Estão em trâmite duas medidas, uma no Congresso Nacional e outra na Câmara dos Vereadores de São Paulo, que parecem indicar um caminho legal para a operação das rádios comunitárias. No Congresso, um projeto de anistia às rádios ilegais, e na Câmara Municipal, a criação de um conselho de radiodifusão comunitária.
No entanto, Heitor Reis, membro da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço) acredita que é preciso mais. A defesa da democratização das comunicações passa pela luta da própria democracia. ‘Não estamos em um Estado democrático, pois estamos em um Estado democrático de direito, mas não de fato’, afirma. Segundo Reis, ‘o que se vê nitidamente é que a vontade é de impedir a existência das rádios comunitárias’. A solução? ‘Desobediência civil frente a essa legislação imoral e tendenciosa’, defende.
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Qual a importância da aprovação da anistia para a democratização da comunicação e para as rádios comunitárias?
Heitor Reis – Isso, na verdade, é apenas um pequeno elo de um processo que pode não dar em nada, como imagino que milhares de processos e projetos de lei na Câmara que passam por algumas comissões não chegam a ser sancionadas pelo presidente da República. Depois, ele vai para a Comissão de [Constituição e] Justiça. O relatório vai para o Plenário da Câmara, depois para o Senado, e lá vai para as comissões do Senado, depois vai para a presidência da República sancionar. E talvez nem sancione. Claro que o relatório é bom, é um passo que foi dado na direção [da democratização da comunicação].
Que outras medidas seriam necessárias além da anistia?
H.R. – As entidades mais representativas das rádios comunitárias do país têm uma série de reivindicações que foram contempladas em parte no relatório de um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) criado por decreto do presidente Lula. Só que esse relatório foi jogado no lixo, nada fizeram de concreto com o que foi proposto nele, após 3 anos de concluído e de 5 anos de um GT no MiniCom. Atualmente, a Presidência fala que vai fazer alguma coisa. Há uma certa expectativa, mas isso já aconteceu em outras vezes. Na minha opinião, o Lula engana. Na Abraço – eles não gostam que eu fale – está cheio de petistas que infelizmente não são petistas como a Marilena Chauí, que tem a ousadia de criticar o próprio partido. São petistas que querem agradar.
Antes do Encontro com os Movimentos Sociais (ou comício da Dilma), eu propus na Abraço uma ação direta, tipo jogar um sapato no Lula, ou qualquer coisa, pra poder chamar a atenção dele e da mídia para a nossa causa. Mas ele não estava lá… Poderia ter sido na Dilma Roussef mesmo. Lula não cumpriu o que prometeu: participar do Encontro com os Movimentos Sociais. No outro dia, a presidente da TV Brasil [Tereza Cruvinel] nos encontrou num evento e falou: ‘Abraço, o que é isso? Nunca ouvi falar’. Se eu tivesse jogado um sapato na Dilma Rousseff, tenho certeza que ela saberia.
O senhor acredita que há vontade política por parte do governo para estimular a radiodifusão comunitária e democratizar a comunicação?
H.R. – Eu defendo a tese de que não estamos em uma democracia. A Marilena Chauí concorda comigo, mas ela é muito politicamente correta, é acadêmica. Eu falo rasgado: estamos numa ditadura do poder econômico. É uma plutocracia, um governo dos ricos, dos ladrões. A Marilena Chauí fala que o Estado brasileiro é oligárquico e autoritário e que precisamos democratizar o Estado brasileiro. Concordo plenamente com ela, mas prefiro falar isso de forma mais contundente: estamos num Estado privatizado, isso não é uma República, é uma Re-particular.
Não estamos em um Estado democrático, pois estamos em um Estado democrático de direito, e não de fato. Você pode estar dentro de uma democracia de direito e fazer qualquer cachorrada. Quem quiser que se defenda, mas um processo na Justiça leva anos, ou não é julgado. Os empresários nunca ganharam tanto dinheiro como no governo Lula. Então você crê que o capital vai querer rádio comunitária para o povo se organizar, trocar idéia e querer mudar a própria realidade? O capital não tem interesse nisso, quer é manter o povo alienado, ignorante, para que o imposto cobrado atenda o interesse dos ricos!
No Brasil, 90% das empresas brasileiras, que são pequenas e médias, recebem 10% do financiamento total para o setor privado, e 10% das outras empresas, as grandes, recebem 90% do financiamento. É a política de salvar os bancos, e não o pobre que está morrendo de fome. Recentemente o presidente da Vale do Rio Doce declarou que estamos em crise e por isso deveriam ser tomadas medidas de exceção, como reduzir os direitos trabalhistas, que é o que o Lula já vem fazendo. Esse contexto é muito maior que o da comunicação, tirando algumas exceções como com relação ao movimento negro, aos movimentos por direitos humanos – porque rico não vai ser contra os direitos humanos.
Se você fala que o cara tem direito a um salário conforme está na Constituição, básico para a sobrevivência, ele deveria receber R$ 2 mil, mas cada trabalhador brasileiro que vive com o mínimo está sendo explorado em R$1600. Mas a grande mídia não quer que isso seja dito. Poderia ter espaço nas rádios comunitárias, mas o rico é muito inteligente. Ele sabe que se o povo tem um meio de comunicação na mão, a coisa vai aumentando, ele sabe que se você dá algo para o pobre, ele vai querer mais. O rico quer então impedir essa iniciativa. A Fenaj [Federação Nacional dos Jornalistas] dá abertura a essas iniciativas e é contra a campanha para destruir as rádios piratas. O que é rádio pirata? É rádio sem autorização. Nesse ponto, eu falo em nome da Abraço, defendemos que a rádio comunitária de fato seja respeitada, não vale apenas dar a outorga. Temos mais de 10 mil processos parados e existem poucos funcionários públicos para cuidar do assunto.
Na terça-feira será aprovado um projeto de lei (PL 111/08) de criação de Conselho de Radiodifusão Comunitária. Qual a sua opinião sobre isso?
H.R. – Teve um projeto de lei do [José] Serra há uns dois anos que criou a municipalização das rádios comunitárias. Este projeto parece ser uma evolução disso. A cidade de São Paulo antes não tinha uma rádio comunitária com autorização do governo, hoje já tem. No estado de São Paulo a municipalização foi feita pelo Serra, mas o PT em Belo Horizonte não autorizou o Projeto de Lei que foi votado na Câmara para a municipalização das rádios comunitárias. Estranho, porque o PT sempre defendeu as rádios comunitárias. Um juiz federal, Paulo Fernandes da Bezerra, de Uberaba, diz que o Estado brasileiro prevê que, como somos uma federação, cada unidade tem seu limite, e as rádios comunitárias, por serem locais, não devem ser cuidadas pelo governo federal ou estadual, mas deveriam ser municipais, conforme o pacto federativo.
Como o senhor avalia a legislação sobre as rádios comunitárias?
H.R. – Sobre a Lei 9612 e sua regulamentação, existe uma sentença de um juiz federal em 2ª instância afirmando que ela foi feita para enterrar as rádios comunitárias. A regulamentação desta lei só permite que as rádios tenham um alcance de 2 km de distância, e com uma potência de 25 Watts. Mas, com um transmissor desses, o alcance vai até 20km. Na cidade de São Paulo, onde o campo eletromagnético é congestionado, o alcance não vai nem para até um quarteirão. Nas cidades menores, que são a maioria das cidades brasileiras, há mais abertura e tem poucas emissoras.
O problema é que a pessoa, para ter uma rádio comunitária, tem que preencher 16 formulários, redigir um estatuto, e ainda precisa pagar R$ 500. Uma pessoa pobre, alguém da favela, vai ter muita dificuldade para preencher esses formulários, achar a localização no GPS para ver seu alcance, pagar os R$ 500, bancar o projeto, ter um estúdio. Ou seja, o que se vê nitidamente é que a vontade é de impedir a existência das rádios comunitárias. Isto obriga pessoas de boa fé a abrir rádios sem autorização e desobedecer a legislação, após esperarem tanto tempo sem uma resposta do Estado. E aí surge uma oportunidade para atuação também dos picaretas…
O país tem 5.500 municípios, mas apenas 3.400 RadCom autorizadas, sendo que, em cidades como Belo Horizonte há 10 delas. A Abraço defende, então, a desobediência civil frente a essa legislação imoral e tendenciosa. Nós apoiamos as rádios comunitárias mesmo sabendo que muitas são de pastor, de político, que são fruto do abandono por parte do governo e do Estado das rádios comunitárias. As pessoas de boa fé começam a abrir rádios. O erro está no governo em não autorizá-las. A verdade é que não há liberdade de expressão em nosso país. A carta de direitos humanos da ONU assegura a liberdade de expressão, mas ela não existe aqui. A questão dos oligopólios na comunicação ainda não está regulamentada na Constituição. A justiça ataca as rádios de pastores ou de políticos, que realmente não são comunitárias, mas é difícil ter uma rádio realmente comunitária, porque o povo não tem referência, o governo não auxilia. A pessoa chega a esperar 10 anos para ter sua rádio regularizada.
Em Encruzilhada do Sul (RS), um coordenador jurídico que era da Abraço pediu outorga para uma rádio comunitária e não foi atendido, já o prefeito pediu uma rádio comunitária e foi atendido. A Abraço está negociando com o governo para educar o pessoal. Fecha-se 200 rádios por mês, em média, no país. O Lula fala que é ‘um eterno defensor das rádios comunitárias’, mas nunca na história desse país nós fomos tão perseguidos. A Anatel [Agência Nacional de Telecomunicações] tem um relatório oficial que aponta um aumento de 38% o número de rádios fechadas do último ano do governo Fernando Henrique para o primeiro ano do governo Lula.
Como é o processo de análise da outorga das rádios? Há transparência?
H.R. – Não tem, é uma casa da mãe Joana esse negócio de comunicação. A própria Fenaj soltou um trabalho em 1990, dizendo que, às vésperas de qualquer grande eleição no Congresso Nacional, existe distribuição de concessões. É moeda de troca política. Você vota no meu projeto que eu te dou uma concessão de TV, de rádio. Existe um grande número de deputados que é proprietária de emissoras. É uma bandalheira generalizada. O governo Lula pode ter feito coisas boas, mas na área de comunicação, podemos xingar à vontade.
Fala-se em controle social e participação da sociedade civil no processo de outorgas a rádios comunitárias. Como isso se daria?
H.R. – A Abraço tem uma proposta nesse sentido, porque embora ela não concorde muito com a municipalização por achar que pode servir de moeda de troca política, pelo menos o prefeito está mais perto do povo, pode ser cobrado. Lá em Brasília não dá. O ideal seria haver conselhos regionais, municipais, com entidades como a OAB, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, o Intervozes, e outras entidades relacionadas, como o MST.
Teria de ser um conselho paritário, com trabalhadores, empresários e o governo. Seria um conselho com legítimos representantes da sociedade, porque o atual Conselho Nacional de Comunicação Social (CCS) não é legítimo, porque tem muito empresário que entra como representantes da sociedade civil, mas que defende os direitos deles. Tem que diferenciar o que é sociedade civil e o que é empresa. São classes diferentes, com interesses diferentes. Por isso tudo que é púbico deve ter controle público. Mas esse é um Estado privado. A TV Brasil, por exemplo, não é pública, é estatal. Se estivéssemos em uma democracia de fato, seria pública, o Estado seria público.
O senhor defende a participação de movimentos não ligados à democratização da comunicação nesses conselhos?
H.R. – Sim, porque quanto mais aberto, mais democrática a comunicação. Existe um dito popular que diz que a comunicação é uma coisa tão séria que não deveria ficar na mão de jornalista. E é importante que se mostre a dimensão do Estado nisso. Associações de ouvintes e telespectadores deveriam ser formadas para participar desses conselhos.
Minha crítica [ao atual governo] não é rançosa, porque o povo brasileiro não luta muito por essas coisas. Critico o Lula, mas é por dever do oficio na divulgação da verdade. Se ele for fazer o que quer, nem sei se ainda o quer, que é democratizar a comunicação, o avião dele cai. Jango tentou democratizar este país antes e foi derrubado em um golpe de Estado patrocinado pelos ricos nacionais e estadunidenses. O que está em jogo é a sobrevivência do Estado capitalista toda vez que se começa gestação do Estado socialista. O que está em jogo é a sobrevivência da ditadura do poder econômico toda vez que se começa a gestação de uma democracia de verdade.
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Jornalista