Capitu, de Dom Casmurro, foi infiel por mais de meio século. Desvios do movimento feminista, porém, num processo que depois viria a queimar sutiãs em praça pública, extirparam os chifres de Bentinho.
Tenho tratado do tema desde meus verdes anos. A partir do dia em que fui apresentado a Machado de Assis, nunca mais deixei de ler o rapaz. Mais do que gênio, ele é um oxigênio em nossas letras. Como professor, tenho produzido muitos leitores para Machado: em escolas do ensino médio, em oficinas literárias, em aulas e em seminários em diversas universidades. Sintetizei minha leitura em artigo para a Revista da Biblioteca Nacional (número 44), transcrito em outros periódicos e sites: ‘Dom Casmurro, o adultério mais comprovado do mundo’. Certa vez, numa Bienal do Livro, no Rio, a poeta Neide Archanjo, o professor Domício Proença Filho, quando ainda não era da ABL, e eu participamos de mesa em que o tema era a infidelidade de Capitu.
Em 29 de janeiro escrevi no Observatório da Imprensa:
‘Quis a caprichosa História que o maior escritor brasileiro de todos os tempos fosse órfão (outros cuidaram dele que não seus pais), voluntariamente estéril (num país que valorizava por demais as genealogias), preto (num país escravocrata), pobre (ou `sem berço´, como então se dizia), epiléptico (doença que era tida como um castigo Deus), casasse com uma solteirona (desprezada por outrem ou a quem outros desprezaram, a sua amada Carolina) e gago (num país que sempre valorizou mais a capacidade de dizer do que a de escrever, mais a fala do que a escrita). Machado tinha tudo para perder uma partida por sete a zero, portanto. Mas venceu por um a zero. O gol solitário foi o talento: ele sabia escrever. Seu saber era este. Não era apenas isso que sabia fazer, mas era o que sabia fazer melhor’ [ver íntegra aqui].
Uma leitura controversa
Em outros textos lembrei a frase antológica de Dalton Trevisan: ‘Se Capitu não traiu Bentinho, então Machado de Assis é José de Alencar’. Otto Lara Resende recebeu cartas indignadas, sobretudo de leitoras, quando garantiu em artigo publicado na Folha de S.Paulo que Capitu era, sim, adúltera.
A mulher adúltera foi personagem solar de romances europeus importantes e que tiveram influência decisiva na formação do romance brasileiro. Entre os casos emblemáticos estão Madame Bovary, de Gustave Flaubert, e O Primo Brasílio, de Eça de Queiroz. Um pouco mais tarde do que esses dois, temos Anna Karenina, de Tolstoi, cuja figura feminina que dá título ao romance, é igualmente adúltera.
Mas na década de 1960 começaram a ler de outro modo o romance de Machado de Assis. Foi influência de um livro da norte-americana Helen Caldwell, O Otelo Brasileiro (por sua vez inspirado em Shakespeare), publicado na década de 1950. Na esteira de uma leitura controversa, sem base no texto de Machado de Assis e desligada do contexto das grandes personagens adúlteras que estruturavam os romances da segunda metade do século 19, começaram a questionar ninguém menos do que Bentinho, o marido traído, posto pelo autor como narrador do romance.
Sem complexidades sutis
O narrador, por ser marido, é suspeito de caluniar e difamar a mulher, alegam. Naturalmente, todos os outros eventos narrados por ele merecem crédito, inclusive a morte de Escobar, afogado numa praia do Rio. Por que, então, apenas e tão-somente o adultério, que tem o mesmo narrador, é negado? Os defensores desta segunda leitura não respondem à pergunta capital, estratégica.
Temos um narrador, Bentinho, o marido, já homem velho, sem nenhum ressentimento, perdoando a infidelidade de Capitu, sua mulher, e perdoando também a traição perpetrada por Escobar, o melhor amigo do casal, com estas frases que encerram o romance: ‘E bem, qualquer que seja a solução, uma cousa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me… A terra lhes seja leve’. Cadê o ressentimento?
Em entrevista a O Estado de S. Paulo (27/01/08), a escritora Lygia Fagundes Telles, da ABL, à pergunta ‘Capitu traiu Bentinho?’, responde: ‘Eu já não sei mais (risos) (…) No começo (nas primeiras leituras), ela era uma santa; na segunda, um monstro. Agora, na velhice, eu não sei’.
A TV Globo, com a série Capitu, veio abastardar mais um pouco o romance. Machado de Assis parece ter vindo para a Festa da Uva. Bentinho, Capitu, Escobar e principalmente José Dias estão rasos, perderam as sutis complexidades com que foram arquitetados. Escobar, pobre comborço, perdeu qualquer marca de homem interessado no amor das mulheres, especialmente no de Capitu. Talvez queiram demonstrar que esteja interessado no marido dela.
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Doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de Cultura e coordenador de Letras; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da ed. Novo Século); www.deonisio.com.br