A literatura brasileira contemporânea tem poucos autores dispostos a contar uma boa história. Para a felicidade dos leitores, Fernando Molica é um deles. Diferentemente da maioria de seus jovens colegas escritores, cujo estilo pretensioso e elitista é pautado pela crítica acadêmica, Molica evita os jogos de linguagem pós-modernos que produzem livros chatos e bestas. Sua escrita é sofisticada, mas não é hermética. Uma prova de que o texto fácil não tem qualquer relação com a superficialidade.
O Ponto da Partida é o terceiro romance do jornalista. É também seu romance da maturidade, resultado das experiências anteriores. O autor tem uma prosa fina, ambienta seus personagens em um Rio de Janeiro originalmente descrito e passa pelos diversos planos narrativos com muito talento, em cortes temporais sutis e bem elaborados. Tudo isso com simplicidade e elegância, características que garantem uma leitura agradável e fluente.
Sinceridade constrangedora
No enredo, um repórter repassa sua história de vida, repleta de frustrações amorosas e conflitos com os filhos, enquanto vela um cadáver na praia de Ipanema durante a madrugada, à espera de uma outra história, também familiar. Mas o romance não é uma crônica da violência no Rio de Janeiro, muito menos uma ‘vida como ela é’ no estilo rodriguiano. Como muito bem observa o escritor Antonio Torres, na orelha do livro, ‘esta história só dói quando você pára de rir’.
O humor recorta o drama: ‘O tal do Moisés era uma espécie de repórter especial. O sujeito entrevistava Deus em on, veja só! Deus não pedia off.’ Molica também não pede. A narrativa ironiza a religião, o jornalismo e até a sexualidade: ‘Troque a capa desse teu caderno, deve ter aí uma cota para matérias sobre heterossexuais, não? Sei que esse negócio de hetero é mal visto por aqui. É meio antigo né?’
Além dos leitores de boas histórias, é possível que alguns doutores em Letras também apreciem o livro. Para surpresa dos academicistas, a prosa envolvente não inviabiliza a discussão metalingüística. Mas o autor faz isso com naturalidade, sem a arrogância dos experimentalismos vazios, aqueles que produzem textos sem parágrafos, vírgulas ou coerência. Molica escreve com uma sinceridade constrangedora: ‘Não faça essa cara, sei que a frase não é das melhores. Mas é assim mesmo.’
Uma reflexão metalingüística
As transições para os flashbacks são feitas com leveza. Não há a sensação de que a narrativa pula de repente para o passado, nem o mal-estar da sobreposição de tempos verbais. Como a preocupação é com a história, o tom do romance é ditado pelo enredo, não pela linguagem. Graças ao bom Deus semântico, sabedor de que no princípio era, e ainda é, o verbo.
Fernando Molica produz uma ficção que não é erudita nem simplista. Sua narrativa percorre uma espécie de caminho do meio, tão importante para a formação de leitores assíduos e freqüentes no país. O ‘meio’ nos vários sentidos do termo: aquele que está entre a linguagem hermética e o simplismo bestializante, entre o clássico e o inovador, entre o cânon e o marginal, entre o consagrado e o estreante. Algo que cative o leitor e o leve a novas leituras. Na melhor tradução do termo, uma história bem contada.
Assim, vale evocar o drama de um personagem secundário do romance, o João Carniça, um velho repórter que não sabia escrever, mas apurava histórias como ninguém. Carniça era do tempo em que o repórter não precisava colocar o enredo no papel, mas precisava saber contar o que vira. Até que chegou uma molecada na redação com o talento exatamente inverso e ele ficou obsoleto.
Estou enganado ou o autor deixou no ar mais uma reflexão metalingüística sobre nossa literatura? Alguém viu o João Carniça por aí?
******
Professor da UFF, Doutor em Literatura pela PUC-Rio, Pós-Doutor pela Université de Paris / Sorbonne III, jornalista e escritor. Autor do romance O analfabeto que passou no vestibular e de oito livros sobre comunicação e linguagem