Thursday, 28 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A imprensa, o leigo e a liturgia do Planalto

É com certa emoção que começo este texto. De certa forma estou algo à vontade porque não sou jornalista nem escritor, não sou poeta nem autoridade em letras. Sou leigo nessas coisas. Dou esta justificativa antecipada porque na condição de leigo posso cometer alguma impropriedade ao expor minha opinião. Rogo, pois, vênia ao amigo e paciente leitor.

O William Bonner foi contido e elegante no episódio. A gente quase sempre cai matando em cima da mídia. Então na hora que ela acerta é bom que se comente. Aliás, o William Bonner foi tão rápido que eu tive que procurar na internet para ver se tinha sido aquilo mesmo. Eu digo o Bonner, e não a Globo, porque é ele, conforme os créditos, ‘editor-chefe e apresentador’. Aliás, esse crédito é quase uma egocentria, mas isso fica para outro texto.

Não seria demais lembrar que Hugo Chávez, da Venezuela, já rebaixou Sua Excelência George W. Bush à modesta condição de ‘mierda’ um sem-número de vezes e a imprensa foi igualmente discreta. Não cabia agora espinafrar o presidente. Confesso que até na internet a rapaziada se segurou. Fui encontrar alguma coisa no blog do Ricardo Noblat que, rápido como um raio, já estava com texto no ar sobre o assunto meia hora depois do fato.

Palavrão difícil de traduzir

Mas, e nós, os leigos…?

Nosso presidente falou aquilo mesmo, naquele pronunciamento no Rio…? Amigo, não dá para acreditar. Eu vinha sistematicamente elogiando nosso presidente face à metamorfose pela qual passou nos últimos tempos. Aprendeu a se comportar razoavelmente, veste-se com ternos bem recortados e deu trato no cabelo. Só não aprendeu a organizar minimamente seus improvisos. E isso é motivo para ficarmos, nós que o respeitamos, em estado de susto cada vez que ele inicia um discurso. Sem contar que durante o discurso sempre ficamos em estado de susto continuado. Cada frase iniciada, sabe lá Deus no que resultará.

Nós, os leigos, sabemos que por trás da discrição da mídia há interesses. Isso não é da conta de leigo nenhum. Também há interesses nos namoros, nos casamentos, nos acordos; enfim, na vida, as atitudes sempre contemplam interesses. É bem possível que apareçam intelectuais que saibam explicar esse fenômeno no qual a pessoa que simboliza a maior autoridade da nação use linguajar apropriado a qualquer estabelecimento do tipo pé sujo.

Mas, caramba, nós só queremos ficar em frente à TV e assistir ao noticiário, que ninguém é de ferro.

Não é cabível que, de repente, o presidente da República, pessoa a quem acabei de elogiar junto à minha filha de 10 anos, solte um palavrão que é difícil até de traduzir.

Tempo novo

Cabe aqui uma única observação relevante. Ao dizer aquela palavra, que em respeito ao decoro e à seriedade deste espaço não vou reproduzir, me parece, não sei realmente se houve, um flagrante desrespeito a todo mundo que ouviu e entendeu. Isso vem acrescentar base ao já bastante difundido argumento de que nosso presidente não é apenas homem sem cultura, sem instrução e inimigo da leitura. É, lamentavelmente, também pessoa que não sabe, ou melhor, não tem noção do que representa ser presidente da República.

Minha sugestão é que ele convide todos os dias um daqueles fidalgos do Instituto Rio Branco. Só pra bater um papo… olhar os modos e melhorar o vocabulário. Uns dois anos desse ‘tratamento’ devem resolver.

Tenho notado, pelo que a mídia divulga, e leio nos periódicos no tempo que consigo doar à leitura, algumas coisas interessantes. Primeiro que já não se pode dizer que se vive apenas um novo tempo, no sentido antigo, em que um novo tempo envolvia uma idéia de uma nova era. Isso envolvia mudança em padrões de civilização e cultura, coisa demorada de acontecer. Tamanho é o volume de novidades que a cada dia começa um novo tempo. Então é isso. Vivemos um tempo em que todos os dias há um tempo novo começando.

Aquele lugar

Presidente que emprega palavreado de botequim é uma novidade. E por que a gente estranha? Pelo fato de que, conforme todo mundo sabe, mas só os sociólogos dizem, há um padrão que tem que ser mantido. O pessoal da minha geração vive hoje sob impacto permanente. Namorada de 15 anos que dorme na casa do namorado. No quarto dele e com a porta fechada. Com autorização dos pais. ‘É melhor aqui do que na rua’, dizem. Copiado da novela das seis. Homem beijando homem, e mulher beijando mulher. Em plena via pública e para todo mundo ver. Na boca, amigo leitor, na boca. Homem contraindo matrimônio com homem e mulher desposando mulher. Com direito a arroz, carro cheio de latas amarradas no pára-choque, docinhos e lançamento de buquê. E cuidado. Se você falar, vai preso. É um tempo novo, amigo. Você tem que se adaptar.

Mas, o choque é inevitável porque o padrão de costumes está sendo rompido de forma violenta. A razão do susto que o presidente nos deu é que ninguém está preparado para um presidente que se joga numa frase e não sabe depois o que fazer.

O que me deixa mais surpreso é o seguinte: o presidente não tem um assessor mais chegado que lhe abra os olhos? Comentei isso com um colega e ele me disse que, sendo como é, quem quer que seja que busque alertá-lo em relação a tais assuntos, ele mandará para aquele lugar. Tive que concordar.

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Pesquisador, Nova Iguaçu, RJ