Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

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LÍNGUA PORTUGUESA
Deonísio da Silva

As lágrimas de Heráclito ou o riso de Demócrito?

‘Ano que vem completam-se quatrocentos anos do nascimento do Padre Antônio Vieira, glória imortal de nossas letras. No Brasil, como é costume ocorrer com efemérides, ninguém está se mexendo ainda. Ninguém, não! Na Bahia, a Fundação Pedro Calmon já está preparando vários eventos. Portugal também está se preparando para celebrar o grande intelectual, já que Vieira nasceu lá e veio menino -aos seis anos – para o Brasil.

Entre tantos sermões de leitura indispensável para desfrute da sapiência do orador mais famoso que o Brasil já teve, há um escrito e proferido originalmente em italiano, em Roma, no dia 6 de dezembro de 1674. É As lágrimas de Heráclito, ou, no original italiano A favore d’Eraclito. Quem tem as obras completas de Vieira, em papel bíblia, da editora Nova Aguilar, encontra-o no tomo XIV. Ele somente veio a ser traduzido para o português treze anos depois da morte do autor.

Mas por que Vieira pregou em Roma e não em Lisboa ou no Maranhão? Ele estava na Itália porque, perseguido pelo Tribunal do Santo Ofício, solicitava revisão do processo inquisitorial de que era vítima. Enquanto lá esteve, protegido pelo padre-geral, a autoridade máxima da Companhia de Jesus, e pela rainha Cristina, da Suécia, produziu vinte sermões.

Na sessão de abertura da Academia Real de Roma, foi proposta a seguinte questão: o que seria mais razoável: o riso de Demócrito, que zombava de tudo, ou o pranto de Heráclito, que por tudo chorava?

Foram convidados a pregar dois padres jesuítas: Girolamo Cattaneo e Antônio Vieira. Cada um podia escolher o lado. Vieira, gentil, pediu que o colega escolhesse primeiro e por isso ele ficou com a defesa das lágrimas, certamente mais coerente com o seu estado de alma naquele período, perseguido pelos próprios pares.

Girolamo Cattaneo começa o sermão apresentando a clássica oposição entre o Bem e o Mal: ‘todo o artifício adorável, que o Mestre eterno empregou na fábrica maravilhosa do mundo, o natural ou o moral, foi tirado ou da pertinaz disputa dos elementos ou do imortal contraste entre o Bem e do Mal’. (Estou lendo em italiano e fazendo a tradução livre).

O italiano apresenta o riso e o pranto ligados intrinsecamente. Demócrito e Heráclito dominam a cena do mundo. É o contraste de luzes e trevas, de lamentos e risos, antíteses vividas pela dor do contínuo chorar e pela alegria do perpétuo sorrir. E conclui que Demócrito fez o juízo mais sábio, pois se não convenceu os interlocutores, pelo menos não os aborreceu.

Já o Padre Vieira vai direto ao assunto logo na abertura: ‘em seu lugar apareceu o pranto porque segue e vem depois do riso’. A seguir diz que o pranto não desconfia, não, de sua causa; apenas inveja a sorte do riso. Adiante continua: ‘tal é a natureza desses dois contrários. Por isso nasce o riso na boca, como eloqüente, e o pranto nos olhos, mudo’. Para Vieira, o riso é quase como o lapso da razão, o verdadeiro uso da razão dá-se no pranto. Diz que para confirmação de que o pranto é hegemônico, não quer mais prova do que o mundo inteiro. ‘Quem conhece verdadeiramente o mundo, chora; quem ri ou não chora, não o conhece’.

Vieira vai além e diz que cada dia que passa faz um estrago, cada hora e cada instante trazem mil infortúnios. E que os mundos de Heráclito e de Demócrito eram diferentes, mas o mundo que era o tema deles era o mesmo para os dois. ‘A mim, senhores, me parece, que Demócrito não ria, mas que Demócrito e Heráclito ambos choravam, cada um a seu modo’. Artificioso, barroco, retórico, Vieira prova que Demócrito não ria!

O notável orador brasileiro dá também o exemplo do episódio ocorrido com o rei Psamnito, narrado por Heródoto. Deposto, viu em primeiro lugar que as filhas tinham sido transformadas de princesas em escravas, e não chorou com lágrimas; a seguir, viu o filho primogênito, herdeiro do trono, descalço, acorrentado, com as mãos amarradas em um freio à boca, e seus olhos continuaram secos. Mas quando o rei viu um antigo criado pedindo esmola, começou a chorar copiosamente. E respondeu ao rei Cambises, que o interrogou, surpreso com a ausência das lágrimas nos primeiros dois casos e a abundância no último: ‘domestica mala graviora sunt quam ut lacrimas recipiant’, ou seja, ‘os males domésticos são muito grandes para que recebam lágrimas’.

Vieira citou o trecho de cor, o original é diferente no final. Em vez de ‘ut lacrimas recipiant’, Heródoto escreveu ‘ut possem ea deflere’, ‘para que eu os possa chorar’.

O célebre pregador conclui como filósofo cristão que é: ‘se não tivesse perdido a felicidade em que foi criado, o homem choraria ou não?’. Ele mesmo responde que os homens jamais chorariam, se fossem conservados naquele estado.

E termina o sermão assim: ‘se na felicidade daquele tempo estava ociosa a potência de chorar, na miséria deste tempo esteja ociosa a potência do rir. Tenho dito’.

Seu colega disse, em vez de ‘ho detto’ (tenho dito), ‘ho finito’ (terminei), mas falou por mais onze linhas. Coisa de italiano loquaz. Deve ter feito também mais gestos do que Vieira enquanto pregava à rainha Cristina.

A primeira tradução para o português foi feita em 1709 pelo Conde de Ericeira, mas o original ficou desconhecido dos estudiosos de Vieira por cerca de trezentos anos.

É de leitura imperdível. Há uma edição, com algumas imperfeições, publicada em 2001, com uma excelente introdução, fixação dos textos e notas feitas pela professora Sonia N. Salomão, ex-professora das UFRJ e da UERJ, diretora do Centro de Estudos Antônio Vieira, em Viterbo, na Itália.’

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