A imprensa sempre viveu em simbiose com os poderes da República, reproduzindo de certa maneira informal as mesmas relações que caracterizam a economia, as interações sociais e o acomodamento entre as instituições que formam a chamada sociedade civil organizada. Nessa simbiose, a imprensa é seletiva e pragmática, e se move conforme as premissas conservadoras que são o fundamento de sua própria história – pois não há outra imprensa, que não a imprensa burguesa. Trata-se do ecossistema de poder, do qual não faz parte aquela massa que o jornalista Elio Gaspari costuma chamar de patuléia.
No microcosmo do poder que abriga deputados e senadores, reproduz-se da mesma forma esse relacionamento seletivo e pragmático, no qual há interlocutores privilegiados, papéis definidos e um roteiro preexistente sobre o qual se desenvolve a trama que lemos nos jornais e revistas, vemos na TV, presenciamos na internet, ouvimos no rádio. A imprensa é livre e assim deve ser, mas não representa necessariamente a sociedade. Ela representa a chamada ‘sociedade civil organizada’ nesse ecossistema de poder – o que inclui todas as instâncias que podem se organizar, e exclui todas as demais.
Essa é uma ponderação que deve estar presente em todas as análises das relações entre a imprensa e os poderes constituídos. Essa ponderação nos ajuda a entender por que a imprensa parece vacilar entre a condenação definitiva a todos os malfeitos revelados no atual escândalo político e certa resistência a conduzir as investigações para além do dia em que o ex-chefe do departamento de Contratação e Administração dos Correios Maurício Marinho foi apanhado embolsando uma propina de 3 mil reais.
Ao contrário do que pode parecer, a imprensa não está desorientada diante da extensão e profundidade do mar de lama: ela está sendo seletiva e pragmática, e os acontecimentos da última semana esclarecem bastante bem os limites em que está disposta a atuar.
Sob o desprezo da mídia
O ensaio de acomodação no processo de cassações iniciado no Congresso Nacional provocou dois movimentos opostos e simultâneos: na mídia, o foco principal se desvia temporariamente do presidente da República e seus colaboradores mais próximos, para permitir uma observação mais atenta da figura do presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti (PP-PE); enquanto isso, nos meios políticos, tenta-se medir o tamanho do corte que daria à opinião pública uma sensação de justiça, sem, no entanto, atingir determinados protagonistas que, livres de compromissos, poderiam vir a levantar certos cadáveres mal sepultados da nossa história recente.
Gozando plenamente a oportunidade histórica de consolidar junto à sociedade a premissa segundo a qual nenhum partido de esquerda deve se aproximar do poder – ou, em lá chegando, deve ser apeado rapidamente –, a imprensa ganha de presente a chance de contribuir para a amputação de parte significativa do chamado ‘baixo clero’ do Congresso, aquela representação que sempre mereceu da crônica política de Brasília a mais rematada desconsideração.
O ‘baixo clero’ só existe por isso mesmo, ou seja, só consegue se organizar nas sombras do poder, sob o desprezo da mídia e nas bordas dos sistemas de favorecimentos e negociações que fazem a realidade das práticas parlamentares. Sempre foi tolerado porque seus integrantes nunca ameaçaram o equilíbrio do ecossistema de poder, não se atreviam a alçar vôos mais altos, alimentando-se de migalhas do orçamento, nos desvios de recursos para entidades de autobenemerência e no vício do nepotismo. Os personagens desse mangue político só costumavam ser citados em circunstâncias irrelevantes ou como parte do ‘folclore’ da corte.
Pelos dedos da imprensa
Levado para debaixo dos holofotes pela manobra oposicionista que o fez presidente da Câmara, o deputado Severino Cavalcanti tirou das sombras o perfil completo dessa subespécie entre os congressistas, e de repente a imprensa descobre que o Poder Legislativo de fato está nas mãos do baixo clero, e não daquelas fontes bem articuladas que sempre facilitaram o dia-a-dia dos cronistas parlamentares com suas frases de efeito e seus ‘leads’ de encomenda. O próprio Poder Executivo, ao que parece, era refém desse brejo político.
Pode-se afirmar, assim, que o jornalismo declaratório, feito basicamente da coleta de frases, intenções e opiniões de líderes, dirigentes e figuras de proa, tem contribuído para manter no conveniente bioma das sombras essa escumalha que sempre emperrou as votações mais importantes do Congresso, procurando tirar o máximo de vantagens de cada assinatura, cada adesão, cada voto ou ausência em plenário.
A simples companhia de um representante dessa subcasta parlamentar era tida como maldição, e os prediletos da mídia sabiam que precisavam marcar as diferenças entre os igualmente eleitos. Lembremo-nos de que, no episódio dos ‘anões’ do Orçamento, em 1993, uma das ‘provas’ usadas pela imprensa para crucificar o deputado Ibsen Pinheiro foi uma fotografia na qual ele aparecia cercado por cinco dos sete deputados acusados de organizar o saque de recursos públicos à base de fraudes no Orçamento da União.
Convém também lembrar que até mesmo Severino Cavalcanti teve seus momentos de glória na mídia desde que, na madrugada de 15 de fevereiro de 2005, foi conduzido à presidência da Câmara pela aliança entre o PSDB, o PFL e o baixo clero. Suas frases desarticuladas ganharam inteligência pelos dedos da imprensa, sua opiniões de troglodita político mereceram relevância entre os próceres da República, sua manobras canhestras foram guindadas à altura de estratégia política, enquanto ele foi útil à pragmática seletividade da imprensa.
Limites curtos como as idéias
Severino cumpriu seu papel, deslumbrou-se com o Planalto e esqueceu-se que pertence ao mangue. Vamos assistir, nas próximas semanas, a um processo de reorganização das coisas na Câmara dos Deputados. Severino Cavalcanti vai aprender que, mesmo elevado ao cargo máximo da Casa, não deixou de ser um representante dos grotões, e que a ‘sociedade civil organizada’, aquela que conta para a imprensa, tem pouca disposição para tolerar seu discurso desarticulado e suas idéias pré-históricas quando elas não servem ao propósito explícito de mudar para manter.
Mas ele sabe, também, quem teria a perder caso uma ameaça ao seu mandato o faça revirar a tumba dos malfeitos do Parlamento. Se o Congresso se vê obrigado a cortar na própria carne para dar satisfação à opinião pública, Severino é o limite do corte. Estão bem guardadas em seus arquivos histórias que rolaram e ficaram engavetadas desde tempos anteriores à sua permanência como corregedor da Câmara – e comenta-se que encontram-se ali relatos de natureza frugal como flagrantes de adultério e histórias de negociações entre concessionários de radiodifusão, bastidores de barganhas na CPI do Banestado e até mesmo a natureza da composição acionária de empresa monopolista do comércio duty-free nos aeroportos do país.
Desde os tempos em que, dedo-duro assumido, liderou o movimento pela expulsão do padre italiano Vito Miracapillo, assessor do cardeal Dom Helder Câmara, durante o governo do general João Figueiredo, Severino Cavalcanti tem demonstrado que seus limites são curtos como suas idéias. Os próximos capítulos da atual novela política prometem grandes emoções ao distinto público.
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Jornalista