Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O jornalista do ano

O julgamento de Muntazer al-Zaidi – o jornalista iraquiano que atirou seus dois sapatos contra George W. Bush e ainda o chamou de ‘cachorro’, durante visita do presidente estadunidense ao Iraque – está marcado para quarta-feira (31/12), mas se depender do bom-senso e do sentimento de milhares de pessoas ao redor do mundo, o veredicto já está decidido: al-Zaidi não apenas é inocente, como também pode ser considerado um herói.

Muntazer é inocente porque um simples par de sapatos lançados contra alguém jamais faria o mesmo o que fizeram as tropas estadunidenses e as forças de coalizão em quase seis anos de ocupação: matar, até o dia 11 dezembro, quase 100 mil civis iraquianos inocentes, segundo o site Iraq Body Count (‘Contagem de corpos no Iraque’, em português).

Da mesma forma, al-Zaidi pode ser considerado um herói por ter realizado o sonho de muitas pessoas ao redor do mundo: executar um protesto veemente e de grande repercussão contra um pseudo-líder, um mentiroso de carta maior, um fanfarrão que nada via além de petróleo e de uma vingança particular contra Saddam Hussein, que anos antes humilhara Bush pai perante o mundo.

Críticas ao militarismo

Mas é claro que nem todos, sobretudo muitos profissionais de imprensa, pensam assim. Muntazer al-Zaidi, que trabalhava para a emissora Al-Baghdadia, fez o que, na teoria, seria um ‘crime’ para qualquer jornalista: virar a notícia. Por outro lado, al-Zaidi fez o que muitos auto-intitulados ‘jornalistas’ há muito deixaram de fazer: traduzir, explicar, fazer entender a notícia. Ou seja, o que está por trás dela.

Mas enquanto a maioria dos jornalistas ‘sérios’ perdem tempo com o óbvio, com o discurso das fontes oficiais, com as coletivas de imprensa formais e de perguntas e respostas de ‘cartas marcadas’, al-Zaidi fez o jornalisticamente mais acertado: ele correspondeu aos anseios de seus leitores imediatos, os árabes, usando apenas uma linguagem editorial ‘alternativa’. Não foi à toa que tão logo o jornalista passou a ser visto como herói local.

Mas a atitude de Muntazer foi muito além do que ele próprio deveria imaginar e deu o tom ‘prático’ a muitos discursos anteriores. Personalidades conhecidas mundialmente, como o ator George Clooney – filho do jornalista e político democrata Nick Clooney – e o arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer, já deixaram evidente sua antipatia e até sua raiva declarada publicamente contra Bush, mas nada disso chamou a atenção do mundo em tamanha proporção como al-Zaidi.

Diversos grupos musicais, entre eles o Rage Against the Machine (RATM) e o System of a Down (S.O.A.D.), despejaram letras e mais letras na cabeça dos jovens do mundo com críticas severas contra o militarismo dos EUA, contra Bush e a Guerra no Iraque. Músicas como Killing in the Name (‘Matando em nome de’, em português), do RATM, e B.Y.O.B., ou, mais detalhadamente, Bring Your Own Bombs (‘Tragam Suas Próprias Bombas’, em português), do S.O.A.D., tiveram repercussão, mas nada comparado aos sapatos de Muntazer.

Escrevendo a História

Portanto, aos jornalistas-inquisidores de plantão, que já condenaram de antemão o profissional iraquiano pelo crime de ‘antiprofissionalismo’, fica a sugestão: esqueçam os manuais ‘politicamente corretos’ das academias e das chamadas ‘grandes’ redações, e pensem no conceito filosofal e social de jornalismo, levando em conta a situação de cada povo ou país.

Quem sabe assim, muitos de vocês deixem de ter o jornalismo como uma mera forma de entrar gratuitamente em festas e shows mostrando o crachá de imprensa, para assumir uma postura mais compromissada com a realidade à sua volta, repleta de fome e miséria, e, quem sabe, ajudar a escrever (ou reescrever) a História. Para o Iraque, Muntazer al-Zaidi já deu o primeiro grande passo.

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Estudante do 7º período de Jornalismo em Manaus, repórter do Portal Amazônia e redator freelance