Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Chegou a hora de discutir o mérito

Na impossibilidade de estar em Brasília na manhã do dia 15 de setembro de 2004 para participar da primeira Audiência Pública destinada a discutir o projeto que cria o Conselho Federal de Jornalismo (CFJ); mas, por outro lado, não querendo ausentar-me desta histórica iniciativa, tomo a liberdade de oferecer minha contribuição por escrito.


Em primeiro lugar, minhas congratulações aos dirigentes desta Comissão pela presteza em iniciar o debate formal em torno do projeto. Cinco semanas depois do seu envio ao Congresso pela Presidência da República, e em seguida a uma das mais acirradas disputas públicas na esfera da imprensa e do jornalismo das últimas décadas – inclusive com desdobramentos internacionais –, é chegada a hora de discutir o mérito da questão.


Instalado o debate no âmbito parlamentar, não significa que estejam ultrapassadas ou devam ser esquecidas algumas questões que dominaram a fase anterior. A primeira diz respeito à legalidade de uma ação governamental para regulamentar o exercício do jornalismo. A segunda relaciona-se com a pretensão da Federação Nacional dos Jornalistas em apresentar-se como legítima representante dos jornalistas brasileiros. A terceira refere-se à validade de um texto aprovado num Congresso Nacional de Jornalistas e posteriormente reescrito pela Casa Civil da Presidência da República.


Estas questões continuam pertinentes. Mais do que isso, são vitais. Não podem deixar de ser cogitadas na discussão dos méritos porque comprometem o projeto na sua essência. E a sua essência é política. A proposta de um Conselho Federal de Jornalismo não pode ser minimizada e enquadrada apenas na esfera corporativa ou profissional. Trata-se de uma questão institucional. Uma imprensa tutelada, mesmo que de forma velada ou indireta, produz uma sociedade tutelada. O sistema midiático é um espelho que projeta formatos e conceitos em todas as direções.


Falta de decoro


Ao iniciar-se a tramitação parlamentar no âmbito desta Comissão de Educação, Cultura, Ciência e Tecnologia, Comunicação e Esporte não podemos esquecer que a questão da constitucionalidade da proposição do governo é liminar e deve preceder às demais.


Evidentemente, não é este o foro apropriado para examinar a compatibilidade do projeto do CFJ com o espírito e a letra da Carta Magna (o endereço certo seria a Comissão de Constituição e Justiça). Mas se o texto como um todo apresenta-se claramente inconstitucional, fica prejudicado o exame ‘técnico’ do seu mérito. Estamos, portanto, diante de uma peça liminarmente incompetente, imprópria e, por isso, antidemocrática.


Esta oposição ao projeto do CFJ não deve ser vista como um atestado de boa conduta ou de qualificação da imprensa e da comunicação social em nosso país. Ao contrário. A cada dia que passa torna-se mais gritante a necessidade de estabelecer algum tipo de regulamentação ou monitoramento do sistema midiático – sobretudo nas suas ramificações eletrônicas.


Como qualquer poder, também a comunicação deve estar sujeita a algum tipo de controle social. Hoje, isto é ponto pacífico. Mesmo nos Estados Unidos, pátria da livre iniciativa, a existência da Federal Communications Comission (FCC) tornou-se inquestionável.


O surto ‘denuncista’ que precedeu a encampação pelo governo do projeto do CFJ não pode ser desconsiderado. É uma aberração que compromete o nosso jornalismo há mais de uma década. Mas é preciso que se diga que nesta aberração são cúmplices os veículos jornalísticos irresponsáveis que divulgam tais denúncias e, com eles, os parlamentares irresponsáveis que os alimentam.


O denuncismo é conseqüência direta dos vazamentos de informações sigilosas de inquéritos que tramitam no Congresso. Se falta decoro àqueles que divulgam denúncias sem o apóio de investigações, falta decoro aos que fornecem estas informações. De nada adianta pretender um conserto na torneira se o cano está visivelmente perfurado.


Sem convergência


O denuncismo e o sensacionalismo são a ponta de um iceberg que começa com o baixo nível da programação televisiva. Nossa mídia eletrônica necessita de urgentes e corajosas inovações que dependem, antes de tudo, de um Congresso isento, rigoroso e livre de conflitos de interesses. Quando um representante do povo é ao mesmo tempo concessionário de um serviço público de rádio e televisão está inabilitado para legislar com independência. Não será um Conselho Federal de Jornalismo que conseguirá promover a necessária diversidade informativa de que tanto carece a nossa democracia.


A discussão sobre a concentração e propriedade cruzada dos meios de comunicação é urgente e seu adiamento afeta não apenas qualidade da nossa mídia mas também as possibilidades para o seu desenvolvimento. Mas é impossível discutir esta questão no âmbito parlamentar enquanto os parlamentares forem parte interessada na manutenção do status quo.


Depois de uma década de postergações, em 2002 o Senado Federal finalmente colocou em funcionamento o Conselho de Comunicação Social. É uma conquista, um avanço. Mas é imperioso reconhecer que a regulamentação deste Conselho, e os acordos para a escolha dos conselheiros, o converteram num fórum de debates, espécie de arena em miniatura para o confronto entre os dois blocos de corporações, o profissional e o empresarial, cujos interesses jamais serão convergentes. A sociedade civil é sempre minoritária.


Não é este o momento para identificar todas as disfunções do nosso sistema mediático e suas graves conseqüências em nosso desenvolvimento cultural. Uma coisa, porém, é certa: a criação de um Conselho Federal de Jornalismo não será a solução. Ao contrário, será um agravamento irremediável.