A imprensa carioca vem acolhendo o termo ‘laboratório’, sugerido aqui e ali pelas autoridades estaduais para designar a intervenção, anunciada como de caráter permanente, em duas favelas – Cidade de Deus e Morro Santa Marta – do Rio. Há menos de um mês, como se sabe, tropas policiais ocuparam militarmente as duas comunidades, expulsando os traficantes e restaurando a prisca imagem metropolitana de locais regulados pelo poder de Estado. Na verdade, começando mesmo a restaurar a idéia de democracia, no sentido atribuído a este termo pelo filósofo norte-americano John Dewey, para quem a democracia se encontra muito mais no fato e na experiência sociais do que na dimensão política – esta seria apenas uma das formas que assume a vida democrática.
Na medida em que transcende o Estado, a democracia configura-se como um modo de vida ou uma idéia/força, vetor vigoroso de lugares, ações e posturas observados pelo prisma da igual partilha dos bens coletivos.
Neste sentido, a idéia de democracia está sempre destinada a ser revisitada e reinterpretada. O fato da plena retomada das duas comunidades por parte do Estado não teve a devida repercussão fora dos limites territoriais do Rio. Em princípio, foi confundido pela mídia externa com ‘pauta local’, porém se trata de experiência a ser acompanhada de perto por todas as representações da cidadania, levando-se em conta o fenômeno endêmico da violência no território nacional.
Expulsar e sustentar a ocupação
Tem funcionado a democracia política, enquanto vigência formal das liberdades civis, mas a ameaça concreta à segurança, ao livre trânsito, mesmo à livre crença religiosa, se concretiza nas periferias da renda e paira como uma sombra ominosa sobre a cidadania como um todo. A sociedade civil, que vinha subestimando a questão da violência social – desde o ‘estado’ de violência, que compreende as suas formas institucionais e invisíveis, até a anomia do tráfico, dos crimes e dos assaltos –, parece estar agora despertando.
Mas a situação ganhou tal vulto, tal magnitude que até a pacificação de duas pequenas favelas deve ser designada como ‘laboratório’. O primeiro argumento para isto é que não há efetivos policiais suficientes para garantir a ocupação contínua num número maior de zonas violentas, em especial naquelas de maior densidade demográfica. Tome-se como exemplo a Maré, comunidade que margeia a Linha Vermelha e onde recentemente traficantes alvejaram turistas noruegueses que haviam confiado na lógica do GPS.
Cerca de 600 traficantes, divididos entre três facções, controlam a aglomeração de 16 pequenas ‘vilas’ e seus cerca de 130 mil habitantes, com armas pesadas e táticas de guerrilha. Ali seriam necessários elevados efetivos policiais não só para a expulsão dos bandos ilegalistas, mas principalmente para sustentar a ocupação. O mesmo se pode dizer do Morro do Alemão, da Rocinha, do Borel e assim por diante.
Presente da Natal
O segundo argumento é que, apesar de toda a opressão por parte da ditadura do tráfico, os moradores dessas localidades vêm inculcando há anos em suas consciências o ethos (os valores, a atmosfera emocional) da ausência do Estado. Aqui, não é a grande imprensa, mas a comunicação comunitária, que esclarece sobre o descompasso na vida cotidiana entre o formalismo das leis e a realidade das práticas sociais. Um atrito entre vizinhos, por exemplo, porque um joga lixo no quintal do outro. A queixa aos ‘meninos’ do tráfico pode significar uma solução instantânea, bastante diversa do emaranhado jurídico e burocrático de qualquer tribunal a que se possa apelar.
Por outro lado, a inserção de favelados na ordem legal resulta cara: na semana seguinte à ocupação do Morro Santa Marta, apareceram os vendedores de TV a cabo legalizada, que simplesmente passava de um preço mensal de duas a três dezenas de reais para, no mínimo, 120 agora. No morro, ‘gato’ – desde a folclórica referência ao couro e à carne do bichano até a instalação clandestina de luz e TV – é coisa barata.
Entretanto, apesar dos óbices ‘laboratoriais’, as imagens passadas pela mídia impressa e eletrônica sobre a realidade pós-tráfico nas duas pequenas favelas cariocas trazem um alento para a população já no limite do estresse em virtude da opressão do ilegalismo e dos azares dos tiroteios, das balas perdidas. Agora, crianças jogam bola em campos improvisados, adultos lêem nas portas de suas casas e manifestam, ainda olhando para os lados, a esperança de que tudo isso possa durar. Certeza mesmo não se tem, apenas a convicção de que, pelo menos neste Natal, o presente coletivo trazido por Papai Noel foi um pouco de paz.
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Jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro