Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Política de cotas não é política educacional

A direita política não aprova a política de cotas para minorias em universidades públicas. Não raro, a esquerda que temos não sabe defender a política de cotas. Os democratas deveriam solicitar da filosofia um instrumento de defesa dessa política, essencial para o Brasil.

A filosofia pode dar um instrumento, pois o argumento depende de discernimento, de compreensão do tipo de utilidade da política de cotas. Acredito que as pessoas de bom senso e inteligentes que puderem ler com carinho o que vai abaixo, podem ter chances de compreender que, no Brasil, todos nós ganhamos com a política de cotas para minorias.

A cota para minorias em universidades não tem sentido caso seja uma forma de melhorar a educação dessas minorias. Seria uma idéia imbecil ter uma massa de pessoas sem instrução e, então, criar cotas para elas estudarem no ensino superior, em vez de melhorar a educação de base dessas mesmas pessoas.

Pode ser que alguma pessoa no MEC, e mesmo o ministro Fernando Haddad, não tenha clareza disso e confunda as coisas. Não é difícil imaginar que Lula possa acreditar que a cota seja para melhorar a educação das minorias. É mais fácil até invocar razões incorretas e fazer o populismo correr. Pode ser que os próprios defensores das cotas imaginem que elas têm esse objetivo de melhoria educacional e, assim, também alimentem sentimentos pouco nobres dos cotizados. No entanto, não é para isso que os Estados Unidos inventaram a cota. Não é para isso que a cota serve, em lugar algum.

O milagre da convivência na escola

A cota é uma forma de colocar um grupo social em local onde não há a presença desse grupo social, para que esse ambiente possa conviver com o diferente e, então, espraiar o hábito de convívio com este diferente para além desse local. A idéia básica, portanto, é a de evitar que o preconceito racial permaneça. No Brasil, a maioria não é mais branca. Então, se houver lugares que só os brancos freqüentam e esses lugares aparentarem privilégios, seja por qualquer motivo, o vírus do preconceito pode crescer.

O que ocorre pode ser colocado em poucas linhas. A menina branca vai para a escola e passa uma vida só vendo brancos. A única vez que vê um negro e realmente conversa com ele, ela já está adulta. Antes, ela tinha visto negros apenas na TV. Nunca havia convivido com um. Uma vez adulta, no trabalho, começa a ver negros e mais negros. Então, eis que alguém escuta dessa garota a frase: ‘Nossa, o que há nesse lugar em que vim trabalhar, que todo mundo aqui é negro?’ A frase pode não vir seguida de qualquer preconceito. É apenas uma constatação. Mas, em geral, o preconceito (não estou falando de racismo!) pode surgir aí, o diferente apareceu para ela muito tardiamente. Um empurrão para o lado torto, e eis que um clima de distanciamento pode ser incentivado e em seguida instaura-se o preconceito.

Assim, a cota é um elemento de integração, de fazer com que toda a geografia seja ocupada por todos. É uma forma de democratização do espaço do país. Um efeito indireto disso, mas que ajuda pouco, é que teremos mais pessoas de minorias com formação universitária. É claro que isso é bom, mas não é tão milagroso quanto o milagre da convivência social na escola. É na convivência social na escola, fazendo do espaço escolar um lugar de todos, que o preconceito é quebrado. Cotas só são úteis assim.

Democratização e combate ao preconceito

Quem confunde tudo e imagina que a cota é para ‘vingar a escravidão’ ou ‘fazer justiça social para o ressentido’, sendo contra ou a favor das cotas, acaba não ajudando o Brasil. Quem tiver boa vontade de ajudar o Brasil a vencer o preconceito e criar um país sem ódios de grupos, tem de entender as cotas no objetivo real delas, independentemente dos seus defensores ou agressores. Há muita conversa tola nesse meio.

Por isso mesmo é que não pode haver a cota para o ‘branco pobre’. Ou melhor: não pode haver a cota para o pobre. Pois o pobre não é minoria social. E para o pobre já foi feita uma política anterior à da cota. O pobre entrou na vida política social brasileira pré-cota, que foi a de construção de um aparato que visava à criação de um Welfare State brasileiro, no caso, a construção da rede de ensino público gratuito. Todavia, esse ensino se deteriorou e agora o pobre não consegue mais, tendo freqüentado esse ensino, aprender o que deveria aprender e, assim, não passa no vestibular e se vê impedido de manter seu percurso no campo da escola pública. Nesse caso, a solução não pode ser a cota. Nesse caso, a cota funcionaria como mascaramento dos problemas do país. Ou seja, seria um mascaramento do não investimento na educação básica.

Assim, não podemos cruzar as coisas: para o pobre, branco ou negro (ou índio), temos de ter a escola pública boa, ensinando corretamente, de modo a fazê-lo entrar na universidade pública sem que essa tenha que diminuir seus requisitos. Para o negro e o índio, temos de fazer uma política de cotas temporária, de modo a democratizar o espaço de um modo rápido. Portanto, temos de pensar na reconstrução da escola pública a curto e médio prazo, como um elemento do ensino. E temos de pensar na política de cotas em um curto prazo, inclusive com data para acabar, como uma política de democratização do espaço e de combate ao preconceito. A universidade é o campo de confluência dessas duas políticas, mas elas não devem se confundir.

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Filósofo, São Paulo, SP