A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) divulgou manifestação da Federação Internacional de Jornalistas (FIJ) defendendo a libertação imediata do jornalista iraquiano Muntadar al-Zeidi, preso em Bagdá depois de jogar seus sapatos contra o presidente de Estados Unidos, George W. Bush (ver aqui). Até agora, a Fenaj se limitou a isso. Bem mais que o Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais, embora alguns de seus associados tenham se manifestado publicamente em defesa da liberdade do colega, inclusive uma diretora do sindicato, Valeria Said Tótaro, que é também diretora do Fórum Mineiro dos Professores de Jornalismo.
Em comentário a um artigo do professor Fernando Massote, no Observatório da Imprensa (ver aqui), Valeria Said escreveu:
‘A mira simbólica do audacioso e indignado jornalista, porém, está na mira do algoz de seu povo, de quem recebeu, `simbolicamente´, uma coronhada de rifle na cabeça e teve um braço quebrado, além de estar preso por `desacato à autoridade estrangeira´, pelo, pasmem, próprio Código Penal datado da época de Saddam Hussein! Com efeito, Massote, gostaria de aproveitar seu artigo e registrar minha solidariedade ao jornalista iraquiano e juntar-me à mobilização de colegas e entidades do mundo inteiro para que Al-Zadi seja liberto, ainda vivo, o mais rápido possível. E para buscarmos um exemplo histórico de intervenção de intelectuais em defesa de outro caso notoriamente político e categoricamente ético, posto que se trata de Direitos Humanos, cito o `Manifesto dos Intelectuais´, escrito no século 19 pelo jornalista e intelectual Émile Zola, cujo título do texto é o mundialmente conhecido, J´accuse.’
‘Protesto contra a injustiça’
Desde já me solidarizo com essa proposta. E gostaria que, do mesmo modo que me convenceu, Valeria Said obtivesse o apoio dos demais diretores do sindicato. Como podem ver, o site do sindicato tem o patrocínio do governo de Minas e o apoio da prefeitura de Belo Horizonte. Compreende-se, portanto, a relutância em apoiar um gesto que, se for imitado mundo afora, se transformará numa arma poderosa contra governantes que, por seus atos, provocarem a indignação pública, como fez Bush ao invadir o Iraque.
O sindicato poderia, talvez, imitar a FIJ, que em nenhum momento incentiva seus membros a saírem por aí jogando sapatos nas autoridades, principalmente em entrevistas coletivas. Como opinou o secretário-geral da FIJ, Aidan White, na notícia publicada pela Fenaj, ‘este jornalista estava expressando as próprias visões profundamente sentidas dele e nós não podemos tolerar as ações dele’.
De acordo com a notícia, a FIJ admite que o protesto do repórter da TV Al-Baghdadiya foi uma reação raivosa à ocupação dos EUA no Iraque e ao tratamento violento dispensado a civis e jornalistas nos últimos quatro anos, justificando: ‘Depois de anos de intimidação, mau trato e matanças não solucionadas às mãos de soldados de EUA, não é nenhuma surpresa que há raiva e ressentimento entre jornalistas’ (A tradução merece uma revisão, mas é o que está no site da Fenaj).
Conclui a notícia:
‘Para a FIJ, não é coincidência que o protesto ocorreu só dias depois que os Estados Unidos recusaram libertar um jornalista detido, apesar de um tribunal iraquiano decidir que ele deveria ser libertado. `Quando os EUA desafiam a lei no Iraque, não é nenhuma surpresa que os jornalistas olhem de outros modos para fazer seu protesto contra a injustiça´, disse White.’
Os ‘grandes democratas’
A FIJ advertiu que o jornalista pode estar debaixo de ameaças e maus tratos sob a custódia das forças dos EUA. Em apoio a sua filiada, a União dos Jornalistas Iraquianos, a FIJ reivindicou a libertação de Muntadar al-Zeidi e que segurança dele seja garantida. A entidade também pediu que o governo iraquiano faça uma ampla investigação das mortes de jornalistas desde o início da ocupação dos EUA no país. A FIJ / IUJ conta 284 jornalistas assassinados no Iraque desde abril de 2003.
Realmente, faltou uma revisão no texto, mas deu para entender o sentido da manifestação da Federação Internacional de Jornalistas.
Para mim, não há qualquer dúvida também sobre o simbolismo do gesto do colega iraquiano. Parece ser esse o entendimento de muitos outros que comentaram o artigo do professor Massote, como o cartunista Paulo Barbosa:
‘Este momento ficará marcado na história como a desforra simbólica de um país que teve seu território invadido por uma potência em busca de mais e mais petróleo. É a desforra também daquele outro povo, o americano, que foi levado à guerra pela mentira segundo a qual o Iraque escondia armas químicas sabe-se lá onde.’
Como em tudo mais, há controvérsias. Um halterofilista de Birigui, em Minas, Eduardo Glomersson, partiu em defesa de Bush, argumentando que ‘o jornalista perdeu a razão, e com certeza pagará o preço, e acho que os direitos humanos não tem haver (sic) com o assunto’. Um argumento que não convenceu, por exemplo, o sociólogo Bruno Moreira, de Niterói (RJ), que comentou em seguida:
‘É impressionante como no século 21 ainda existem pessoas com pensamentos do tipo: `O jornalista iraquiano deve ser punido por atirar um sapato! Isso não é jornalismo!´ São os mesmos que acham que os palestinos atirando pedras devem ser massacrados pelos tanques israelenses, o povo pobre favelado deve ser massacrado pelos caveirões da vida e vidas devem ser tiradas por aqueles que tiveram suas mulheres cantadas por terceiros. São estes que abrem a boca para dizer: `Direitos humanos é para defender bandido!´ E ainda se reivindicam os grandes democratas.’
Torcer para que gesto seja esquecido
Não preciso dizer com quem eu concordo, nesse debate. Mas digo que, se o clamor que se começa a ouvir mundo afora em defesa do jornalista preso não tiver um resultado prático, ele corre sérios riscos. No mínimo, o de ficar preso por um bom tempo.
O ministro do Interior iraquiano informou à ONG Repórteres Sem Fronteiras que o jornalista foi detido em flagrante, com base nos artigos 223, 225 e 227 do Código Penal promulgado pelo presidente Saddam Hussein em 1969. O primeiro artigo prevê prisão, sem estabelecer o prazo, para quem atente contra o presidente iraquiano ou um chefe de Estado estrangeiro em visita oficial ao país. O segundo prevê até sete anos de prisão, para quem insultar publicamente o presidente iraquiano. E o terceiro estabelece pena de até dois anos de prisão e multa por ofensa a chefe de Estado estrangeiro em visita ao Iraque.
Bem, falamos em incentivos às sapatadas… Foi um importante jornal dos Estados Unidos, The New York Times, que informou: um magnata da Arábia Saudita quer comprar um dos sapatos atirados em Bush por até US$ 10 milhões. Acho que nem o sapato de Cinderela valia tanto…
Mas o tema preocupa governantes de todos os quilates. Tanto que Lula procurou jogar o assunto para escanteio, avisando, em tom de galhofa, aos jornalistas presentes à entrevista coletiva no encerramento da I Cúpula da América Latina e Caribe, na Costa de Sauípe, na Bahia: ‘Gente, por favor, ninguém tira o sapato. Aqui, como é muito calor, se alguém tirar o sapato, a gente vai perceber antes de jogar por causa do chulé.’
Tudo bem. Supomos que os seguranças de nosso presidente sejam mais espertos que os de Bush. Mas, que farão os seguranças de Lula, se uma multidão indignada jogar contra ele, ao mesmo tempo, os seus sapatos?
Para qualquer governante do mundo, o melhor é soltar imediatamente esse jornalista ousado e torcer para que seu gesto seja logo esquecido…
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Jornalista, Belo Horizonte, MG