Pode ser tarefa árida a leitura de texto sobre tema jurídico a qualquer profissional estranho ao Direito. Mas no momento em que se discute a eficácia da Lei de Imprensa e que muitos se põem a atacá-la como instrumento antidemocrático, tendo em vista sua elaboração em período ditatorial, parece interessante desfazerem-se alguns mitos e rebaterem-se opiniões, em nosso ver equivocadas, que têm sido proferidas por alguns que insistem em ali observar instituições arcaicas, fora do tempo ou de contexto.
Não apenas jornalistas, mas grande parte dos operadores do Direito atacam um instituto exclusivo daquela lei para a atribuição de responsabilidade sobre a notícia publicada. Foi matéria de estudo nosso, entretanto, a demonstração de que, se interpretada a lei de acordo com todo o contexto de normas nacional, o modo de atribuição de responsabilidade ao jornalista, tal qual vigente na atual Lei de Imprensa, antes de ser instrumento arbitrário de atribuição de responsabilidade, pode funcionar como meio importante de garantia da liberdade de expressão. E a garantia da liberdade muito nos interessa.
Liberdade e limites à liberdade:
a necessidade da Lei de Imprensa
Diante de um auditório só de jornalistas, a mais provocativa questão que o jurista enfrenta pode ser assim enunciada: existe lei ou norma que possa impedir a absoluta liberdade de expressão? Pode a lei, em um contexto democrático, impor limites à liberdade de imprensa?
Resposta positiva: sim. Limites podem ser impostos, porque nenhum direito é absoluto. Nenhum. Nem mesmo a vida. Se o direito à vida fosse absoluto, o Código Penal não poderia prever a legítima defesa (art. 25). Os direitos são garantidos na Constituição, mas encontram um nos outros seus próprios limites.
Essa consideração é pertinente para em primeiro plano justificar a necessidade de controle da atividade jornalística pelo Poder Judiciário. Controle democrático – entenda-se – porém efetivo. Uma dessas formas de controle, a que aqui nos restringimos, é a criminal: algumas condutas são eleitas como mais lesivas a direitos específicos, e por isso acabam por ser, por assim dizer, proibidas. A lesão à honra e à intimidade do indivíduo aparecem nos delitos, por exemplo, da calúnia, da difamação e da injúria, como contraposição à irrestrita liberdade de imprensa.
Vista como meio essencial à promoção da liberdade, mas também como fonte de perigo especial a alguns desses direitos individuais, a imprensa encontra limites também na seara criminal. Por isso que, desde o Primeiro Império, diante do achincalhe que lhe faziam os pasquins, o imperador Pedro I, após dissolver a Constituinte e outorgar Constituição liberal, exortou os legisladores à criatividade na solução dos abusos da imprensa, pronunciando, na Fala do Trono com que abriu a legislatura de 1830, a necessidade de ‘reprimir, por meios legais, o abuso que continua a fazer-se da liberdade de imprensa em todo o Império’. E nesse ano, de 1830, o país aprovou seu Código Penal, do projeto de Bernardo Vasconcelos e Clemente Pereira, em que se criou o sistema de responsabilidade penal sucessiva para os delitos de imprensa.
Esse sistema, que aqui cuidamos, de uso comum no trato do Direito Penal com a imprensa em vários países atualmente, tem portanto origem brasileira, ainda que se tenha deixado apelidá-lo de ‘sistema belga’, por sua adoção na legislação daquele país, no ano seguinte. Esse sistema de imputação, que hoje se preserva na Lei de Imprensa, é o principal ponto de crítica à legislação atual.
A responsabilidade penal
sucessiva: função e críticas.
Grosso modo, atribuir responsabilidade penal significa a lei determinar aquele que é responsável pelo delito, aquele que deve ser punido por um resultado danoso. Quando se trata, por exemplo, de um crime de homicídio, não é difícil à lei imputar responsabilidade: é responsável aquele que deu causa à morte, ao praticar alguma ação que, se não existisse, tornaria inexistente o resultado. Se o assassino não tivesse dado o tiro, a vítima não estaria morta. Entre o tiro e a morte existe então o que se denomina nexo de causalidade.
Mas quando se trata de crime de imprensa a questão torna-se bem mais complexa. Afinal, quem é o responsável pela divulgação de uma notícia perniciosa? Dizer-se apenas que é o jornalista que assina a matéria seria ignorar a complexa realidade da empresa, em que muitos são co-autores do texto publicado, ainda que não o firmem. Uma complexa rede de pessoas participa da produção do resultado, sem assinar o texto: pensem-se no exemplo do editor que autoriza a divulgação de um texto ofensivo, com destaque, em um caderno específico do jornal, com o intuito de ofender alguém, noticiado em matéria que ele, editor, evidentemente não assinou; ou até mesmo do proprietário da empresa de comunicação, que, diante de uma matéria ofensiva a um político, inimigo seu, no jornal que possui, dobra a tiragem da edição daquele dia apenas para aumentar o dano ao desafeto. Nenhum deles assina a matéria, mas ambos fazem uso criminoso dela. Mais um exemplo, em sentido inverso: um jornal publica um texto extremamente difamatório, mas aponta sua autoria ao anônimo ou invoca o sigilo da fonte para não revelar o responsável pela notícia falsa. Responsabilizar a quem, em um eventual dano causado?
Para tentar resolver esses e outros problemas específicos da atividade da imprensa é que a lei penal criou então o instituto da responsabilidade penal sucessiva. Atualmente, ele encontra-se no artigo 37 da Lei de Imprensa (5.250/67), complementado em certa medida pelo artigo 28 da mesma lei. Em resumo, ele estabelece uma ordem de responsáveis pelos delitos de imprensa, daí a chamada sucessividade. Diz que são responsáveis pelo delito de imprensa, em primeiro lugar, o autor do escrito e da transmissão incriminada. Porém, não estando presente o autor, a responsabilidade criminal passa a ser atribuída ao diretor ou redator-chefe do jornal – ou, à ausência destes, ao gerente ou proprietário das oficinas impressoras. Em caso de escritos anônimos, a responsabilidade por um crime de imprensa poderá ser imputada aos distribuidores ou vendedores da publicação. É o que diz a lei.
A crítica a esse instituto sobra no contexto do Direito. Mas por que os juristas tanto se insurgem contra o instituto?
Porque identifica-se nele algo que se chama responsabilidade objetiva, ou seja, responsabilidade sem culpa, o que é inadmissível no Direito Penal. Em se tratando de crime, não poderia um editor de jornal, que não atuou para fazer uma matéria falsa, que não teve a intenção de produzi-la, ser ‘castigado’, receber uma pena por sua divulgação. Ele estaria sendo responsável apenas por ocupar um cargo diretivo, sem que houvesse culpa efetiva na produção da notícia maledicente. Essa pena sem a efetiva culpa do penalizado viola princípio basilar do Direito Penal. Por isso, dizem os críticos do instituto, o sistema de responsabilidade penal sucessiva não estaria adequado a institutos da nova Constituição, e até mesmo da parte geral do Código Penal vigente. Sendo a Constituição posterior à Lei de Imprensa, diz-se então que a Carta Constitucional não teria recepcionado o instituto da responsabilidade sucessiva. Assim alguns professores, e até mesmo juízes, recusam-se a reconhecer ou aplicar o art. 37 da Lei de Imprensa.
Repousa na responsabilidade penal sucessiva uma das principais críticas à Lei de Imprensa, e nesse conflito torna, evidentemente, enferrujados os instrumentos do Poder Judiciário para democraticamente coibir abusos de imprensa. E tal engessamento dá azo, claro, a discursos que por aí proliferam para o surgimento de outros órgãos que venham a exercer essa intervenção ou zelo pela responsabilidade profissional do jornalista, esquecendo-se de que não existe lesão ou ameaça a direito que possa escapar à apreciação do Poder Judiciário, por força de lei.
Entretanto, no nosso entender, a responsabilidade penal sucessiva, quando aplicada em observação aos princípios de culpabilidade, vem a ser instrumento efetivo de garantia da liberdade de imprensa.
A responsabilidade sucessiva como
garantia da liberdade de imprensa.
Ainda que possa ser encarado como responsabilidade objetiva, outros países europeus adotam, para os delitos de imprensa, essa mesma escala sucessiva, originada no Brasil Imperial. É o exemplo do Código Penal espanhol, de 1995 (arts. 28 a 30). Mas há uma diferença principal: a legislação espanhola foi expressa em exigir, para os autores indicados na escala sucessiva, as mesmas condições de autoria dos crimes comuns. Isso importa em reconhecer que, para que um daqueles nominados pela lei (jornalista que assina a matéria, editor, proprietário do jornal, vendedor da publicação) venha a responder pelo crime, deve ter intenção de praticá-lo e conhecimento de seu potencial ofensivo. Essa disposição, então, na Espanha, jogou por terra as críticas que ali existiam à legislação anterior (arts. 14 e 15 do Código Penal espanhol antigo), a qual, tal como a atual brasileira, podia dar margem à responsabilidade objetiva, sem culpa.
Por isso sustentamos que é evidente que não se pode admitir ser responsabilizado, por crime de imprensa, um profissional da comunicação que não tenha conhecimento ou intenção de publicar matéria ofensiva, de relevância criminal, ou que não tivesse o claro dever de cuidado de zelar pela qualidade do que produz. Não pode ser responsabilizado, a título de delito doloso, com intenção, apenas por ocupar um posto de chefia na empresa. Mas isso não significa que o instituto da lei de imprensa esteja de todo superado.
Se combinada a ordem sucessiva do art. 37 da Lei de Imprensa à exigência de, no mínimo, culpa para a imputação penal, o instituto passa a ser ‘modo de restringir o círculo de imputação’ [Rodríguez, Victor Gabriel, Responsabilidade penal na Lei de Imprensa: responsabilidade penal sucessiva e o Direito Penal Moderno, pág. 237], pois impede que se entendam como culpados por delitos de imprensa outros profissionais que estejam fora da denominação específica da lei. Assim, não pode existir co-autoria, por exemplo, daquele que assina a matéria e do dono do jornal, o que seria possível em um sistema de imputação comum. Restringindo o número de culpados por delitos de imprensa, ressai a função de proteção da liberdade de expressão.
Nesse sentido, a responsabilidade penal sucessiva, se entendida à luz da Constituição, é modo de evitar que existam excessivos culpados para um delito, o que poderia entravar a atividade da imprensa. [‘El problema básico radica en que una aplicación de las normas comunes sobre autoría participación llevaría al encauzamiento de multitud de participantes en la difusión informativa, no siempre periodistas, lo que dejaría desarbolado el concreto medio de comunicación en cuestión y llevaría a situaciones tan indeseables y atentatorias contra la libertad de pensamiento, expresión e información, como la censura interna o el recurso a la clandestinidad’ – DÍAZ ROCA, Rafael, Derecho Penal General, Editorial Tecnos, pág. 253]
Conclusão
De modo algum está-se a afirmar que a Lei de Imprensa dispense reformas. O que se pretende é demonstrar que é possível utilizar o seu instituto específico de responsabilidade criminal de acordo com os princípios do Direito Penal e diante das garantias constitucionais vigentes. Além disso, a estreita relação que tem o jornalismo com as chamadas liberdades públicas impõe que o Direito dê cores mais liberais à atividade, e assim a responsabilidade penal sucessiva, como está na lei vigente, pode ser instituto garantidor da inexistência da censura que o medo de um processo-crime infundado pode causar.
É questão a debater-se.
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Advogado especializado em direito de imprensa, mestre e doutorando em Direito Penal pela USP e autor do livro Responsabilidade Penal na Lei de Imprensa: Responsabilidade penal sucessiva e Direito Penal Moderno e da novela: A Hora do Carvoeiro: História de um amor pelo crime; e-mail (victor@btadv.com.br)