Conheci o Bastião, o Zé, o Antônio, todos Mendes. Conheci até outros Chico Mendes. Mas foi o Chico Mendes (1944-1988) de Xapuri, no Acre, bom dizer, Amazônia, que me fez escrever este ensaio. Os outros Mendes e os outros Chico não conseguiram emergir das águas do anonimato que matam os filhos da classe dos proscritos.
Eles ficam encurralados na cerca da sobrevivência.
Acordar com a madrugada, pescar uns peixes miúdos, comê-los com sal e banha na panela, ao alvorecer, agarrar-se aos instrumentos de trabalho, a enxada, a faca de seringa, o terçado, enfezar-se com as mutucas, o pium, a ruçara, os cipós-de-fogo, todo tipo de inseto, até inseto que mata, pico-de-jaca, cascavel, olhar para o sol que aquece o sangue, queima e rasga a pele, proferir uma ofensa, arrepender-se, retornar ao casebre, na mesma roupa adentrar a mata, uma espingarda e uma fé manca, uma ‘imbiara’, a janta dos filhos banguelas, da mulher destruída, na pele, na alma e na esperança, retornar cabisbaixo, um macaco-prego, uma ‘nambu’, meninos alegres para ver quem ficará com os ossos das mãos e dos pés, fazer brinquedos com ossos, na ausência compulsória do natal urbano, descer ao porto, tomar um banho com pouco sabão, às vezes andiroba, voltar ao casebre, fumar um porronca, contar um causo da mata, que viveu ou ouviu, animar a família, dizer que naquele ano vai dar para tirar saldo do trabalho bruto, comprar um fardo de chita, um sapato, um relógio, uma lanterna, mais sal e açúcar, combustol, lavar a boca no jirau, espirrar, tossir, mijar no trapicho, olhar no terreiro o ‘bacurim’, as galinhas, o pato, dar uns farelos ao pequeno guariba que grita na ponta da paxiúba, armar a rede, sacudir, para espantar as aranhas e a maldição, deitar o corpo quebrado, a alma partida, os pés maltratados, o coração amedrontado, rezar um pedaço do terço, que já é um pedaço da oração, benzer-se, agradecer a Deus o dia, a comida, o roçado, o bruguelo que nasceu, falar algo à mulher que até hoje ninguém entendeu, descer a mão para as partes secretas, vestidas, cobertas, gemer baixo, esfregar-se, prender a respiração, ejacular, envergonhar-se do corpo desnudo, limpar-se, dormir como um poste, acordar, espreguiçar-se, vestir-se, lavar a boca, cuspir, recomeçar…
A floresta na televisão
A primeira guerra que Chico Mendes venceu foi a guerra da sobrevivência.
A guerra pela sobrevivência é mais longa e árdua que qualquer outra guerra. A guerra pela sobrevivência não deixa outros Chico refletir. Chico Mendes, todavia, cansou-se daquele ritual, acordou a madrugada e os companheiros e os fez parceiros da sua utopia. Utopia de fazer a madrugada radiante, alegre, abundante, transbordando alimento, peixe, carne, arroz, mandioca, feijão, lanterna acesa, pólvora quente, rede limpa, uma cama, orgasmo tranqüilo, porta, dobradiça, menino na escola, igreja, procissão, sapato nos pés, quermesse, leilão, dinheiro no bolso, roçado, legumes, frutas, festa, violão.
Chico Mendes tocou as estrelas sem sair do roçado, estampou nos jornais das metrópoles as estradas de seringa, o balde, a poronga, os varadouros. O defumador acanhado deixou de ser imagem exclusiva dos olhos da mata, da colocação. A anta, o caititu, a sapopema, o tucum, a malária, a morte precoce sob a carga elétrica do ‘puraqué’, a queda do mutá, as festas religiosas, o linguajar. Chico Mendes fez a floresta, como uma deusa, desfilar nos salões – ONU, Bird, Haia, Wall Street, Financial Times, tudo que a elite criou, Washington Post. As coisas simples do povo da mata caminharam em procissão, solidariedade, divulgação. Chico Mendes fez o milagre de colocar a floresta assombrosa dentro da televisão.
Os passos, os bilhetes, a utopia
O seringueiro Chico, Chico Mendes da televisão, virou menino de recado dos gringos, vendedor dos nossos segredos, da nossa soberania, disse a elite mesozóica, divulgaram os jornais diluvianos. Era o que mais se ouvia das gargantas profanas daqueles que matam Chico todos os dias.
Quem foi Chico Mendes e o que ele queria?
Não interessa o nome completo, o pai, a mãe, a escola onde estudou, a professora, o seringal, os irmãos, os sonhos de adolescente, as namoradas, o padre que o batizou. De sua individualidade, basta o dia da sua morte, 22 de dezembro de 1988, quando um jagunço fez explodir o seu peito com um tiro de doze.
Perdão! Preciso fazer mais um registro individual, os dois meninos que Chico Mendes fez fecundar no útero de Ilzamar, sua morena mulher: Sandino e Elenira. Sandino guerreiro, mártir do povo nicaragüense, e Elenira guerrilheira, mártir das matas do Araguaia. Chico Mendes os fez quando já visitava os gringos, recebia prêmios da ONU. Portanto, é enigmático o seu varadouro – enquanto dialogava com os poderosos, batizava os filhos com os nomes da guerra.
O homem Chico Mendes está sob a terra de Xapuri. A história julgará, todavia, os seus passos, a sua voz, os seus bilhetes, a sua utopia. Deles nos ocuparemos, tentando admirar, tocar e dissecar as suas secretas vontades. Chico Mendes queria flashes, holofotes? Senador do Acre bastaria. Queria dinheiro, riqueza? Pecuarista, comerciante, prefeito de Xapuri ajudaria.
Consciência do perigo
O que Chico Mendes queria? Além do que Chico Mendes profetizava, lutava, dizia, algo mais imprimia as suas vontades? Como um humilde seringueiro, de linguagem simples, vivendo numa casa modesta, conseguiu chamar a atenção do mundo? Que mistério dominava a mensagem de Chico Mendes para que, ao mesmo tempo, provocasse tanto ódio e tanta paixão? Além do senso comum [a luta pela preservação da floresta] há algo mais? Por que outros ecologistas [inclusive, mais destacados do que Chico Mendes] não foram ouvidos? Por que o ‘inexpressivo’ Chico Mendes, de Xapuri, teve a sua luta reconhecida em todos os quadrantes da terra?
Este ensaio navega na direção de elucidar esse mistério. O que não é uma tarefa fácil. A argumentação simplista de que Chico Mendes atendia a interesses econômicos e políticos poderosos (internacionalização da Amazônia) se chocará com a constatação de que outros ecologistas notáveis ficaram no anonimato. Isso não significa dizer que os capitalistas que determinam a geopolítica não tenham interesse em controlar a Amazônia e não utilizem determinadas personalidades ou entidades para esse fim. Esse não é o centro deste ensaio. O que queremos é dialogar sobre o mistério que envolve a utopia e a prática de Chico Mendes.
O que de novo apresentava a prática de Chico Mendes? Que métodos de luta utilizava que diferiam de outras táticas?
O empate. O empate consiste em perfilar, no meio da floresta, homens, mulheres, crianças e anciãos com o objetivo de impedir a sua destruição. Quando juntava dezenas de pessoas e os colocava em frente a um trator, Chico Mendes tinha a consciência do perigo. Um tratorista-jagunço poderia passar por cima [literalmente] daquelas pessoas, incluindo anciãos, mulheres e crianças. Uma árvore poderia cair e matar crianças. Balas endereçadas a ele ou a outras lideranças poderiam atingir os inocentes.
O emblema tático
Aqui reside a primeira contradição. Todos eram inocentes. Chico Mendes sabia, aprendera com os animais da floresta, que a luta pela sobrevivência, desde os primórdios, envolvera todo o bando, o grupo, a horda. Chico Mendes não precisou estudar biologia. A escola da mata ensinara que as espécies que venceram foram aquelas que ensinaram as crias, desde cedo, a lutarem para vencer o ambiente hostil. Por outro lado, Chico Mendes percebera que, desde o animal da floresta ao jagunço sem alma e convicção, havia algo que os unia: a proteção intransigente das crias. Nenhum animal e nenhum homem permitem agressão à sua prole, em especial, às crias indefesas. Chico Mendes apostou alto no humanismo que dorme na alma do mais insensível jagunço. A vida confirmou a sua aposta.
A tática de Chico Mendes foi além. O seringueiro Chico Mendes construiu uma tática intermediária entre o pacifismo e o belicismo. O empate é uma forma de luta nova. Combina o pacifismo da espera, produzindo aliados, com o belicismo do enfrentamento. Não produz o movimento do ataque [que pode obscurecer o apoio logístico], todavia se posta na frente do teatro da guerra. Na verdade, ataca o adversário, mas faz o seu movimento parecer apenas um contra-ataque. Conduz a opinião pública à conclusão de que quem atacou primeiro foi o madeireiro, o latifundiário. Objetivamente, o madeireiro atacou a floresta, não os atores do empate.
Chico Mendes, com o seu movimento intermediário, conseguiu convencer que o madeireiro estava atacando os povos da floresta, por isso o empate era um contra-ataque. Os atores do empate estavam, portanto, se tornando árvores, pássaros, raízes, animais, riachos e plantas. Levantavam-se em seu lugar. As mulheres eram a castanheira, a envireira, os cipoais. Os anciãos eram os pássaros, os insetos, as larvas, os animais. Os homens, a sapucaia, a sapopema, o tucum. As crianças eram os riachos, os lagos, as gotas teimosas do orvalho, o ciclo da chuva. O empate de Chico Mendes é o emblema tático da Amazônia.
As andanças humanas
Todavia, esse não é, ainda, o objetivo deste ensaio. Navegaremos em outra direção. Que segredos guarda a utopia de Chico Mendes?
Quando nos quedamos a olhar o nosso próprio tempo, constatamos que algo errado se faz presente no nosso cotidiano. Às vezes eu fico admirando com o jeito que as pessoas se movem na sociedade. Vejo um ancião que, outrora, era um poderoso dono de terras, senhor de centenas de homens pobres. Dominava a sua cidade. O padre, o juiz, o delegado, quase todas as madames, os políticos, os advogados – todos trabalhavam para aquele homem. Tudo estava ao alcance de suas mãos. Os prazeres, as roupas caras, os carros de luxo, a ostentação. Todo o seu tempo estava voltado para a acumulação de riquezas. Onde, hoje, ele está? Numa cadeira de rodas. Sob a terra de um cemitério qualquer.
Continuo admirando a movimentação de outros homens. A freira que renuncia a tudo para enclausurar-se no convento, o moço que estuda duas décadas para formar-se doutor, o sindicalista que envelhece na luta pelos direitos de seus companheiros, a prostituta que não se cansa de abrir as pernas [se cansa não dá demonstração], continua com o seu sorriso amarelo, o político que vende a alma, o menino que mora na rua, todas as andanças humanas.
A outra profecia
No final de tudo, quando se passam os anos, se descobre que nada mais fizemos além de combater pela sobrevivência. Não morrer. Alimentar-se, vestir-se, ter um abrigo, educar os filhos, divertir-se, não morrer. Erguemos abrigos [casebres, palacetes], nos vestimos [andrajos, tecidos de luxo], comemos [restos, cardápios de rei], viajamos [a pé, em carros de luxo], nos tratamos [remédios caseiros, médicos caros], dormimos [sob as pontes, em suítes presidenciais], amamos [marias banguelas, lindas donzelas], nos formamos [operários rústicos, cirurgiões], nos divertimos [bares sórdidos, cafés requintados], bebemos [álcool, vinhos raros]. A posse, a posição social, o cargo, o título. Daí nasce a qualidade, boa ou ruim, daquilo que consumimos. Morremos.
Nada mais que isso foi o que Chico Mendes descobriu.
O tempo vai passando [ricos ou pobres, negros ou brancos] a consumir a seiva da vida. Envelhecemos. O tempo maldito traz dores nas costas, cansaço ao acordar, pêlos nos ouvidos, ossos fragilizados, tosse e reumatismo. Se temos dinheiro farto, retardamos a morte, não impedimos. É a maldição da mortalidade atingindo pobres e ricos. Por isso, tantos (a esmagadora maioria) se agarram a um deus, uma fé, um ritual. Sacrificam prazeres [ou fingem sacrificar], doam esmolas, rezam e oram. Investem, desesperados, na fé de, após a morte, ressuscitar. Viver eternamente. Foi a forma que encontraram de combater a maldição da mortalidade. Chico Mendes apostou em outra utopia, caminhou em outra direção.
Não deixou de rezar, participar das liturgias do seu povo, fazê-las instrumentos de organização e combate. Chico Mendes, no entanto, anunciou uma outra profecia. A mais antiga das profecias: a terra que vocês buscam é aquela que está debaixo de vossos pés!
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Professor e deputado estadual pelo PCdoB do Acre