‘A imprensa pode causar mais danos que a bomba atômica. E deixar cicatrizes
no cérebro.’ (Noam
Chomsky)
O jornalista estadunidense Chip Rowe publicou certa vez na revista American Journalism Review uma reportagem
sobre a relutância dos profissionais de imprensa em dar entrevistas aos seus
colegas de profissão: ‘As pessoas da comunidade jornalística têm as mesmas
suspeitas do público de que suas palavras serão distorcidas’, afirmou Rowe. Na
mesma linha, seu conterrâneo David Shaw citou –
referindo-se ao mesmo tema – uma história dos tempos em que cobria a mídia para
o Los Angeles Times, quando um editor do
próprio veículo se recusou a conversar com ele sobre uma pauta, estendendo a
proibição aos seus repórteres.
O professor Ken Metzler, que durante
vinte anos estudou as relações entre fontes e repórteres na Universidade do Oregon, fez o seguinte
diagnóstico sobre este desconforto: ‘A mídia comete tantos erros que os
repórteres sentem-se paranóicos para dar entrevistas; sentem-se desamparados.’
Outra explicação para o mal-estar entre colegas de ofício foi dada por Jack Shafer: ‘Eles vivem de
encher lingüiça. Então sabem o que vai na lingüiça.’
Uma influência perniciosa e constante
Citados os exemplos acima – pinçados de um artigo publicado pelo Instituto Gutenberg (autor não
especificado) –, seria de bom tom perguntar: se nem os jornalistas confiam nos
jornalistas é de se esperar que a sociedade o faça? Apesar de provocativa e
abrangente dentro do contexto em que as afirmações anteriores foram feitas, a
questão tem fundamento. Afinal, que verdades são estas que trazemos à tona
diariamente? As do leitor? Do dono do jornal? Do poder político-econômico por
detrás dele? Muito se fala de ética, mas podemos perguntar também qual a ética
que prevalece na selva das redações?
Jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) e pesquisador do Instituto de Estudos
Avançados da Universidade de São Paulo (USP), Eugenio Bucci
sustenta, no artigo ‘O que
significa acreditar na imprensa‘ (onde dá continuidade a reflexões feitas no
artigo ‘O
patriotismo do consumo‘, ambos neste Observatório), que ‘não há canal
mais adequado para dialogar com a sociedade do que a instituição da
imprensa‘. Diz, também, respondendo a alguns de seus leitores que
contestaram a credibilidade dos jornais, que acreditar na imprensa não significa
crer passivamente em tudo o que os veículos publicam, mas sim, participar
ativamente do que nela é discutido. Para Bucci, ‘fora da imprensa vista como
instituição, não existe um fórum democrático para o florescimento de uma opinião
pública bem fundamentada e vibrante‘. E completa: ‘Acreditar nela
significa ter disposição para dentro dela formular, apoiar e criticar pontos de
vista.’
Não me sinto capacitado teoricamente para confrontar o cerne da argumentação
de Bucci. Desenvolvo estas mal traçadas linhas, imbuído, isso sim, de um
sentimento de impotência diante do que hoje se apresenta como jornalismo –
sentimento que, penso, é compartilhado por muitos. E assim, tento raciocinar
sobre o que diz o professor em seu artigo, por exemplo, quando expõe as
diferenças básicas entre a instituição da imprensa e outras formas de
comunicação. ‘A publicidade é uma prática nitidamente comercial, ainda que
se beneficie legitimamente da liberdade de expressão. Já a imprensa é uma
prática não-comercial, ainda que notícias também possam circular como
mercadorias.’ Ocorre que, analisando o mainstream, já não me sinto
seguro para discernir o que é jornalismo e o que é publicidade, dada a
perniciosa e constante influência do poder político-econômico sobre a
pauta.
O ‘papel secundário de correligionária’
Uma tarde dedicada à leitura dos ‘jornalões’, das revistas semanais e dos
blogs autorais que proliferam na web pode ser uma experiência e tanto para
reforçar este sentimento de desorientação. A revista x acusa a revista
y de editorializar sua pauta. A revista y responde dizendo que
a revista x vive da publicidade governamental. Em meio a isso, colegas
entram em um tiroteio ideológico cujo objetivo é mostrar, através de artigos bem
delineados e de dossiês, que tal setor da mídia não é digno de confiança. Como
resposta, os acusados iniciam campanhas de desconstrução profissional dignas de
uma KGB (ou de uma CIA, para não soar ideológico de minha parte).
Bem, os mais argutos podem argumentar que a conclusão sobre esta ou aquela
afirmação deve ser resultado do cabedal de informação de cada um. Ocorre que, em
meio a esta tempestade de informação na qual se transformou o jornalismo
contemporâneo, dominar um leque tão vasto de assuntos complexos é tarefa
hercúlea até para jornalistas, estes profissionais que se arvoram no direito de
dar pitaco sobre as mais diversas áreas, mas que se arrepiam quando o assunto
adentra sua seara. Se, é assim para nós, imagine para o leitor.
Em 2005, o jornalista Luciano Martins Costa, no artigo ‘A
partidarização oculta os problemas reais‘, neste Observatório,
perguntava: ‘A imprensa ainda é um instrumento confiável para a
interpretação da realidade nacional?‘ Tratando especificamente do caso
‘mensalão’ e de sua abordagem na mídia, ele finaliza com uma avaliação que pode,
no entanto, ser ampliada para esta guerra de confiabilidade na qual estão
imersos hoje os muitos atores da imprensa no Brasil. Diz ele:
‘Difícil aceitar que a imprensa jogue deliberadamente um jogo de
esconde-esconde com a opinião pública, mas não é complicado entender que, depois
de haver enfrentado uma crise de quase uma década, durante a qual perdeu muitos
colaboradores e foi obrigada a firmar compromissos com credores, ela possa ter
se tornado mais vulnerável à tentação de se manter alinhada a grupos de poder
cujas premissas, afinal, não teria dificuldade para assimilar. Problema mesmo é
constatar que a imprensa abdicou de participar da formulação de grandes
estratégias sociais e políticas para se resignar ao papel secundário de
correligionária na tarefa de fazer muito barulho para não revelar o
essencial.‘
Assessoria do poder político-econômico
Em recente entrevista
ao site do Instituto Humanitas Unisinos (IHU On-Line), o professor Erick
Torrico Villanueva, diretor da pós-graduação em Comunicação e Jornalismo da
Universidade Andina Simon Bolívar, disse que
a crise no setor deriva da desconfiguração de suas práticas e princípios em prol
de uma vertente onde o fator comercial é o que impera. Entre as causas e
conseqüências desta inversão de valores e objetivos, Villanueva cita o
desaparecimento da informação de interesse do público dos espaços de notícias na
televisão e no rádio; o esvaziamento do conteúdo básico das notícias; a
tendência do noticiário em gerar incerteza e alarme ao invés de informar; e a
busca, pela imprensa, em assimilar forma e conteúdo dos padrões dos meios
audiovisuais que desvirtuam a atividade jornalística.
Na introdução do livro Imprensa
na berlinda – a fonte pergunta, de Norma S. Alcântara, Manual Carlos
Chaparro e Wilson Garcia, os autores, lembram com propriedade Luiz Beltrão, que
no livro Jornalismo
interpretativo acentuou a necessidade de conhecer a fonte e seus
propósitos: ‘Conhecer a fonte é distinguir os propósitos do sujeito promotor
da ocorrência, ou as intenções do intermediário ou do testemunho, de quem
(pessoa ou instituição) fornece dados mediante os quais se mede o peso do
acontecimento noticiável. Sem esse prévio conhecimento da política informativa
da fonte, sem essa atividade cognitiva fundamental, não poderá o comunicador da
informação de atualidade distinguir, na maré das circunstâncias e ângulos que
concorrem para torná-los visíveis e desapercebidos, os autênticos valores e
aspectos com que irá preencher as lacunas, os vazios da informação,
habilitando-o a dar à mensagem aquela transparência e complementação, sem a qual
o receptor continuará mal informado ou, pior ainda, passível de trocar seu
status do titular do direito de ser informado pelo de tutelado sem poder ou
capacidade decisória.’
Muito correto. A falta de atenção ou entendimento a respeito desta importante
reflexão sobre o fazer jornalístico tem condenado muitos jornalistas e veículos
de comunicação a um papel de assessoria de imprensa do poder político-econômico.
Um exemplo recente deste comportamento foi retratado no artigo ‘Imprensa
fecha os olhos e fortalece homofobia em MS‘, publicado neste
Observatório no dia 17 de dezembro.
Democracia e liberdade de expressão
Mas, pinçando desta reflexão o argumento de fundo, não terá a população o
mesmo direito de conhecer a fonte e seus propósitos – no caso, os veículos de
comunicação – ao folhear seu jornal predileto ou ao assistir do sofá da sala ao
telejornal de sua preferência? São dados ao consumidor de notícia os meios de
conhecer o que de fato há por detrás das manchetes?
Uma frase de Chaparro, citada na introdução do livro supracitado, também
poderia ter sua construção adaptada. ‘Quando o jornalismo se acomoda no
aconchego das fontes organizadas e foge dos maus cheiros que atormentam os
desprotegidos, ele próprio começa a cheirar mal‘, diz ele. Da mesma forma o
leitor/telespectador não cheira melhor ao engolir a notícia como verdade
absoluta. E se não é isso o que está ocorrendo, então, por favor, mehr
licht!
De fato, há argumentos para todos os lados. Pode-se dizer que a maioria
acredita piamente e confia no que lê e ouve. Pode-se, também, dizer que não, que
a população está mais consciente, mais propensa a questionar a notícia, a
interagir com os veículos de comunicação e – como pediu Bucci – ‘participar
ativamente do que neles é discutido’. Há, inclusive, pesquisas para todos os
gostos.
Um destes estudos – divulgado neste ano – é o Latinobarómetro, promovido anualmente
pelo Economist, abordando o pensamento
político dos cidadãos latino-americanos. O levantamento, conduzido no Brasil
pelo Ibope, concluiu, entre outras coisas, que apenas 44% dos brasileiros
acreditam que ‘a democracia garante a liberdade de expressão sempre e em
todas as partes‘. Ficamos em penúltimo lugar entre os países
latino-americanos, à frente apenas da Guatemala (com 42%) e 36 pontos
percentuais atrás do Uruguai, primeiro colocado entre os que atribuem à
democracia um papel de garantia para a liberdade de expressão.
Vender gato por lebre
Estes mesmos brasileiros que, segundo o Latinobarómetro, disseram que não se
importariam em viver sob um governo não democrático desde que este resolvesse
problemas econômicos (57% dos entrevistados) e elegeram o rádio como veículo de
comunicação mais confiável (64%), seguido pelos jornais (62%) e pela TV (60%). O
Brasil aparece, na mostra patrocinada pelo Economist, em segundo lugar
entre os países latino-americanos que mais confiam nestes veículos de
comunicação, sempre acima da média apresentada pelos demais países pesquisados
(55% para rádios, 51% para TV e 48% para os jornais).
Outra pesquisa otimista foi realizada pela multinacional de relações públicas
Edelman, segundo a qual 64% dos
brasileiros consideram a mídia a instituição mais confiável. A Edelman revelou
ainda que 71% dos entrevistados julgam ser confiáveis os artigos publicados por
revistas especializadas em negócios. No Brasil (a pesquisa foi realizada em 18
países), foram ouvidas 150 pessoas com idade variando entre 25 e 64 anos, entre
outubro e novembro de 2007.
Pouco divulgado, no entanto, foi o perfil das 150 pessoas ouvidas pela
empresa. Além do número muito aquém do desejado para uma pesquisa que pretendia
traçar um perfil nacional (segundo quis fazer parecer
o jornal O Globo), os entrevistados foram gente considerada pela
Endelman ‘líderes de opinião’: com curso superior, pertencentes aos 25%
detentores do maior nível de renda por domicílio e com grande interesse em
assuntos relacionados à mídia, à economia e aos negócios públicos. Trata-se,
portanto, de uma amostra de parte da elite brasileira.
Para os que se aventuraram no link intitulado ‘segundo quis fazer parecer
o jornal O Globo‘ ou já estavam por dentro das maquinações dos
Marinho para vender gato por lebre, pergunto: se nosso jornalismo (ou parte
importante dele) se esforça por noticiar uma informação incorreta sobre seus
próprios níveis de aceitação popular, o que fará com outras notícias de
interesse político-econômico?
Conhecer e entender o leitor
No contraponto está, por exemplo, a pesquisa
realizada em 2006 pelo Instituto GlobeScan para a BBC, a Reuters e o The Media Center (no Brasil, o trabalho
foi realizado pela GfK Indicator, que ouviu mil
adultos de nove regiões metropolitanas – Belém, Belo Horizonte, Curitiba,
Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo – no
período de 16 a 22 de março). O levantamento revelou que, no Brasil, mais da
metade dos entrevistados (55%) não confia nas informações obtidas através da
mídia. Entre todos os países pesquisados, esse percentual só não foi maior do
que o obtido na Alemanha (57%).
Além disso, a pesquisa revelou que o Brasil é o país onde as pessoas estão
mais descontentes com a sua própria mídia, segundo os seguintes fatores: a mídia
exagera na cobertura das notícias ruins (80%); os leitores raramente encontram
na grande mídia as informações que gostariam de obter (64%); não concordam que a
cobertura da grande mídia seja acurada (45%); declaram ter trocado de fonte de
informação nos 12 meses anteriores por terem perdido a confiança (44%).
Durante o evento ‘Mitos e Verdades do Brasil de Hoje – a Visão da Mídia’,
realizado em São Paulo no dia 27 de novembro, Otavio Frias Filho, da Folha de S.Paulo, disse que, para
que os jornais sobrevivam, é preciso que eles conheçam e entendam seu leitor, e
admitiu que a distância entre o que a imprensa oferece e o que os leitores
querem ler é imensa.
A busca da ‘verdade até a morte’
Mas afinal, o que quer o leitor? Ao que parece, ninguém sabe ao certo.
Analisando o evento (do qual também participaram Ricardo Gandour, do Estado de S.Paulo, e Josemar
Gimenez, do Correio Braziliense), Luciano
Martins Costa diz o seguinte (no artigo ‘Um
melancólico olhar para dentro‘, neste Observatório):
‘Os três representantes do grupo que se costuma qualificar como `a grande
imprensa´ não deram demonstração de otimismo quanto ao futuro dos jornais.
Também deixaram a impressão de que os jornais que saem de suas impressoras não
são aqueles que eles gostariam de ver impressos. Muito do que expuseram como
opiniões suas se opõe diametralmente ao que seus diários publicam. A imagem que
deixaram na platéia de convidados foi a de uma melancolia profunda, como a dos
velhos elefantes que se encaminham lentamente para o
cemitério.‘
A análise dos três publishers não é diferente da minha ou da de
milhares de jornalistas perdidos nos descaminhos da profissão. Alguns têm mais
poder de decisão que outros, mas todos nós estamos mergulhados até o pescoço em
uma pantomima na qual fingimos que fazemos jornalismo enquanto a população finge
que acredita nisso.
Talvez, como
sugeriu monsenhor Paul Tighe, secretário do Pontifício Conselho das
Comunicações Sociais do Vaticano, tenhamos que recorrer à ética e à incessante
busca da ‘verdade até a morte‘ para entendermos, de fato, o que quer o
leitor e o que queremos nós, jornalistas.
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Jornalista, Campo Grande, MS, editor do blog Escrevinhamentos