Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As sapatadas do jornalista iraquiano

George W. Bush disputa um lugar de destaque na história mundial. Não vai ficar contrariado. Será um dos símbolos mais representativos da derrocada moral, política e militar do império americano, o mais sangrento, sem dúvida, da história da humanidade. Ele acaba de conquistar, a poucas semanas do final do seu repudiado mandato, mais pontos para sua vitoriosa corrida para esta posteridade execrada. Foi no Iraque, uma das numerosas tumbas do Império USA, que Bush exibiu o ser sinistro que é. Aparecendo de surpresa em Bagdá, por óbvias razões de segurança, ele lá foi para se despedir do exército ainda sob seu comando.


Nem no menor, mais restrito e vigiado recinto daquele país ocupado e despedaçado, amordaçado e trucidado pela agressão imperialista, o gabinete do premier fantoche Al-Maliki, os serviços de segurança americano e iraquiano conseguiram proteger Bush. Foi aquele o espaço que restou para o jornalista Mountazer AL-Zadi, do canal sunita e antiamericano Al Bagdadia, demonstrar sua ira santa contra o algoz do seu povo.


O encontro chegava ao seu auge, com os dois políticos apertando as mãos sob as luzes dos spots da imprensa, quando o jornalista, para surpresa de todos, se levantou e, jogando os dois sapatos contra Bush, em sinal de desprezo, gritou: ‘É o beijo de despedida, seu cachorro!’. O gesto é considerado, no país, como uma ofensa muito grave.


Zelo e esmero


Retirado do local pelos policiais do Iraque e dos Estados Unidos, o jornalista gritava, na direção de Bush, comunicando o sentido do seu gesto: ‘Você é responsável pela morte de milhares de iraquianos’.


Mesmo cercado, por todos os cantos e recantos, pelos seguranças que o protegem dia e noite, Bush teve, certamente, um dos maiores e indeléveis sustos da sua carreira. Recompondo-se com dificuldade do ultraje tão surpreendente, ele respondeu, acabrunhado: ‘E aí? O homem jogou os sapatos em mim!’. E desconversou: ‘É uma maneira de chamar a atenção’. Ele podia, no entanto, aplacar o seu ânimo ofendido. Sabia que os seus serviços de segurança estavam ali, bem adestrados, para vingá-lo…


E foi mesmo o que parecem ter feito. As agências de comunicação distribuíram a notícia com esta linha final muito sinistra: ‘Restos de sangue eram visíveis, depois, no local onde o homem foi apanhado pelos agentes de segurança’.


Os nossos votos são para que os organismos de direitos humanos se ocupem do caso e procurem saber o destino do corajoso jornalista. A moral da história? Ora, se nem naquele espaço tão restrito e protegido do Iraque há segurança para Bush, como é que o exército norte-americano ainda pensa poder reverter o quadro catastrófico que lembra permanentemente o Vietnam e chegar, ainda, ‘até a vitória final’ da democracia… norte-americana?


O caso incomodou certamente – e muito – as forças que querem uma saída honrosa para a guerra do Iraque. O gesto do jornalista marcou toda a viagem de Bush ao Iraque e ao Afeganistão, atingindo, sem dúvida, até o gradualismo da retirada articulada por Barack Obama. É este o contexto que explica a reação da grande imprensa mundial, que começou logo, em cima do fato, a trabalhar para defender Bush com mais zelo e esmero do que a sua própria segurança, operando em parceria com a do governo iraquiano.


Sapatos e canhões


Os telejornais se apressaram em propalar logo que ‘o agressor de Bush’ teria sido pago para realizar aquele gesto espetacular. Não conseguiram, no entanto, apagar, no comunicado das agências, a nota que dá conta dos sinais de sangue que cobriam o local onde Mountazer AL-Zadi foi apanhado – e de onde foi levado para interrogatórios e análise do seu estado de saúde que poderia estar abalado pela droga.


Que balbúrdia , quanta contradição! Afinal, qual foi a verdadeira causa: o patriotismo, como querem as ruas que exigem a libertação do jornalista; a corrupção, de quem teria comprado o seu gesto; ou a droga? O que parece ser mais verdadeiro é que os sapatos do jornalista pesam mais que todos os canhões de Bush e seus fantoches.


 


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Cientista político, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, autor de A história pela metade, cenários de política contemporânea, Editora da Universidade Federal de Viçosa, 2008