Por que razão um garoto paulista, do Alto do Pari, torcedor doente do São Paulo, aquele sólido São Paulo Futebol Clube armado nos anos 1940 e 50 num modesto campinho no contíguo bairro do Canindé, sob a batuta enganosamente sonolenta do gordo Feola, jogaria fora suas mais ardentes energias com um time carioca – no caso o Botafogo Futebol de Regatas – com sede própria no estádio de General Severiano, que podia abrigar 25 mil espectadores?
Pois na mesma época em que o glorioso alvinegro brilhava no Rio de Janeiro, final dos anos 1940, o não menos empolgante tricolor arrasava no campeonato paulista com uma esquadra imbatível, sempre lembrada pelos sãopaulinos eternos: Mário, Savério e Mauro; Bauer, Rui e Noronha; Friaça, Ponce de Leon, Leônidas, Remo e Teixeirinha.
Então, com esses onze, campeões de 1948, quem precisava de Botafogo? A resposta vai por conta dos mistérios da paixão, seja ela qual for, mas que permita uma certa duplicidade malandra no querer. E se for rabicho de futebol, particularmente com o Botafogo, que responda um torcedor e carioca ilustre, o poeta Vinicius de Moraes, de joelhos ante a máquina campeã de 1948 (Oswaldo ‘Baliza’, Gerson e Nilton Santos; Rubinho, Ávila e Juvenal; Paraguaio, Geninho, Pirilo, Otávio e Braguinha):
‘Não se trata de uma paixão, mas de uma senha para a cidadania’.
Ou, explicação mais adequada a um entusiasta de fora, que se pronuncie o jornalista Armando Nogueira, acreano de boa cepa:
‘Botafogo é bem mais que um clube – é uma predestinação celestial.’
Celeiro de seleções
Vinicius e Armando, a propósito, são dois dos grandes botafoguenses citados com carinho neste belo livro sobre os cem anos do time da Estrela Solitária, escrito com a habitual graça e leveza pelo jornalista Sergio Augusto – ele próprio um sofredor de carteirinha, que nas suas peladas de menino, no bairro de Santa Teresa, lá por 1954, já envergava, orgulhoso, uma camisa 9 do Bota.
Essa condição de sofredor ele assume, com garra e alegria, descrevendo, e escrevendo na primeira pessoa, chorando na rampa na hora das derrotas, pulando de júbilo nos momentos triunfais. Ao versar sobre as desgraças que se abatem sobre o time desde sua fundação, entre elas os 21 magros anos sem ganhar o Campeonato Carioca e a humilhante caída para a Segunda Divisão no Campeonato Brasileiro de 2002, o autor pondera com a sabedoria de quem acredita na volta por cima:
‘Isso, porém, faz parte da nossa mitologia, do nosso penchant trágico, da nossa folclórica sina de sofredor…’
No livro, de ótima produção gráfico-visual, em 13 capítulos Sergio Augusto conta a história do clube do coração de uma maneira informal, corrida, aqui e ali, com suaves toques literários, intervindo na narrativa para dar suas opiniões ou revelar seus sentimentos, e dessa forma fugindo aos rigores de uma cronologia chata. Assim, referindo-se aos feitos únicos, memoráveis, ‘coisas que só acontecem com o Bota’, o autor, no capítulo apropriadamente intitulado ‘Petulâncias alvinegras’, menciona um centenário hábito do time:
‘Empanar o currículo dos campeões, por exemplo. Eis um hábito de que muito nos orgulhamos…’
Esses feitos únicos, aliás, são de calar a boca de torcedores de outros timões cariocas da época – como o Flamengo, o Fluminense e o Vasco da Gama. O Botafogo, informa o biógrafo-coruja, foi o primeiro campeão carioca de futebol, em 1906, e o único time que conquistou um tetracampeonato na cidade: em 1932, 1933, 1934 e 1935.
Querem mais?
‘Nenhum clube brasileiro forneceu mais jogadores à Seleção Brasileira que o Botafogo: 89 ao todo (desde 1914). Contribuímos, modestamente, com Nilton Santos e Garrincha.’
(Na legenda da foto da Seleção Brasileira de 1958, campeã mundial na Suécia, o autor tripudia, acrescentando Didi e Zagalo).
Gilda
e ManéO leitor mais ansioso, talvez o caso deste resenhista, lê aos trancos e barrancos a primeira parte do livro, que trata da fundação do clube, com episódios remotos, mas nem por isso apresentados com menos cuidado informativo e fino estilo. Quer logo é saber a história completa, versão e marca Sergio Augusto, de um dos mais famosos mitos da saga botafoguense, o mineiro Heleno de Freitas, o Gilda (referência à sedutora temperamental vivida por Rita Hayworth no filme noir do mesmo nome), o atacante virtuoso das cabeçadas que, de 1944 a 1947, fez, diz Armando Nogueira, o que poucos craques conseguiram ou conseguirão: ‘Jogar tão bem de cabeça como ele’.
Além de bom de bola, de movimentos suaves e elegantes no gramado, Heleno era, fora do campo…
‘…um galã, misto de Carlos Gardel e Rodolfo Valentino (…) disputado a tapa pelo mulherio, com livre trânsito nas altas rodas boêmias e sociais da zona sul carioca. (…) Trágica coincidência: o virtuoso das cabeçadas, ele próprio um jogador-cabeça, formado em Direito e ídolo do time mais cabeça do Brasil, morreu com o cérebro em petição de miséria, lentamente destruído pela sífilis…’
(Outra legenda de foto resume em cima o drama do jogador em campo: ‘Marcado pelas torcidas adversárias e perseguido pelos árbitros, Heleno não resistia a uma provocação. Volta e meia ia para o chuveiro mais cedo.’)
Lembra Sergio Augusto que Heleno ainda estava em General Severiano, quando Nilton Santos vestiu a camisa do time pela primeira vez, em 1948. O jovem, tímido, agüentou calado a insinuação, do então técnico Zezé Moreira, de que tinha pinta de ‘cabeça de bagre’. Um par de dribles e lançamentos bastaram para que Zezé mandasse o garoto voltar no dia seguinte. Pois no dia seguinte Carlito Rocha, o mitológico dirigente do Botafogo, depois de exigir que o rapaz pulasse e desse umas cabeçadas, disse-lhe que esquecesse o ataque: ‘Na defesa, você será campeão carioca, brasileiro e sul-americano’. ‘Em menos de dois anos Nilton foi tudo aquilo’, confirma o autor.
Cinco anos depois, já consagrado como um dos maiores zagueiros brasileiros de todos os tempos – só igualado, em determinadas épocas (e o resenhista de novo veste a camisa tricolor) por Mauro Ramos de Oliveira –, Nilton Santos recebeu a incumbência de marcar, num treino de rotina, um cafuso retraído e taciturno de 19 anos, de apelido Mané Garrincha, ‘um matuto cambota’, que teria dado um tremendo baile no grande zagueiro, com direito a bola no meio das pernas.
Outro botatoguense ilustre, Luiz Mendes, ‘casualmente presente àquele legendário treino’, nega que isso tenha acontecido. Segurar o capeta foi uma prova dura para Nilton Santos, é verdade, mas ‘bola debaixo da perna, no entanto, ele não levou, é lenda’.
Folha-seca e papagaio
Sempre privilegiado no surgimento, dentro de suas fileiras, de grandes craques – ‘maestros geniais’, assim qualificados pelo fanático Sergio Augusto –, ‘sob a batuta de Didi e Gerson, o Botafogo viveu uma década esplendorosa. Tornou-se, digo isto sem clubismo, o melhor time do país, junto com o Santos de Pelé…’
Esclarece, contudo, que os dois ‘não foram crias ou revelações alvinegras, como Nilton Santos, Garrincha e Amarildo, por exemplo’. Didi começou no modestíssimo Madureira, consagrando-se depois no Fluminense. Gerson brilhou inicialmente no Flamengo. Juntos, no Botafogo, os dois barbarizaram:
‘Didi, um cisne negro cheia de manhas e truques, nenhum talvez tão celebrizado quanto a folha-seca, que até ao Aurélio chegou: ‘chute direto a gol, geralmente com a bola parada, cuja trajetória sofre uma queda súbita, que surpreende o goleiro’.’
E Gerson, conhecido entre os colegas como ‘o papagaio’, tanto falava e gritava no meio do campo. Absoluto em seu território, era o terror das defesas adversárias, o Canhotinha de Ouro, capaz de resolver uma partida em questão de segundos.
Outras figuras importantes da história do time, incluindo Manga, Zagalo, Quarentinha, Jairzinho, Paulo César ‘Cajú’, Afonsinho, Bebeto de Freitas, Carlos Alberto Torres e Marinho Chagas obviamente não são esquecidos pelo biógrafo apaixonado, que a eles se refere com respeito e saudade, quando o Botafogo entrava, nos anos 1970 e 80, em seus anos mais escassos e difíceis em termos de vitórias e conquistas.
Nos anos 1990, brilharia a estrela de outro artilheiro, Túlio ‘Maravilha’, que mesmo não sendo dos que suam a camisa, consagrou-se como o oitavo maior goleador do Botafogo. Dele diz Sergio Augusto:
‘Seu negócio era espreitar a grande área, ciscar na zona do agrião e conferir rebotes no minifúndio do goleiro adversário. Tinha um senso raro de oportunismo e uma notável facilidade para estufar o véu da noiva…’
Mas, afinal, pergunta-se ao caro biógrafo e torcedor, qual é mesmo o seu Botafogo de todos os tempos? Responde Sergio Augusto, não antes sem justificar-se que ‘cada um tem o seu’: Manga, Carlos Alberto Torres, Leônidas, Nilton Santos e Marinho Chagas, Didi e Gerson, Garrincha, Jairzinho, Heleno de Freitas e Paulo César.
‘Desses só não vi jogar Heleno, mas os deuses não precisam do aval de nossos olhos para nos impor sua divindade.’
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Jornalista e escritor brasileiro radicado no México