Em plena Guerra Fria, menos de dez anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, quando as relações Leste-Oeste eram tensas e frágeis, o mundo atual estava sendo tecido com a descolonização da África e a Europa acabava de ser redesenhada pelos vencedores. Enquanto isso, um jornal mensal lançado na França se dirigia, em editorial, ‘aos membros dos serviços diplomáticos e consulares de todos os países, além do pessoal das principais organizações internacionais’.
Esse editorial do número 1, de maio de 1954, dizia que o jornal ‘vinha preencher uma lacuna’. Pretendia ‘ter um caráter internacional, ser rigorosamente objetivo e abster-se de tomar posição nos assuntos internos dos diversos países’. Seu objetivo era ‘fornecer informações seguras e abundantes sobre a atividade profissional e social dos meios aos quais se dirige’.
Naquele ano de 1954 a França se retirava da Indochina, com a derrota de Dien Bien Phu. Logo iria começar uma nova guerra que daria origem à independência da Argélia. Depois, os Estados Unidos tomariam a si a tarefa de frear o avanço do comunismo no Sudeste asiático. Era o início da desastrada aventura no Vietnã.
Neste mês de maio de 2004, Le Monde Diplomatique comemora 50 anos de sucesso. Tornou-se leitura obrigatória de intelectuais, historiadores, jornalistas, políticos e diplomatas em 24 edições ao redor do mundo. O jornal exibe uma saúde financeira invejável enquanto muitos órgãos da imprensa francesa lutam para sobreviver a uma grave crise que os sufoca.
Fonte de pesquisa
Fundado pelo mesmo Hubert Beuve-Méry que criara dez anos antes o jornal Le Monde, o Le Monde Diplomatique apresentou-se por muitos anos no sub-título como ‘o jornal dos círculos diplomáticos e das grandes organizações internacionais’ – evoluiu para ‘o jornal da cooperação e das grandes organizações internacionais’ até eliminar de vez a frase.
Dirigido por Ignacio Ramonet, um altermundialista convicto, o Diplo tornou-se, de certa forma, a bíblia dos altermundialistas. Segundo alguns, foi Ramonet quem inventou a expressão ‘pensamento único’, contra o qual o jornal mantém uma luta ideológica acirrada. Um de seus editoriais de 1997, intitulado ‘Desarmar os mercados’ (‘Désarmer les marchés’), deu origem à associação ATTAC (Action pour une taxe Tobin d’aide aux citoyens), da qual Bernard Cassen, diretor-geral do Diplo, foi o primeiro presidente.
Hoje, o jornal reflete os engajamentos de Ramonet e Cassen e se define como ‘fiel aos valores que sempre defendeu: informação segura, independente dos poderes públicos e dos poderes do capital, séria e confirmada, uma opção em favor da democracia, um engajamento sólido e sereno por um mundo menos desigual, menos violento, mais respeitoso do meio ambiente, mais justo, mais solidário e mais tolerante’.
Por afinidades ideológicas ou simplesmente por utilitarismo (é considerado uma excelente fonte de pesquisa), os estudantes de ciências políticas de Paris têm no Diplo uma leitura obrigatória.
Defensor da altermundialização
Para comemorar o cinqüentenário, Le Monde Diplomatique lançou um caderno especial junto com o excelente número de maio. Esse suplemento de 12 páginas reproduz 12 capas a partir do primeiro número, de maio de 1954. As outras são as de maio de 1955, dezembro de 1960, julho de 1962, junho de 1968, junho de 1979, maio de 1984, setembro de 1988, fevereiro de 1991, janeiro de 1995, dezembro de 1997 e janeiro de 2001.
Selecionar doze primeiras páginas entre as 602 já publicadas não deve ter sido fácil. Algumas se impuseram, como a de maio de 1955, em que Sukarno, o então presidente da Indonésia, resume os objetivos da Conferência de Bandung que criou o bloco dos ‘não-alinhados’, países que não queriam gravitar nem em torno dos Estados Unidos nem da União Soviética – na realidade era o surgimento do ‘terceiro mundo’.
A Conferência de Bandung foi um acontecimento de grande importância, que reuniu alguns dos maiores dirigentes das novas nações descolonizadas: o egípcio Nasser, o vietnamita Pham Van Dong, o indiano Nehru e o indonésio Sukarno.
A capa de dezembro de 1960 é a que analisa a eleição do 35º presidente americano, John Fitzgerald Kennedy. O ex-ministro Pierre Billotte faz um perfil bastante favorável do presidente eleito e o artigo de François Honti se pergunta se, com a eleição de Kennedy, surge um líder para o mundo ocidental.
A última capa escolhida para o suplemento especial, a de janeiro de 2001, se impôs: era a primeira do novo século. Ela traz um longo artigo assinado por Ignacio Ramonet intitulado ‘Porto Alegre’, no qual o atual diretor-presidente da publicação não poderia ser mais enfático. Sua primeira frase é peremptória: ‘O novo século começa em Porto Alegre’. O entusiasmado defensor da altermundialização termina o texto dizendo:
‘Em Porto Alegre, neste século que começa, alguns novos sonhadores do absoluto lembrarão que não é apenas a economia que é mundial, a proteção do meio ambiente, a crise das desigualdades sociais e a preocupação com os direitos humanos são também mundiais. E cabe aos cidadãos do planeta, enfim, tomarem a si esses temas’.
Novo padrão gráfico
Desde o primeiro número, o jornal mensal se diferenciou do diário na escolha da tipologia do título – uma família diferente do tradicional gótico do Le Monde. E numa época em que o diário ainda não usava nem fotos nem desenhos, o Monde Diplomatique já saía no primeiro número com foto na primeira página.
O jornal vende hoje 1,5 milhão de exemplares em 24 edições no mundo inteiro – 240 mil exemplares na versão francesa. Apesar de ter como principal acionista (51%) o jornal Le Monde, o Le Monde Diplomatique tem uma linha totalmente independente do diário do qual se originou.
O resto de seu capital é detido pela Associação dos Amigos do Monde Diplomatique (25%) e pela Associação Gunter Holzmann, que reúne os jornalistas e funcionários que o fazem. Gunter Holzmann foi um leitor mecenas, que em 1995 doou 1 milhão de dólares ao jornal.
O Monde Diplo, que cresceu no ano passado 13,69%, teve lucro líquido de 1,5 milhão de euros e uma taxa de publicidade limitada, por decisão editorial, a 5%.
Até o fim deste ano, o Le Monde Diplomatique terá concluído o CD-ROM de todos os artigos publicados de 1973 até hoje, classificados por tema, país e autor.
Números de circulação
Segundo a empresa Diffusion Controle, que faz o acompanhamento das tiragens da imprensa francesa, o jornal Le Monde é o que mais vende na França: 389.249 exemplares diários contra 352.706 exemplares do seu concorrente mais próximo, Le Figaro. No ano passado, o primeiro teve uma queda de 4,38% na circulação e o segundo caiu 1,78%. Na internet, a página do Le Monde, de leitura gratuita, teve em média 450 mil visitas por dia em 2003.
Outras publicações ligadas ao Le Monde – como Le Monde Diplomatique, Le Monde de l’Education e Dossiers et documents du Monde – tiveram crescimento no ano passado.