A comunidade afro-brasileira vem por meio desta repudiar veementemente o editorial do jornal O Globo de 22 de agosto de 2005, que tachou a militância negra de ‘pelega’ e ‘antidemocrática’, uma vez que supostamente ‘coage violentamente agentes governamentais’ a promoverem políticas públicas que beneficiam injustamente apenas esta parcela da sociedade. O argumento usado para defender tamanha sandice, como sempre, mescla uma porção enorme de desconhecimento com preconceito e, principalmente, insensibilidade.
Como direito de resposta, esclarecemos:
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O conjunto da população negra no Brasil foi reduzido ao cativeiro até 1888 e no pós-abolição não teve reconhecidos seus direitos de cidadãos brasileiros plenos. Para superar esta realidade de exclusão historicamente construída, promovendo o desenvolvimento social da população negra, invertendo as estatísticas, é preciso que as agendas dos governos que se autoproclamam democráticos dediquem à questão um tratamento específico.**
O direito às cotas é uma bandeira de luta histórica do Movimento Negro. Direito legitimado na agenda política dos governos democráticos. As cotas surgiram para sanar os problemas há muito apontados em inúmeros estudos sobre a questão das relações étnico-raciais no Brasil: a invisibilidade social e econômica a que estão submetidos inúmeros cidadãos negros brasileiros é em parte decorrência de sua falta de acesso a uma qualificação de excelência.**
Não é desejo do Movimento Negro que as cotas se transformem em política educacional permanente, sendo apenas uma política emergencial e reparadora. As cotas não são, nem nunca foram, entendidas pelo Movimento Negro como panacéia para os problemas educacionais brasileiros, cuja solução definitiva se insere num conjunto de ações governamentais que incluem reformas curriculares, uma política de valorização dos professores, investimentos em recursos materiais e humanos na Educação Básica brasileira para enfrentar um processo de sucateamento do ensino público, que ocorre há décadas. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os investimentos do Ministério da Educação nos últimos oito anos diminuíram 57,8%, passando de R$ 1,874 bilhão, gastos em 1995, para R$ 790,703 milhões, em 2004. Neste criminoso e recorrente desprezo pelo desenvolvimento da educação pública brasileira, os mais afetados são quase sempre os negros que, estatisticamente, compõem as camadas mais pobres da sociedade e que contam, apenas, com o ensino público.**
O resultado desse quadro também pode ser expresso estatisticamente: o Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, produzido pelo Ipea, pela Fundação João Pinheiro e pelo Pnud, demonstra que, em 2000, embora os negros constituíssem 47% da população na faixa de 18 a 24 anos de idade, apenas 16% dos estudantes (14% pardos e 2% pretos) estavam matriculados no ensino superior. E pior: os dados dos censos revelam que, entre 1991 e 2000, a participação percentual dos negros na população universitária diminuiu em todos os estados, exceto em São Paulo, onde ficou inalterada, e Mato Grosso do Sul, onde cresceu menos de 1%.**
Além da exclusão nos níveis mais graduados do ensino, os currículos escolares secularmente eurocêntricos não contemplam a história e a memória dos africanos e dos afro-brasileiros. A Lei 10.639/03 e suas Diretrizes, aprovadas em 2004, foram um passo importante para a reconstrução da memória e da história do Brasil sob bases não-racistas. Mas é preciso desenvolver políticas públicas para a formação dos professores, criar cursos nos currículos acadêmicos e estimular a produção editorial sobre as temáticas para que a 10.639/03 e suas Diretrizes tornem-se realidade em nossas escolas.**
Quanto ao quesito ‘raça’/cor no Censo Escolar, é uma medida que objetiva medir o nível de desigualdade racial na educação para poder combatê-la. Ignorar ou repudiar o quesito cor/’raça’ em nossa realidade de exclusão é ser antidemocrático, pois é impedir que o Estado faça a diferença no sentido de dar iguais condições a todos os cidadãos brasileiros. Sem esses dados o Inep não pode discutir políticas educacionais que levem em conta a brutal ceifa de estudantes negros no Ensino Básico. Nos Estados Unidos, desde a década de 1960, começaram a ser desenhadas políticas públicas e corporativas para reduzir a desigualdade: universidades usaram critérios raciais na seleção; nas compras governamentais é avaliado o critério de diversidade do quadro de funcionários das empresas fornecedoras; nas seleções para cargos públicos são adotados até hoje esforços para a contratação de minorias; as empresas chegam a ter diretores de diversidade, cuja função é remover barreiras à contratação e à promoção de mulheres e negros. Lá os negros estiveram submetidos à segregação, lá eles são apenas 12,9% da população e, mesmo assim, são visíveis na estrutura de poder.**
No Brasil a população preta e parda soma 45% e, diferentemente dos EUA, a segregação racial dos negros não foi estabelecida como política do Estado, mas contraditoriamente somos quase invisíveis nos quadros da elite e do poder público. Não é possível combater a desigualdade social brasileira fechando os olhos para a questão das relações étnico-raciais e para o racismo à brasileira que combate a realidade da cor da exclusão com o mito da democracia racial, apoiando-se em nossa intensa miscigenação. Sem ação afirmativa, que o Ipea define como ‘medidas destinadas a preparar, estimular e promover a participação dos negros na educação e no mercado de trabalho’, não construiremos uma verdadeira sociedade democrática.**
Por fim a nós impressiona sobremaneira que uma empresa de comunicação que nos últimos 40 anos submeteu-se total e irrestritamente às vontades de todos os governos brasileiros, sendo eles democráticos ou não, e ai incluindo-se o atual governo petista, possa acusar alguém de ‘peleguismo’ ou mesmo de ‘coerção do poder público’. A Globo e suas empresas sempre tiveram seus ‘intestinos’ intimamente ligados aos corredores do poder em Brasília com o intuito de conseguir vantagens competitivas (o caso Nec/ACM ainda está vivo em nossas memórias) e, portanto, não têm o direito de autoproclamar-se baluarte da moral do Brasil e muito menos em relação aos movimentos sociais, que realmente têm compromissos com a luta pela superação dos problemas brasileiros atuando de forma cidadã e dentro da lei, muito diferente, por conseguinte, da postura das empresas da família Marinho no decorrer de nossa triste história republicana recente.******
Professora e escritora, vencedora do Prêmio Jabuti deste ano pelo livro História para todos, 1ª a 4ª séries, a primeira; os dois últimos, jornalistas. Todos são da Comunidade 4P – Poder Para o Povo Preto, comunidade do Orkut que reúne mais de 7 mil cidadãs e cidadãos afro-descendentes de várias partes do Brasil