O Brasil meridional é um celeiro de padres. E alguns deles chegaram a altos graus da hierarquia da Igreja, como os cardeais gaúchos que combateram a ditadura militar: Dom Ivo Lorscheider, Dom Aloísio Lorscheider e Dom Cláudio Hummes. E como o fez, de forma mais contundente do que os citados, o catarinense Dom Paulo Evaristo Arns.
O quarteto foi mantido sob o olhar vigilante do Vaticano, tão logo faleceu o papa Paulo VI, mais complacente com as tendências dos citados no seio eclesiástico. Seu sucessor, João Paulo II, dava uma no cravo e outra na ferradura. Foi em seu pontificado, por exemplo, que a maior arquidiocese do mundo, a de São Paulo, foi desmembrada para, como bem observa Gilberto Nascimento (CartaCapital, 24/12/2008, pág. 32), ‘enfraquecer o então cardeal Dom Paulo Evaristo Arns’.
Os cardeais mencionados – uns mais arrojadamente, outros mais contidos, mas todos igualmente coesos na defesa de uma Igreja que fizera a opção preferencial pelos pobres –embora fossem as figuras mais luminosas desta escolha, não eram os únicos a defendê-la na hierarquia católica. Eles dividiam a própria Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em duas correntes: os ‘progressistas’ e os ‘conservadores’. E no alto e no baixo cleros, assim como na base da pirâmide, os conflitos tornaram-se ainda mais acirrados nos anos pós-68.
Interrogatório humilhante
De passagem, convém lembrar que papa e cardeal são denominações tardias. Nos começos da Igreja, não houve esta hierarquia tão rígida nem existiam cardeais. Cada um deles era bispo, do grego epískopos, inspetor, chefe. São Pedro era bispo de Roma, enquanto outras figuras, que rivalizavam com ele em importância e grandeza, eram bispos de outras grandes metrópoles ou regiões.
A chamada Teologia da Libertação oferece o melhor emblema desses enfrentamentos. Há três nomes desse movimento muito conhecidos da mídia: o mineiro Frei Betto, da ordem dos dominicanos, ex-assessor especial do presidente Lula, cujo governo abandonou; e os catarinenses Frei Leonardo Boff, franciscano, e Frei Clodovis Boff, da ordem dos servos de Maria.
Outro catarinense, o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, era tanto poderoso como solidário. Ele acompanhou Leonardo Boff nos interrogatórios humilhantes aos quais foi submetido em Roma pelo então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, ninguém menos do que o atual papa quando cardeal. De pouco adiantou. Boff foi punido, anos depois deixou o sacerdócio e o celibato, e hoje vive com a também teóloga Márcia Miranda.
E Dom Paulo não pode mais ser invocado. Também de pouco adiantaria. Ficaria tão perplexo como Boff diante da briga dos Boffs.
Mala hora
Sempre houve controvérsias na Igreja. E a mais famosa delas deu em Lutero. Mas já Pedro e Paulo, santos e figuras solares da Igreja, pouco se entendiam. Os Boffs revivem uma velha guerra da qual já foram travadas muitas batalhas ao longo desses dois milênios.
Frei Clodovis Boff meteu o irmão Frei Leonardo Boff numa encrenca danada. Eles são irmãos duas vezes. Uma, pela biologia. Outra pela própria denominação das ordens religiosas, radicada no latim frater, irmão, freire, mesmo étimo do francês frère, depois reduzido a frei no português. Quem é filho único que celebre: jamais será atacado por um irmão. Todos os outros correm esse perigo. É só consultar a História.
O Senhor está no meio de nós, rezam os católicos na missa, mas o Inimigo também está. Pelo demoníaco estratagema, pelo diabólico do tema, pela mala hora, esta briga parece coisa do Coiso.
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Doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de Cultura e coordenador de Letras; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da Editora Novo Século); www.deonisio.com.br