – P. EX), que numa tradução literal significa posto de troca. O piéx é a loja militar dos americanos, e seus produtos só eram vendidos para o pessoal em serviço, civil ou militar. Nele podia se encontrar desde geladeira, até cueca e equipamento de cinema. E tudo por um preço baixo, já que os produtos além de gozarem de um desconto especial, eram isentos de impostos tanto no Vietnã quanto nos Estados Unidos. ‘No Vietnã, ter um cartão de P.EX quer dizer ter um GI amigo que compre, com seu cartão, as coisas que o outro quer e que depois vai vender no mercado negro de Saigon e de outras cidades'( RIBEIRO, 2005, p. 89). Além do uso indevido do cartão, muitas mercadorias são roubadas ou desencaminhadas dos P.EX para depois serem vendidas nas ruas a preços geralmente mais baixos que os cobrados nas lojas militares.


José Hamilton considera que em termos de corrupção, a única coisa que talvez supere os P.EX, seja o comércio de certificado de isenção militar. Os certificados custam cerca de 400 dólares e são renováveis anualmente.


Com a guerra, os vietnamitas conseguiam produtos contrabandeados a preços abaixo do valor de mercado, no entanto, o conflito encareceu bastante o preço do arroz, principal alimento da cozinha local. ‘De país exportador de arroz (2 mil toneladas anuais) o Vietnã passou, com a guerra, a receber de fora mais de 60% de suas necessidades’ (RIBEIRO, 2005, p. 81). O arroz importado, além de chegar, devido ao transporte, com um gosto de velho, era mais caro que o nacional. Esse aumento de preço, em uma casa onde geralmente se come arroz três vezes por dia, pesa bastante no orçamento.


Quando José Hamilton chegou a Saigon, no dia 6 de março, o saldo da ofensiva do Tet, ocorrida em fevereiro ainda podia ser visto pelas ruas. Quarteirões ainda ardiam em fogo e bairros inteiros estavam no chão, parecendo mais um campo arado. A quantidade de pessoas sem casa chegava perto de um milhão. A vida voltava às suas mais primitivas condições.


O governo fez questão de espalhar propaganda pela cidade atribuindo a desgraça toda ao vietcongue. ‘Pois nunca vi propaganda tão ineficiente. De todas as pessoas com quem falei a respeito, ouvi uma resposta só: o vietcongue não destrói um quarteirão sequer, e pode até não ser porque não queira. É porque não pode’. (RIBEIRO, 2005, p. 56). Segundo o repórter, o que destrói a cidade é o contra-ataque violento, brutal e desproporcional dos norte-americanos.


Mas não foi apenas a estrutura física dos vietnamitas que ficou abalada. Teve uma outra instituição, essa bem mais difícil de reconstruir, que também sofreu um grave abalo com a guerra.


O peso sobre a família vietnamita de mais ou menos um milhão de soldados estrangeiros – 600 mil americanos e mais uns 400 mil ‘aliados’ da Coréia do Sul, da Tailândia, de Formosa, das Filipinas, muito bem armados de dólares – é enorme. Uma senhora em Saigon me disse que a instituição familiar do Vietnã está a ponto de desabar sob três fogos da guerra: a morte ou a deserção, para o filho; a vergonha e a prisão por furto ou contrabando, para o pai; e a prostituição, para a filha (RIBEIRO, 2005, p. 7).


6.5 Os vietcongues


Os vietcongues não tinham nem de longe o poderio bélico e logístico do exército norte-americano. No entanto, essa desvantagem era compensada com o total conhecimento do território, suas selvas, matas e subterrâneos e também com uma incrível capacidade de se misturar à população civil. Um major norte-americano chegou a afirmar para José Hamilton que não tem como diferenciar um camponês de um combatente. ‘Nós só temos um jeito de saber quando um vietnamita é realmente um vietcongue. É quando o vemos com armas de guerra, atirando contra nós. Fora dessa situação, que é bastante rara, não temos segurança nenhuma’ (RIBEIRO, 2005, p. 27).


Mas essa tática, apesar de ser bastante eficiente, cobra o seu preço. Em decorrência dessa confusão que é causada na cabeça dos soldados ianques, estes acabam atirando em todos aqueles que desconfiam serem inimigos. Desse modo, para eles, se alguém corre é porque tem medo, e se tem medo é vici.


As grandes vítimas dessa tese genial são as crianças. Elas estão brincando na areia de uma rua da sua aldeia, na maior calma possível. De repente, surgem diante de seus olhos dezenas de soldados, armados até os dentes. A única reação que se pode esperar é que saiam correndo, para junto dos pais em busca de segurança. O soldado bem colocado, em condição de perceber que se trata de uma criança, se contém, mas um outro, sem bom ângulo de visão, percebe alguém correndo, lembra da definição e dispara. Está feita a desgraça (RIBEIRO, 2005, p.27-28).


Por essas e outras é que os norte-americanos, para fins de estatística, criaram uma ‘bela’ definição para determinar quem de fato era o inimigo: ‘Vietcongue é um vietnamita morto’ (RIBEIRO, 2005, p. 26). Aliás, José Hamilton relata que os soldados ianques raramente usavam o termo vietcongue. Ou eles diziam Charlie, por associação com o personagem Charlie Chan, ou diziam vici (da abreviatura v.c.).


José Hamilton teve contato com os vietcongues quando visitou um campo de prisioneiros. Mesmo sabendo que a conversa estaria condicionada àquela situação de prisão vivida pelo vietcongue, ele não perdeu a oportunidade de ‘fixar a imagem de alguns desses que são considerados os melhores guerrilheiros do mundo’ ( RIBEIRO, 2005, p. 28). Mas o que o repórter queria mesmo era vê-los em liberdade, em plena ação. Então, através de um contato fornecido por um amigo de Paris, foi ao encontro de uma pessoa que poderia levá-lo até o vietcongue. O personagem dizia que era perigoso, não valia a pena e mais confundia do que ajudava. Aquilo parecia ser uma penosa obrigação para ele. Após muito insistir, José Hamilton combinou que quando voltasse do front, tornaria a falar com o seu contato, e que este se entenderia com o estranho homem para que assim ele obtivesse uma resposta concreta a respeito de sua incursão ao mundo do vietcongue.


A obsessão do repórter era justificada:




O negócio era este: ao redor de Saigon, num cordão de às vezes apenas algumas dezenas de quilômetros, há vários postos do vietcongue. São postos subterrâneos, onde se concentram armas, munições, combatentes e até se imprimem jornais. Os subterrâneos do vietcongue são a coisa mais fantástica, quase lendária, desta guerra, e poder ver e fotografar um deles, em pleno funcionamento, mexe com a cabeça de qualquer um (RIBEIRO, 2005, p. 29).


Devido ao acidente com a mina terrestre, José Hamilton não pôde realizar esse seu desejo.


Apesar de ter todo esse aparato subterrâneo, os vietcongues não possuíam coisas que podem parecer elementares, como hospitais. Em algumas aldeias comandadas pelos guerrilheiros havia um serviço de assistência médica, geralmente coordenado por mulheres que nem médicas eram. Um capitão norte-americano contou para José Hamilton que os charlies não tinham para onde levar os feridos, assim como não tinham para onde levar os prisioneiros. Outra coisa que o capitão Whitekind comentou foi que os vietcongues jamais se rendem, e mesmo quando atingidos mantêm a sua posição e lutam até morrer. E essa determinação de lutar até as últimas consequências pode ser a explicação para o fato de os norte-americanos, tão fortes e estruturados não conseguirem derrotar um exército de esfarrapados. ‘Questão de convicção. O vietcongue luta por necessidade. Se morrer, foi por uma causa boa, com honra. O americano faz esporte – ‘a tal caçada de animal de grande porte’ – e alguns lutam até com vergonha’ (RIBEIRO, 2005, p. 50).


Para ganhar alguns dólares vendendo fotos, ou para de fato infiltrar-se na imprensa, muitos guerrilheiros vietcongues passaram a freqüentar as redações e os escritórios das agências de notícias de Saigon. Um desses fotógrafos chegou até a proteger os seus ‘colegas’de redação quando os soldados do norte invadiram a sede da Associated Press durante a tomada de Saigon, dizendo que o pessoal era todo gente boa.


Mas teve um episódio que ficou especialmente famoso devido à ardilosidade e esperteza de seu protagonista, e que mostra toda a capacidade de dissimulação do vietcongue.


O caso mais explícito de infiltração vietcongue na imprensa ocidental deu-se com Fam Xuan An.Ele era o chefe do escritório da Time no Vietnã e autor das principais matérias sobre a guerra – daquela que já era a maior revista do mundo. Quando a guerra terminou, veio a notícia: Xuan era um vietcongue infiltrado. Se era bom no jornalismo, era bom também na guerrilha. Xuan era comandante de regimento. Imagine o que ele não aproveitou daqueles papos em off, nas entrevistas com autoridade de Saigon, oficiais do exército e da embaixada (RIBEIRO, 2005, p. 129).


Certo dia, José Hamilton e seu amigo e guia vietnamita Nguyen estavam assistindo uma caçada ao vici em um bairro perto do centro de Saigon. Enquanto observava os soldados sul-vietnamitas e coreanos invadirem e destruírem casas, a dupla foi rodeada por um garotinho que depois de observá-los por alguns instantes sumiu. Pouco tempo depois o menino voltou, perguntou para Nguyen quem eles eram, o que faziam ali e por que José Hamilton estava com uma máquina fotográfica. Após se certificar de que o repórter não era norte-americano, o menino se retirou novamente e logo retornou trazendo um copo de chá em uma bandeja. José Hamilton não entendeu o gesto e consultou Nguyen, que tampouco estava entendendo o que se passava. Aquele tipo de oferecimento não era uma tradição vietnamita. Após hesitar alguns instantes, José Hamilton achou que não havia risco e resolveu beber o chá. Quando terminou, devolveu o copo para o menino e este lhe disse que o homem que havia mandado o chá queria conversar com eles. Sem saber se ia ou não, por desconhecer que tipo de risco corria, o repórter perguntou se o tal homem falava francês, numa tentativa de sair pela tangente. Como a resposta foi afirmativa, ele disse que aceitava o encontro.


O menino os levou até um lugar que era misto de bar e empório. O homem estava sozinho e cumprimentou a dupla com sorrisos. No entanto, recusou-se a falar francês alegando não ter segurança no idioma. Apesar de ter conversado em vietnamita, a todo instante corrigia a tradução feita por Nguyen. ‘Falou pouco, seguro, e depois não quis responder a nenhuma pergunta. Falou do mal que a ocupação estrangeira faz a um país e que o povo só é digno da sua terra quando luta por ela e sabe defendê-la’ (RIBEIRO, 2005, p. 31). Para ele, a luta do povo vietnamita era por apenas uma coisa: ser dono da sua própria casa, e livre, dentro dela. No final, o homem arrematou dizendo que o chá era para José Hamilton saber que os vietnamitas não tinham nada contra o estrangeiro. Segundo ele, todos aqueles que vierem para o bem serão bem recebidos pelo povo.


Quando deixaram o empório e voltaram a acompanhar a ‘caçada’ ela já estava quase no fim e apenas um rapaz sem documentos havia sido preso. Foi então que o repórter percebeu que o seu companheiro estava perplexo e com os olhos arregalados:


‘Hamilton, juro pela minha alma como aquele homem é um vici. Um vici, Hamilton, um vici! (RIBEIRO, 2005, p. 32).

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Roteirista, produtor e diretor do curta-metragem O Bilhete, em fase de pré-produção