Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Saldo positivo num ano de crise

Em setembro ele mandou a imprensa perguntar ao Bush sobre a crise. Em outubro, apontou um tsunami nos Estados Unidos e admitiu o risco de uma simples marolinha no Brasil – se a turbulência, naturalmente, cruzasse o Atlântico. Em dezembro, na última semana do ano, a economia nacional em pane é o assunto número 1 da grande imprensa brasileira. Entre a fantasia de um país quase imune à turbulência global e a evidência do contágio, os meios de comunicação independentes ficaram com a segunda, assumindo o risco de ser acusados de inimigos da Pátria e de torcer contra o Brasil.


Fidelíssimo, à sua maneira, ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o ministro da Fazenda Guido Mantega negou as evidências da crise e sustentou até o fim do ano a previsão de um crescimento de 4% em 2009. A imprensa registrou sua insistência, mas não deixou de noticiar a projeção de 3,5% do relator geral do orçamento, senador Delcídio Amaral (PT-MS), nem a do Banco Central (BC), 3,2%, ou a da Confederação Nacional da Indústria (CNI), 2,4%.


Não se tratava de fazer um ‘bolão’, nem de apostar neste ou naquele número, mas de informar as diferentes estimativas e seus fundamentos. Os argumentos mais amplos e detalhados acompanharam as projeções do BC e da CNI. O ministro da Fazenda e o presidente limitaram-se a manifestar sua fé nas medidas corretivas e no poder de reação da economia brasileira.


Muito além da rotina


Os efeitos da crise no Brasil foram o tema central do noticiário econômico no último trimestre de 2008. Na edição de 26/12, uma sexta-feira, 12 das 20 chamadas e chamadinhas da primeira página da Gazeta Mercantil tratavam dos desarranjos da economia, com títulos como ‘Venda de aço laminado tem queda de 24% em novembro’ e ‘Demissão em massa exige muita cautela’. No mesmo dia, o Estado de S.Paulo noticiava, no alto da primeira página, o acúmulo de estoques de automóveis usados e a redução de 30% nos preços.


A crise ganhou espaço e importância gradualmente, a partir da segunda quinzena de setembro. Antes disso, os cadernos de Economia ocuparam-se principalmente da inflação, dos planos para o petróleo do pré-sal e da turbulência financeira no mundo rico, tratada quase sempre como um risco mais ou menos distante.


Em 16 de março, um domingo, o Federal Reserve (Fed), o banco central americano, impediu a quebra do Bear Stearns, o quinto maior banco de investimentos dos Estados Unidos. A crise financeira agravou-se rapidamente a partir desse ponto, nos mercados mais desenvolvidos, mas os primeiros efeitos, para o Brasil, foram transmitidos pelos preços das commodities.


No dia 17 de março, as cotações dos produtos básicos caíram. Reagiram na terça, voltaram a cair nos dois dias seguintes, até a interrupção dos pregões na Sexta-feira Santa. Os jornais brasileiros acompanharam minuciosamente a evolução das cotações. Teria começado a reversão, depois da grande alta iniciada em 2003?


A maioria dos jornais publicou opiniões de especialistas e tratou o assunto com cuidado, sem arriscar uma explicação definitiva. Se a reversão tivesse começado, a economia brasileira logo sentiria os primeiros efeitos da crise externa.


Mas o baque das cotações foi interrompido. Os altos preços dos alimentos e de outras matérias-primas continuaram a pressionar o custo de vida no Brasil. Durante meses, a inflação foi um tema importante para os meios de comunicação. O problema foi tratado como assunto menor pelo ministro da Fazenda: era uma ‘inflação do feijãozinho’. Os jornais noticiaram a opinião do ministro, mas não descuidaram dos fatos.


Em abril de 2008, o BC aumentou os juros. Não se tratava apenas do feijãozinho e do petróleo. As pressões acumulavam-se desde o primeiro semestre do ano anterior, alimentadas em boa parte pela rápida expansão do crédito. A matéria mais completa sobre o assunto foi publicada pelo Valor, antes da decisão do Comitê de Política Monetária. Foi uma das boas demonstrações de como se pode produzir informação além da cobertura rotineira.


Contas no vermelho


A inflação permaneceu alta durante a maior parte de 2008 e quase superou o limite da faixa de tolerância (6,5%). Continuou sendo tratada com atenção, mas a maior parte dos indicadores econômicos, até o terceiro trimestre manteve-se positiva: emprego, produção e consumo subiram continuamente por vários meses.


Apesar de alguma oscilação, os preços dos alimentos continuaram, no mercado internacional, bem mais altos que nos anos anteriores. Nos países pobres e importadores de comida, o problema da fome agravou-se. Apontou-se a produção de etanol como uma das causas do encarecimento da comida. O presidente Lula dedicou-se, em vários encontros internacionais, a mostrar a diferença entre o etanol brasileiro, feito de cana, e o americano, produzido com milho.


A imprensa brasileira acompanhou sua pregação e registrou estudos publicados por várias organizações multilaterais, mas não foi muito além disso. Um detalhe pouco lembrado nas discussões sobre o assunto: não havia fome nas áreas mais pobres da África antes do etanol?


Em abril, a Standard & Poor´s concedeu ao Brasil o grau de investimento na classificação de risco financeiro. A imprensa entusiasmou-se quase tanto quanto o presidente Lula e os ministros da área econômica. Poucos jornalistas parecem ter lido o comunicado inteiro da agência classificadora. Depois dos elogios, apareciam as advertências: o governo deveria cuidar do endividamento público, do excesso de gasto corrente e de vários obstáculos estruturais ao investimento, como o regime tributário. Só alguns jornais mencionaram esses pontos, no material noticioso.


Até a metade do ano, a inflação em alta foi o único fato negativo tratado com atenção pelas grandes publicações e pelos meios eletrônicos. Em junho, a Veja publicou um grande título de capa: ‘Ele abriu os olhos’. Nesse caso, ‘ele’ era o monstro da inflação. Outro dado negativo, o enfraquecimento das contas externas, foi tratado até o fim do ano com ênfase muito menor.


O Brasil chegou ao fim de 2008 com um déficit de 29 bilhões de dólares, aproximadamente, na conta corrente do balanço de pagamentos. Em janeiro, o acumulado em 12 meses já estava no vermelho, mas os pauteiros e editores não deram muita importância ao assunto na maior parte do tempo. Talvez tenham de enfrentá-lo com maior cuidado em 2009, se a receita de exportação, como prevêem alguns especialistas, começar a cair.


Acesso de sensatez


O grande porre político e econômico de 2008 foi a discussão do pré-sal. O presidente Lula e muitos políticos tomaram como certa a iminente conversão do Brasil numa das maiores potências petrolíferas. Governadores puseram-se em pé de guerra pela partilha dos royalties do novo petróleo.


Sindicalistas ensaiaram uma reedição da campanha do ‘petróleo é nosso’ (como se não fosse) e na cúpula do governo entrou em debate uma revisão dos contratos de exploração. Até a Petrobras foi tratada como empresa sem compromisso com os interesses nacionais, capaz de dar um golpe no país para beneficiar seus acionistas privados e – horror dos horrores – estrangeiros.


No meio da enxurrada de comentários, proclamações e declarações de autoridades, algumas muito exaltadas, só quem lesse pelo menos três ou quatro jornais por dia conseguiria manter-se mais ou menos informado.


Boa parte do palavrório reproduzido pela imprensa era puro besteirol, mas não havia como evitar. Com algum esforço, era possível encontrar pitadas de bom senso nesse emaranhado de bobagens altissonantes.


Em agosto, o empresário e economista Francisco Gros, ex-presidente do Banco Central, do BNDES e da Petrobras, lembrou numa entrevista à Folha de S.Paulo uns poucos detalhes desprezados pela maior parte das autoridades: seriam necessárias centenas de bilhões de reais para tornar exeqüível e pôr em marcha a exploração de reservas de petróleo situadas a mais de 200 quilômetros da costa e a mais de 6 quilômetros abaixo do nível do mar. Antes de pensar em como dividir o bolo, seria preciso resolver enormes problemas técnicos e financeiros.


Em Brasília, o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, foi o único integrante do primeiro escalão a mostrar alguma sensibilidade para o assunto. ‘Vamos ter’, disse ele ao Valor, ‘de arrumar uma soma importante de dinheiro. Eu imagino uns R$ 150 bilhões a R$ 200 bilhões para investir em exploração nos próximos cinco a seis anos. Vamos ter de fazer captação de recursos no mercado externo e no interno, a não ser que façamos a exploração do pré-sal por concessão.’ Foi um raro momento de sensatez.


Com a crise, os preços do petróleo desabaram. Haviam chegado a 147 dólares por barril no meio do ano. Em dezembro, oscilaram abaixo de 40 dólares. Nesse momento, a diretoria da Petrobras já havia resolvido deixar para o primeiro trimestre a aprovação dos planos de 2009, por falta de informações seguras. Como discutir seriamente o pré-sal nessas condições?


Visão financeira


Entre o fim de setembro e o início de outubro, os cadernos de Economia começaram a cuidar mais seriamente dos efeitos da crise na chamada economia real do Brasil, mostrando como a retração do crédito internacional começava a afetar a atividade das indústrias e do agronegócio.


O Estado de S.Paulo dedicou seis matérias ao tema no dia 21/9, um domingo, explorando os planos das empresas para o fim do ano, num cenário de incerteza crescente, os problemas do financiamento ao consumidor e a escassez de crédito para o plantio da safra de verão 2008-2009.


Na mesma data o Globo mostrou a insegurança da indústria – engavetar ou não os projetos de investimento – e explorou as possibilidades da economia brasileira em 2009, apontando as dificuldades de planejamento.


Até esse momento, a cobertura da crise havia privilegiado as oscilações nas bolsas de valores e no mercado de produtos básicos, como petróleo e alimentos, mas destacando, quase sempre, a perspectiva financeira. O mundo da produção, do consumo e do emprego ficou quase sempre, até o fim de setembro, num plano recuado, como se a variação das cotações pudesse resumir todos os fatos importantes.


Esta tem sido, há alguns anos, uma das marcas mais notórias da cobertura econômica brasileira, tanto dos jornais quanto da TV: o predomínio da visão financeira, em prejuízo do acompanhamento mais cuidadoso dos fatos da economia real. Na TV, essa característica é ainda mais visível que nos jornais. Os entrevistados, nos programas especializados em economia, são predominantemente do setor financeiro ou de consultorias também muito voltadas para a análise do mercado de capitais.


Material inútil


No fim do ano, os jornais deram mais atenção do que a habitual aos acertos finais do orçamento da União, mas o leitor teve algum trabalho para entender o ajuste das despesas. Nem sempre ficou claro se os cortes mencionados tinham como base a receita prevista na versão original ou a receita reestimada pelos parlamentares. Também faltou explicar com maior detalhe como foram recompostas, no momento final, certas despesas. O assunto era especialmente importante, porque o relator da matéria, o senador Delcídio Amaral, havia decidido produzir um orçamento adaptado à crise – uma novidade notável, em vista da tradição parlamentar brasileira.


No balanço geral de 2008, o resultado da produção jornalística, na área econômica, é altamente positivo. Os jornais ofereceram enorme volume de informações e a cobertura da crise foi tão ampla quanto a da melhor imprensa dos países mais avançados.


Em alguns momentos, houve excesso de informação bruta – com muita entrevista inútil, por exemplo – e um déficit de organização do noticiário. Os editores poderiam ter sido mais gentis, filtrando e articulando mais o material e poupando o tempo do leitor. Mas, no conjunto, os jornais valeram o dinheiro pago pelo distinto público.

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Jornalista