Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Repressão policial, ideológica e política contra o aborto no Brasil

‘O dilema não é pelo aborto ou contra o aborto. O dilema é pela repressão como política ou pela despenalização como política, seguida de outras coisas (…) As interrupções da gravidez se realizam, dezenas de milhões, sem condenação coletiva, em todos os estratos sociais. Há um texto legal que está desautorizado pela prática concreta de nossa sociedade.’ (Enrico Rubio, senador do Uruguai, em 4 de maio de 2004, em discurso proferido durante a votação da Lei de Defesa de Saúde Reprodutiva)

‘Nossa preocupação deve ser com a saúde pública, com a saúde da mulher, com o direito de opção. Respeitamos totalmente a visão da Igreja e seus princípios, mas, como autoridades de saúde pública, nossa preocupação deve ser com a saúde da população.’ (Humberto Costa, ministro da Saúde, na Folha de S.Paulo, 11/4/04)

Em 2004, manchetes de jornais, de diferentes partes do país, focalizaram prisões de mulheres que abortaram, muitas denunciadas por médicos(as) que as atenderam em processo de abortamento inseguro, o que, para a Organização Mundial da Saúde, é ‘o procedimento para terminar uma gravidez indesejada realizado por pessoas sem as devidas habilidades ou em ambiente sem os mínimos padrões médicos, ou ambos’ [‘Abortamento seguro: orientação técnica e de políticas para os sistemas de saúde’. International Women’s Coalition/IWHC e Organização Mundial da Saúde/OMS, 2004].

Foi publicada matéria sobre o julgamento de uma mulher que realizou auto-aborto, em 1997, no Distrito Federal [Correio Braziliense, 1º/6/04, Processo nº 19990910012992. Revista Consultor Jurídico, 2/7/04], e veicularam-se notícias de prisões de pessoas que ajudam mulheres a abortar. Prisões de médicos, ‘enfermeiras’, ‘batidas’ e fechamento de clínicas clandestinas de aborto podem ser analisadas como uma ‘neocaça às bruxas’, ou seja, um ‘cerco apertado’ das forças conservadoras contra o direito de decidir das mulheres, no contexto de recrudescimento do fundamentalismo religioso em todo o mundo.

Tenho dito que o aborto – expressão radical de resistência – é uma experiência milenar de milhões de mulheres, que expõe dilemas morais e visibiliza que não é ético obrigar a mulher a levar adiante uma gravidez quando ela não quer ou não pode. As interdições ao aborto não impedem sua realização, apenas tornam-no clandestino e inseguro, penalizando as pobres, que recorrem aos piores lugares, arriscando a saúde e a vida. Para alguns setores religiosos o benefício do respeito à alteridade não se aplica ao aborto e, condizente com o clima de caça às bruxas do aborto – tecido e urdido em âmbito mundial pelos chamados pro life, tramita no Congresso Nacional o PL 849/2003, do deputado Elimar Máximo Damasceno (Prona-SP), que visa legalizar a delação, pois autoriza o Poder Executivo a criar central de atendimento telefônico destinada a atender denúncias de abortos clandestinos. No momento, tramitam no Congresso nacional 28 projetos de lei sobre aborto, dos quais 14 são contrários ao procedimento em diferentes níveis.

Tais notícias, além de se referirem a um número expressivo de casos, podem ser reveladoras do aguçamento de perseguição sobre as decisões reprodutivas das pessoas, de uma forma jamais vista no país, contrastando inclusive com constatações feitas por Adaillon, em 1994, de que no Brasil o aborto, embora criminalizado, raramente era punido na condição de auto-aborto; levemente penalizado quando feito por parteiras e enfermeiras, o que levou a autora a afirmar que ‘é como se sua punição não interessasse realmente à sociedade. Há um enorme investimento em sua proibição e pouco interesse na sua penalização de fato’ [Adaillon, Daniele. ‘O aborto no judiciário: uma lei que justiça a vítima’. Citado por Rocha, Maria Isabel Baltar & Neto, Jorge Andalaft, in ‘A questão do aborto – aspectos clínicos, legislativos e políticos’. Capítulo do livro Sexo & Vida: panorama da saúde reprodutiva no Brasil. Editora Unicamp, 2003].

Olhar sobre a mídia

Magaly Pazello e Sônia Corrêa, em ‘Aborto. Mais polêmicas à vista!’, capítulo do livro Olhar sobre a Mídia, da Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR), 2002, afirmam:

‘O monitoramento do Olhar sobre a Mídia sobre o tema aborto, entre julho de 1996 e dezembro de 2000, revela transformações na cobertura pela mídia (…) O aborto deixa de ser assunto restrito às páginas policiais, passando a integrar diferentes editorias (ciência, política nacional e internacional, saúde, família, cadernos especiais) como assunto de interesse de todos e todas. Abriu-se, então, um leque de debate contando com muitas vozes (…) Das 699 matérias sobre aborto disponíveis na base de dados do Olhar, aproximadamente 63% foram publicadas entre julho de 1996 e dezembro de 1997.

Aprofundando a análise, as autoras constatam:

‘O ano de 1997, portanto, marca o deslocamento do noticiário sobre aborto das páginas policiais para as páginas de política. A característica do tratamento dado pela imprensa é marcar o entrincheiramento das posições contra e a favor do aborto (…) A Folha de S. Paulo esteve, uma vez mais, na vanguarda do debate, publicando alguns editoriais críticos ao sectarismo contrário ao aborto (…) De 1996 a 2000, a Folha de S. Paulo publicou 21 editoriais em que argumentos favoráveis a uma legislação mais liberal têm sido reiterados e melhor elaborados. Cinco deles foram publicados no mês de dezembro (…) O último deles, do dia 23/12/2000, mais uma vez cobra bom senso da sociedade, afirmando que, se por um lado, há que se considerar o argumento de alguns setores de defesa da vida, por outro cresce, no país, o consenso de que a legislação sobre aborto vigente no Brasil está ultrapassada. A motivação do editorial foi a aprovação da moção pela descriminalização do aborto na plenária da 11ª. Conferência Nacional de Saúde (…)

Ao final de 1998 (outubro), o Ministério da Saúde adota a Norma Técnica sobre Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual Contra Mulheres e Adolescentes, que prevê a assistência nos casos de violência sexual e a realização de aborto quando gravidez resultar de estupro. Isto favoreceria a ampliação do número de serviços de atendimento ao aborto em um dos casos previstos na lei: gravidez resultante de estupro. Entretanto, a imprensa não deu visibilidade imediata ao significado da norma. Isto só viria acontecer em 1999 e 2000 quando a mesma foi questionada pelas forças contrárias ao aborto no Congresso Nacional.

As autoras constataram que entre 1997 e 1999 houve um salto de qualidade na abordagem sobre aborto em todos os jornais monitorados, todavia a presença do tema ainda foi tímida em comparação com outras vertentes da saúde reprodutiva e dos direitos reprodutivos, a saber: Apenas 5% das matérias trataram de aborto, enquanto Cultura Sexual foi objeto de 48% das matérias publicadas, Aids/DSTs somando 21%; Reprodução, 20%; e Câncer, 6%.’

Porém, o cenário dos primeiros anos do século 21 é outro. Vivemos uma época de direitos legais jamais experimentada pela humanidade em todos os tempos, ainda que seja uma peleja exercê-los! Parecem mais explícitos os anseios fundamentalistas, cuja expressão mais palpável é que a sexualidade das pessoas, na essência, ainda é objeto de controles sociais rígidos por parte da família, da sociedade e também do Estado. E o que chama atenção é, sobretudo, o desrespeito sistemático à liberdade reprodutiva e a insistência de determinados setores da sociedade em não reconhecerem que as decisões reprodutivas das pessoas estão, de tal modo, envoltas na intimidade de cada uma que não é ético fazer juízo de valor sobre elas, sob pena de declarar que estão violando, conscientemente, a intimidade e a honra das pessoas.

Os exemplos cotidianos que aparecem na imprensa do controle que família, sociedade e Estado exercem sobre os direitos reprodutivos falam por si. Façamos de conta que estamos lendo um jornal. Prestemos atenção em suas manchetes (em vermelho), em seus discursos e no que está nas entrelinhas. Análise de mídia exige o aprendizado da perspicácia de perceber e saber ler nas entrelinhas.

Manchetes e discursos sobre aborto e clínicas clandestinas

Do hospital para a cadeia. Mãe de seis filhos, casada, marido desempregado, a faxineira L. foi presa em flagrante por prática ilegal de aborto. O flagrante só foi possível porque L. foi delatada por uma vizinha. Longe de ser um caso isolado, a história de L. é um dos episódios recentes de mulheres que foram denunciadas e presas por provocar abortamento, e em casos extremos, levadas à polícia pelos próprios médicos. Com todo cuidado que a situação exige, a advogada Miriam Ventura, da organização não-governamental Advocaci, fala da sua maior preocupação: a de que as mulheres percam a confiança no sistema de saúde e, com medo de serem punidas, deixem de procurar assistência médica. A mulher que provoca aborto está sujeita a até três anos de prisão. Mas se ela ficar em casa, com medo do processo judicial, pode pagar com a própria vida.’ (Carla Rodrigues, 23/9/03, NoMinimo http://nominimo.ibest.com.br/servlets/
newstorm.notitia.apresentacao.ServletDeSecaoParaImpressao?
codigoDaSecao=26&codigoDaNoticia=7591&dataDoJornal=atual)

Polícia estoura suposta clínica para abortos. A suspeita de existência de uma clínica clandestina de aborto, em Maceió, levou a delegada de plantão do CIAPC 2, Paula Fracinetti, a determinar a apreensão de uma série de equipamentos e instrumentos médicos encontrados na casa da enfermeira aposentada Maria Tereza dos Santos, 66 (…) Na delegacia, a enfermeira manteve sua versão (…) O advogado da enfermeira, Gustavo Eugênio, afirmou que sua cliente era inocente da acusação. ‘Ela é enfermeira há mais de 20 anos e toda a vizinhança sabe que nunca houve isso aqui’.’ (Fábia Assumpção, Gazeta de Alagoas (21/5/04); 25/5/04 http://gazetaweb.globo.com/gazeta/Frame.php?f=Index.php)

Clínica clandestina em São Paulo realizava 15 abortos por dia, diz polícia. A Polícia Civil descobriu uma clínica clandestina de aborto na Vila Mariana, zona sul de São Paulo. (…) Foram encontrados fetos no local e duas pessoas foram presas: o médico Waldir Pinto e o anestesista Ubiragi Leal. A polícia acredita que até 15 abortos por dia podem ter sido praticados na clínica (…) No momento da prisão, uma mulher de 18 anos estava sendo operada. Ela pagou R$ 800 pelo aborto (…)’ (FSP. 21/5/04)

Médico é preso por aborto em clínica de SP. Estimativas de órgãos internacionais apontam que, por ano, cerca de 1 milhão de abortos são feitos no Brasil. De acordo com o Ministério da Saúde, são 240 mil internações realizadas pelo SUS (Sistema Único de Saúde) em conseqüência de abortos malfeitos no país.

Estima-se ainda que 6.000 mulheres morram em decorrência do aborto na América Latina (… ) A jovem A. pagou R$ 800 pelo aborto, mas o preço pode chegar a R$ 3.000. ‘Em todas as cidades de porte médio há pelo menos uma clínica como essa’, diz Dulce Xavier, integrante da ONG Católicas Pelo Direito de Decidir.

Segundo grupos feministas, só mulheres pobres sofrem as conseqüências do aborto clandestino, já que, quem tem dinheiro, paga de R$ 2.000 a R$ 3.000 para ser atendida em clínicas especializadas. ‘Agulhas de crochê, chás, pancadas na barriga e medicamentos perigosos são alguns dos métodos que restam às mulheres pobres’, diz Dulce Xavier.

Pela legislação brasileira, o aborto só é permitido em casos de violência sexual e risco para a mãe. Muitos juízes estão autorizando abortos quando, na gravidez, os médicos descobrem que o bebê não conseguirá sobreviver.

O Código de Ética Médica do Conselho Federal de Medicina tem dois artigos que condenam a prática do aborto. Um deles diz que o médico não pode descumprir o Código Penal, outro considera o abortamento uma quebra da credibilidade para a medicina, cuja missão é salvar vidas.

Segundo um dos diretores do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, Krikor Boyaciyan, 21 denúncias contra médicos que fizeram aborto foram recebidas nos últimos cinco anos: dez casos foram arquivados, quatro estão em andamento e em sete foram abertos processos disciplinares. Nesses casos, a pena vai de advertência à cassação do exercício profissional. Mas, nesse período, ninguém foi cassado (…) A.G.A., que disse à polícia ter feito o aborto por não ter como criar o filho, pagou fiança de R$ 280 e foi liberada. A reportagem não conseguiu localizar os advogados dos médicos presos.’ (FSP, 22/5/04.

Ministério diz que mulher não deve ser punida. A médica Maria José de Oliveira Araújo, que dirige o Programa Saúde da Mulher do Ministério da Saúde, disse que ‘nenhuma mulher deve ser punida porque fez um aborto’.

‘Elas não abortam porque querem, mas por falta de informações ou falta de acesso aos métodos contraceptivos. Não cabe ao ministério legislar sobre essa questão, mas cabe a nós exigir que a mulher seja tratada com dignidade e de forma humanitária’, afirma. (…) A ONG feminista Patrícia Galvão diz que a maioria das mulheres não conversa com o ginecologista sobre o aborto. ‘Às mulheres que nos procuram em situação de gravidez indesejada, recomendamos conversar com um profissional de saúde de sua confiança’, diz Jacira Melo, que integra a ONG. ‘E que, com essas informações, decida o que fazer’.

Para tentar diminuir o grande número de abortos, o Ministério da Saúde vai começar a distribuir contraceptivos de emergência para 5.160 municípios. Até agora, eram só 400. ‘O contraceptivo de emergência não tem efeito abortivo; são comprimidos de hormônio que alteram o meio, agem sobre os espermatozóides e impedem a ovulação ou fecundação’, diz Maria Araújo, do Programa Saúde da Mulher. Segundo ela, o contraceptivo de emergência não deve ser usado como método de contracepção, mas em caso de falhas ou relações não-seguras.’ (Aureliano Biancarelli, FSP, 22/5/04)

Infecção. Manicure morre 16 dias após aborto. Uma manicure que estava em coma profundo desde o último dia 12 no HGF, após se submeter a um aborto no dia 7 de julho, morreu na tarde de ontem. A residência que funcionava como clínica de aborto, no Mondubim foi fechada por policiais do 19º DP.

A manicure F.E.G.S, de 23 anos, morreu às 15h30min de ontem no Hospital Geral de Fortaleza de infecção generalizada, depois de passar 11 dias internada em coma no hospital. A jovem havia se submetido a um aborto em uma residência, no Mondubim, que funcionava como uma clínica clandestina. A mãe de F.E.G.S. denunciou o caso, e na manhã de ontem a auxiliar de enfermagem e proprietária da casa, Maria Amora da Silva, 69, foi presa em flagrante e a clínica de aborto fechada.

De acordo com a mãe da manicure, F.G.S., 56, sua filha solteira estava grávida de cinco meses e havia decidido pelo aborto. No dia 7 de julho passado, ela procurou Maria Amora em sua casa, no Mondubim. A auxiliar de enfermagem teria colocado uma sonda no útero de F.E.G.S. para retirar o líquido amniótico e depois a manicure voltou para casa. Pelo serviço, a jovem pagou R$ 300,00. Dois dias depois, sentido fortes dores, a manicure retornou à clínica para retirada do feto. O ato cirúrgico teve complicações e F.E.G.S. permaneceu internada por quatro dias até ser levada para o HGF.’ (O Povo, Fortaleza, Ceará. 24/7/04)

Um olhar crítico no entorno e nas entrelinhas das notícias

Embora o Brasil seja um dos países do mundo com as leis mais restritivas sobre o aborto, é signatário de Instrumentos Internacionais de Proteção aos Direitos das Mulheres, com destaque para a atenção humanizada ao abortamento inseguro e a revisão da legislação punitiva sobre o aborto (Cairo, 1994, e Beijing, 1995), que devem ser cumpridos. No exercício de sua função social de mídia de um Estado laico, a imprensa brasileira deveria estar vigilante. Isto é, tomar tento e ter tenência quanto aos aspectos pertinentes à cidadania feminina que estão em dependência direta da ação do Estado para que tenham o seu exercício garantido. É o caso do aborto nas condições da ilegalidade, pois ela viola direitos das mulheres!

O aborto, cirúrgico ou farmacológico, é um procedimento seguro, de maneira que a morte por aborto nos dias de hoje deveria estar circunscrita a uma fatalidade. Porém, a omissão e o descaso dos governos permitem que as mulheres adoeçam, sejam presas e até ‘morram por aborto’. O absurdo é que mortes decorrentes de abortamento são praticamente 100% previníveis e evitáveis à luz da medicina moderna, como disse Karel van Kesteren, representante do Reino dos Países Baixos (Holanda), em 12 de março de 2004, na Reunião da Mesa Diretora Ampliada do Comitê Especial de População e Desenvolvimento, em Santiago do Chile:

‘Nos cinco minutos permitidos aqui para uma intervenção, dez mulheres a mais faleceram por causas relacionadas com a gravidez e cem pessoas foram infectadas pelo HIV. Não podemos permitir que mulheres, homens e adolescentes sofram tanto quando existe capacidade, tecnologia e experiência para salvar suas vidas. A saúde sexual e a saúde reprodutiva são direitos humanos e constituem ingredientes indispensáveis para se alcançar as Metas de Desenvolvimento do Milênio.’

Dados da Organização Mundial da Saúde, de 1998, informam que ocorrem anualmente cerca de 210 milhões de gravidez no mundo e 22% delas, isto é, 46 milhões, terminam em abortamento induzido; cerca de metade dos abortamentos realizados no mundo são inseguros, em torno de 20 milhões/ano. A grande maioria das mulheres está exposta a um abortamento até aos 46 anos; das mortes decorrentes de gravidez, um percentual de 13% têm como causa o abortamento inseguro: cerca de 67 mil mortes/ano.

Estima-se que no Brasil sejam realizados cerca de 1 milhão de abortos/ano. Dados do Dossiê Adolescentes Saúde Sexual e Saúde Reprodutiva (RFS, 2004), informam que, em 1999, garotas de 10 a 19 anos foram responsáveis por 51.380 internações por aborto incompleto, no SUS. As jovens de 20 a 24 anos foram responsáveis por 71.439 internações. Entre 2001 e 2002, cerca de 29% de adolescentes que engravidaram ou engravidaram suas parceiras não tiveram o filho [Dossiê Adolescentes Saúde Sexual e Saúde Reprodutiva, Rede Feminista de Saúde, 2004 (www.redesaude.org.br)]. A Agência de Notícia dos Direitos as Infância/ANDI divulgou que no Brasil no ano 2000 cerca de 140 meninas/dia interromperam a gravidez; 6 adolescentes/hora entraram em processo de abortamento; uma jovem se tornou mãe a cada 17 minutos; e que aborto ou complicações no parto naquela época eram a 5a causa de morte em adolescentes, constituindo 6% do total de óbitos entre jovens.

Causa preocupação que os jornais em geral passem ao largo de contextualizar as notícias sobre aborto no panorama mundial e/ou local dos direitos reprodutivos, postura que não contribui para a ampliação do debate sobre o aborto como um direito reprodutivo da mulher, além de evidenciar um descompromisso da mídia para com a laicidade do Estado brasileiro e o monitoramento da atuação do Estado no campo dos direitos reprodutivos referendados no ciclo de Conferências Mundiais das Nações Unidas da década de 1990.

Do aborto livre à criminalização

Até 1830 não havia leis sobre o aborto no Brasil. O Código Criminal do Império, de 1830, alocou o aborto no capítulo ‘Contra a segurança das pessoas e da vida’, que punia o ‘aborteiro’ com um a cinco anos de prisão, pena que poderia ser duplicada se o aborto tivesse sido realizado sem o consentimento da mulher, mas não punia o auto-aborto e nem a mulher era punida quando o aborto era praticado por terceiros.

Em 1890, no Código Penal da República, o aborto praticado por terceiros passou a ser penalizado se, com ou sem aprovação da gestante, dele resultasse a morte desta. Nos casos de auto-aborto, visando ‘ocultar desonra própria’, concedia-se redução da pena. Laís Amaral Rezende de Andrade, no artigo ‘Aborto, o delito e a pena’ afirma que a noção de aborto legal ou necessário foi explicitada apenas para salvar a vida da gestante [Andrade, Laís Amaral Rezende. Aborto, o delito e a pena (www1.jus.com.Br/doutrina/texto.asp?id=93)].

A partir de 1940, o Código Penal Brasileiro inscreveu o aborto nos ‘crimes contra a vida’ e prescrevia pena de um a quatro anos para quem o realizasse em outra pessoa; e de um a três anos para o para o auto-aborto ou por consentir que outro o provocasse; manteve o aborto como crime que só não é punido se a gravidez é resultante de estupro e em caso de risco de vida da gestante. A inclusão da permissão de aborto em caso de gravidez resultante de estupro se inspira em uma tendência ética internacional do pós-Primeira Guerra Mundial (1914-1919), quando o estupro adquiriu dimensão pública de arma de guerra: os invasores e/ou vencedores selavam a vitória estuprando as mulheres dos vencidos. Eis a lei ainda em vigor. [‘Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento: Art. 124. Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lhe provoque. Pena: detenção de 1 a 3 anos; Aborto provocado por terceiros: Art. 125. Provocar aborto sem o consentimento da gestante. Pena: reclusão de 3 a 10 anos; Art. 126. Provocar o aborto com o consentimento da gestante. Pena: reclusão de 1 a 4 anos; Único. Aplica-se a pena do artigo anterior se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência. Forma qualificada: Art. 127. As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em conseqüência do aborto, ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas se, por qualquer destas causas, lhe sobrevem a morte’ (Pesquisa Mundo da Juventude www.jovenspesquisadores.hpg.ig.com.br/aborto.htm e www.jovenspesquisadores.hpg.ig.com.br/index.htme]

De 1940 até 2004, muitas foram as tentativas visando a ampliação dos permissivos legais para o aborto, assim como para sua descriminalização. Há mais de uma década, grávidas de feto portador de malformação sem viabilidade de vida extra-uterina, por exemplo, portador de anencefalia (anomalia congênita que consiste em ausência da calota craniana e cérebro rudimentar), têm recebido a solidariedade de juristas, dispersos por todo o país, e, mais recentemente, do Ministério Público, autorizando a interrupção da gestação de feto com anencefalia, em qualquer estágio dela. Todavia, as autorizações judiciais para a realização do procedimento dependiam do juízo de valor de magistrados, bem como da disposição pessoal de enfrentamento do status quo por parte de integrantes do Ministério Público.

A peregrinação das mulheres em busca da interrupção legal da gravidez, especificamente em casos de anencefalia, parece ter se encerrado com a liminar, concedida pelo ministro Marco Aurélio de Mello, do Supremo Tribunal Federal, em 30 de junho de 2004, que constitui o terceiro permissivo legal para interromper a gestação, ainda que restrito à anencefalia. Mas Torres (1999), sob o intertítulo ‘Crime e culpabilidade’ afirma:

‘Para que o abortamento seja considerado criminoso, não basta afastar a tipicidade e antijuricidade da conduta. É imprescindível, também, que a conduta do médicos seja censurável ou reprovável. E para a reprovação ou censura de uma conduta típica e antijurídica, é indispensável que, nas circunstâncias de sua prática, seja possível exigir-se do agente uma conduta diferente. Portanto, se não é possível exigir conduta diversa do médico ou da gestante, o abortamento não pode ser considerado criminoso, ainda que seja típico e antijurídico’ [Torres, José Henrique Rodrigues. Aspectos legais do abortamento (www.redesaude.org.br/jornal/html/body_jr18-aspleg.html)].

A história penal do aborto no Brasil foi, até 2004, comprovadamente, rumo à ampliação da criminalização. Recapitulando, até 1830 não havia legislação sobre o aborto no Brasil, quando então o Código Penal do Império o enquadrava como um crime contra a segurança e a vida, exceto quando praticado pela própria mulher. O que significa que até 1830 o aborto era livre, pois, conforme Torres (1999), ‘para uma conduta ser considerada crime é preciso, antes de tudo, que seja um fato típico, ou seja, esteja descrita na lei penal como criminosa (…) Todavia, para saber se uma conduta é ou não criminosa, não basta verificar se ela é ou não típica (…) para que um fato típico (descrito em lei) possa ser considerado criminoso, é preciso que além de típico, contrarie também o direito (…) com relação ao abortamento, o Código Penal é mais específico e descreve duas situações especiais que afastam a antijuricidade da conduta típica: no ‘abortamento necessário’ (praticado como única forma de salvar a vida da gestante) e no ‘abortamento sentimental’ (quando a gravidez resulta de estupro) não há crime’ [Torres, José Henrique Rodrigues. Aspectos legais do abortamento (www.redesaude.org.br/jornal/html/body_jr18-aspleg.html)].

Sessenta anos depois de o aborto ter sido tipificado como crime, em 1890, o Código Penal da República, embora mantivesse o aborto como crime, na prática, só o penalizava quando resultava em morte da gestante. Meio século depois, em 1940, o Código Penal brasileiro, sob a inspiração das leis italianas, adotou a legislação que aqui vigora há 64 anos, abolindo o atenuante em caso de auto-aborto e definindo apenas dois permissivos legais: gravidez resultante de estupro e em risco de vida da gestante. Na verdade, a rigor, a legislação sobre aborto no Brasil não evoluíram no sentido da ampliação de permissivos legais, ao contrário. A liminar do ministro Marco Aurélio de Melo representa a primeira vez que a legislação sobre aborto no Brasil será alterada no sentido de abolir uma das restrições, criando mais uma permissão legal.

O debate público sobre interrupção de gestação de feto com anencefalia

Analisando o Boletim Saúde Reprodutiva na Imprensa (BSRI), da Rede Feminista de Saúde, monitoramento de mídia sobre saúde da mulher de periodicidade quinzenal, no período de 16 de maio a 15 de agosto de 2004 [www.redesaude.org.br/html/boletim.html], vemos que a seção ‘Em destaque’ contém os debates mais relevantes do período monitorado: dos seis boletins do período, cinco são sobre aborto, dos quais três são sobre a liminar do STF, o que significa que houve um grande debate, uma conjugação de aspectos qualitativos e quantitativos.

O que demonstra que, bem antes da concessão da liminar do STF, em 30 de junho de 2004, havia um crescimento importante da temática aborto na mídia, o que é demonstrado pelo ‘Em destaque’ dos BSRI de 16 a 31 de maio de 2004 e 1º a 30 de junho de 2004. E tal presença se deve, sobretudo, à coragem da Área Técnica de Saúde da Mulher do Ministério da Saúde e do feminismo na condenação das prisões de mulheres que abortaram e de profissionais que realizam abortos e ao esforço do feminismo para monitorar e visibilizar o debate internacional, sobretudo dos EUA, desde a Marcha pela vida das mulheres (25/4/04) e contra Bush.

O tema do aborto também reavivou visibilidade com a chegada ao poder, em 2004, do Partido Socialista na Espanha, que anunciou a proposta de ‘direito livre ao aborto’ até três meses de gravidez, conforme declarou, em 25 de março, a secretária da Igualdade do PSOE, Micaela Navarro, que a atual lei espanhola é obsoleta e não responde à realidade, portanto há que legislar com os pés no chão, pois as três situações que permitem o aborto não amparam muitos dos casos em que se encontram adolescentes e jovens. Uma boa educação sexual evitaria muitas gravidezes não desejadas e, com isso, muitos abortos. Muitos jovens não têm informação nem de como prevenir uma gravidez e nem como usar anticonceptivos, com informação segura agiriam com maior responsabilidade e o aborto seria sempre a última opção.

Não podemos subestimar também o grande impulso dado ao debate regional sobre o aborto decorrente da votação da Lei de Defesa da Saúde Reprodutiva, no Uruguai (13/4 e 4/5/04), sob a máxima: ‘Educação sexual para prevenir, anticonceptivos para não abortar e aborto legal para não morrer’, embora o Senado tenha arquivado, na calada da noite, a proposta por 17 votos a 13.

A Marcha pela vida das mulheres ocorreu em Washington, EUA, em 25 de abril de 2004. Presentes, 1 milhão de pessoas, 1.400 organizações feministas de cerca de 60 países. A Rede Feminista de Saúde estava lá, com uma faixa, feita por Miroca (enfermeira mineira, radicada em Nova Iorque), que dizia: Feminist Network for Health – Brazil. Solidarity with our American sisters!

‘Organizada pelo feminismo norte-americano, a Marcha pela Vida das Mulheres teve como pólo aglutinador inicial, conforme o Instituto Nacional de Latinas para a Saúde Reprodutiva, a situação das latinas residentes nos EUA um quarto da população que é cruel, pois estão completamente desassistidas: uma em cada quatro latinas não recebe cuidado pré-natal no primeiro trimestre da gravidez; exibem o dobro de casos de gravidez indesejada do que as brancas; com incidência de HIV/Aids sete vezes maior que as brancas; e cerca de 42% das latinas não podem pagar seguro saúde. A penúria crescente das latinas em território estadunidense decorre da pobreza, tratamento discriminatório e segregacionista, barreiras de linguagem e acesso não universal à assistência à saúde. Uma outra motivação para a Marcha, é a possibilidade de desencadear uma poderosa mobilização de âmbito nacional contra os retrocessos da administração de George W. Bush e a maldição que tem sido para mulheres de todo o mundo um Bush na Casa Branca. Tal pai, tal filho! Ambos reacionários.’ [Oliveira, Fátima. ‘Mulheres marcham pela vida e contra Bush’. O Tempo, Belo Horizonte, 28/4/04]

Mas, voltando para o que publica a grande imprensa brasileira sobre o aborto, prestemos atenção aos ‘Em destaque’ do BSRI:

1) Nenhuma mulher deve ser punida porque fez um aborto. Edição 16 a 31 de maio/2004;

2) Nos EUA e no Brasil magistrados entram em cena no debate sobre aborto. Edição 1º a 30 de junho/2004;

3) STF em defesa da integridade física, psicológica e dos direitos reprodutivos das mulheres. Edição 1º a 15 de julho/2004;

4) Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres aprova a legalização do aborto. Edição 16 a 31 de julho/2004; e

5) Grande debate público sobre antecipação terapêutica do parto de feto com anencefalia. Edição 1º a 15 de agosto/2004.

Fica evidenciado também que o debate sobre a interrupção da gestação por anencefalia tomou conta do país e trouxe, inegavelmente, um novo gás, com novos argumentos, ao debate público sobre aborto em âmbito nacional, conforme a introdução da Edição 1º a 15 de julho/2004 do BSRI:

‘A liminar do STF autorizando a interrupção de gravidez em casos de fetos anencefálos reabriu o debate sobre o direito ao aborto no Brasil. A idéia central da proposição de Antecipação Terapêutica do Parto é resguardar a integridade física, psicológica, a dignidade e o direito de escolha das mulheres com uma gestação de feto anencéfalo.

Apesar das pressões de algumas igrejas e grupos anti-aborto, e do espaço considerável aberto a instituições religiosas e antiaborcionistas na mídia, a sociedade reagiu manifestando-se solidária e favorável à decisão do ministro Marco Aurélio de Mello. Estas manifestações podem ser identificadas no grande número de cartas de leitor@s aos jornais em apoio ao direito das mulheres ao aborto. Feministas e representantes de organizações de mulheres puderam expor suas posições. Os jornais, em editoriais também se posicionaram reconhecendo a coerência dos argumentos que embasaram a liminar, que resume-se na defesa do bem-estar e da qualidade de vida das mulheres (…) O despacho também suspende todos os processos e possíveis condenações em curso contra gestantes, médicos e profissionais da saúde que anteciparam tais partos (…) Com a liminar, nem a gestante nem o médico precisam recorrer à Justiça para interromper a gravidez. Basta apresentar uma cópia da decisão do Supremo Tribunal Federal, do laudo médico e o desejo da gestante de antecipar o parto (…)

A ação, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), com o apoio da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), teve consultoria técnica da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, organização não-governamental filiada à Rede Feminista de Saúde (…) O advogado Luiz Roberto Barroso da CNTS, autor da ação junto ao STF, alegou que a interrupção desse tipo de gestação não caracteriza aborto, mas uma antecipação terapêutica do parto. Segundo ele, o STF decidirá no mérito da ação um pedido da entidade para que a antecipação de partos de anencefálos não seja mais equiparada a aborto. ´Não pode ser considerado aborto porque o feto não irá sobreviver´, declarou o advogado’ [www.redesaude.org.br/html/boletim.html].

Merece destaque que a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no caso de anencefalia adotou o conceito de Antecipação Terapêutica do Parto, e não de interrupção de gestação ou de aborto. A linha argumentativa utilizada, e que logrou a aprovação pelo ministro Marco Aurélio de Mello, conforme entrevista da antropóloga Debora Diniz à revista Época, é que a antecipação terapêutica do parto não é um eufemismo para o aborto, mas ‘é uma definição que consegue escapar da guerrilha do aborto. Consegue fazer com que as pessoas escutem o que temos a dizer. O grande desafio do aborto é tirar o debate do dilema moral em que só existe a possibilidade do ‘sim’ e do ‘não’ e passá-lo para o campo da moral, onde as possibilidades são muitas. Pode ser sim aqui, não ali, talvez’. [www.redesaude.org.br/html/boletim.html]

Jornadas Brasileiras pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro

As Jornadas Brasileiras pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro corporificam uma articulação política pelo acesso ao aborto legal e seguro, segundo a decisão da mulher, criada em Brasília, nos dias 5 e 6/2/2004, em reunião organizada e coordenada pela Rede Feminista de Saúde, para: estimular e organizar mobilização nacional pelo direito ao aborto legal e seguro, através de debate público; apoiar projetos de lei que ampliam os permissivos legais para o aborto; contrapor-se aos projetos de lei contrários ao aborto; e ampliar o leque de aliadas para a descriminalização/legalização do aborto.

A criação das Jornadas Brasileiras pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro, decorre do esforço do feminismo brasileiro de concretizar as recomendações contidas na Declaração do Glória sobre Aborto (8º Encontro Internacional Mulher e Saúde, Rio de Janeiro, 16 a 20 de março de 1997, presentes 566 mulheres de 58 países.), que diz:

‘O aborto ilegal e inseguro continua a ser uma das principais causas de dano para a saúde física e mental das mulheres. Os movimentos de mulheres devem considerar o aborto não apenas como um problema de saúde ou uma questão legal e sim como questão de gênero e de justiça social.

** Lutar pela legalização/descriminalização do aborto e pelo acesso universal aos serviços de aborto de boa qualidade;

** Trocar experiência com países que passaram pelo processo de legalização do aborto;

** Compartilhar informações sobre as estratégias das organizações anti-aborto no intuito de garantir o direito das mulheres;

** Promover a capacitação de parteiras para a realização de um aborto seguro; e

** Incentivar depoimentos públicos sobre o tema.’

Conforme a apresentação do Plano estratégico para a ação feminista pela legalização do aborto no Brasil:

‘Desde sua criação, em 1991, a Rede Feminista de Saúde (RFS), tendo como alicerce a ação política cotidiana de suas filiadas, institucionais e individuais, assim como o conjunto do feminismo brasileiro, tem investido grandes esforços no campo dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos, visando ampliar e facilitar a disseminação de informações entre suas filiadas (organizações e pessoas) e a interlocução delas com diversos setores da sociedade envolvidos com a luta pelo direito de decidir. No período de 2001 a fevereiro de 2003, a RFS coordenou, exitosamente, a Campanha 28 de Setembro pela Descriminalização do Aborto na América Latina e no Caribe.

Nos últimos 10 anos o feminismo no Brasil tem se dedicado em especial a acompanhar a tramitação dos PLs (Projetos de Lei) sobre aborto que tramitam no Congresso Nacional e integrado a luta pela implantação dos serviços previstos em lei, além do que em 2003, a Secretaria-Executiva da Rede Feminista de Saúde e o Ponto Focal no Brasil da Campanha 28 de Setembro [Dia pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe, em 21 países] envidaram esforços no sentido de agregar outros setores feministas às comemorações do 28 de Setembro e obteve expressivos êxitos, tanto na articulação política quanto nas atividades desenvolvidas por ocasião do 28 de Setembro em várias cidades brasileiras, com o aporte de expressivo visual de comunicação (folhetos, postais, painéis luminosos e outdours), além de um grande número de debates, palestras e ações de advocacy junto ao Congresso Nacional, à Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e à Área Técnica de Saúde da Mulher do Ministério da Saúde.

Em novembro de 2003, apareceu de forma expressiva no Brasil um contra-ataque, de expressão fundamentalista, da Igreja Católica Apostólica Romana. A Constituição brasileira não contém a proteção à vida desde a concepção. Os ‘pró-life’, desde a Constituinte de 1988, têm se esforçado para alterar a lei. As últimas tentativas têm sido proposições de leis criando o Dia do Nascituro, além de PLs que tramitam no Congresso Nacional, popularmente conhecidos como da grife ‘Estuprobrás’ (leis que carreiam supostos benefícios para mulheres dispostas a terem filhos de gravidezes resultantes de estupros em troca de algum benefício do Estado, de cesta básica à garantia de estudos universitários completos).

Na Comissão de Seguridade Social e Família, na Câmara dos Deputados, onde tramitam vários PLs sobre aborto, em novembro de 2003 foram realizadas várias sessões como parte de um esforço ‘pró-life’ para visibilizar as teses anti-aborto e aprovar o Dia do Nascituro.’

Mais olhares sobre a realidade do aborto no Brasil

São ilustrativos os relatos abaixo, divulgados, em 6 de agosto de 2004, como anexos no documento ‘Para início de conversa 2’, publicação interna das Jornadas Brasileiras pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro:

O caso Verônica (nome fictício). Em dezembro de 2002, com seis meses de gravidez e em trabalho de parto, Verônica deu entrada num importante hospital estadual da Baixada Fluminense, Região Metropolitana da cidade do Rio de Janeiro. O exame constatou a presença de dois comprimidos de cytotec em sua vagina. A partir daí esta jovem de 27 anos passou por verdadeiro martírio. A obstetra responsável pelo plantão colocou Verônica numa enfermaria de parturientes e ordenou que ficasse imóvel na cama, proibida de se levantar. Quatro horas depois Verônica foi ao banheiro e deu à luz no vaso sanitário. Retornou sangrando para o leito e suas companheiras de quarto deram o alarme. O alvoroço veio ao se constatar que o feto estava vivo. E todos os esforços foram feitos para salvá-lo. O nascituro sobreviveu por cerca de 11 horas.

Além de tentar salvar o nascituro, outra providência imediata da médica de plantão foi trocar de roupa e ir à delegacia mais próxima, denunciar Verônica. A polícia veio e a algemou na cama. Pelos depoimentos não fica claro quanto tempo se passou até que se preocupassem em cuidar da saúde de Verônica. Ela afirma que foi ‘muito tempo’. Do hospital Verônica foi direto para a cadeia, onde ficou por cerca de três meses. Hoje responde ao processo em liberdade.

Cláudia Bonan, médica e coordenadora Regional Rio de Janeiro da Rede Feminista de Saúde, considera que o caso de Verônica demonstra exemplarmente como as mulheres são punidas por forças fundamentalistas:

Verônica foi denunciada publicamente, submetida a tratamento constrangedor e à tortura psicológica dentro de uma instituição pública de saúde. Foi acusada em altos brados pela médica, que se dizia cristã, de criminosa e infanticida. Esta jovem, desempregada, é imigrante e negra. Quando se esvaia em sangue, a providência da médica foi buscar o poder policial. O delegado invadiu a enfermaria numa nítida confusão entre poder policial a poder médico. E Verônica foi algemada. Nesse estado lhe foi arrancada uma confissão de infanticídio. A cena de Verônica algemada foi motivo de visitação por parte de funcionários(as), promovida pelo segurança do hospital que bradava que ali estava uma pecadora, que tinha matado uma criança. Um verdadeiro circo de horrores’.

O drama de Verônica se agravou com a denúncia formulada pela promotora de Justiça, que por coincidência estava grávida, que classificou o ato de Verônica como ‘homicídio qualificado’. Isto porque, segundo o texto da denúncia, ‘Logo depois [de expulsar o feto Verônica] consciente e voluntariamente acionou a descarga do vaso sanitário no qual se encontrava o nascituro, ocasionando-lhe a morte’. A denúncia menciona ‘crime de homicídio cometido com emprego de meio cruel causando ao nascituro sofrimento físico, o qual se debatia em meio à água da descarga no interior do vaso sanitário’.

Hoje Verônica está sendo assistida por um dos melhores escritórios de advocacia da cidade e grupos feministas estão oferecendo suporte a esta mulher. Os depoimentos da médica, da pediatra e da técnica de enfermagem diretamente envolvidas no caso trazem incertezas com relação à afirmação de que Verônica teria acionado a descarga do vaso sanitário, fato que ela mesma nega.

A pediatra que cuidou do nascituro afirmou em juízo que ele teria morrido imediatamente, caso tivesse sido dada uma descarga efetiva. Ao contrário, apresentou apenas um hematoma na cabeça, provavelmente em decorrência da queda no nascimento. O nascituro morreu por conta da prematuridade: ‘Não possuía desenvolvimento físico suficiente a autorizar sua sobrevivência, pois o pulmão era imaturo para a respiração; não faleceu pelo afogamento e tampouco pelas condições do nascimento’, diz o documento oficial com os depoimentos das testemunhas.

A técnica de enfermagem que retirou o nascituro do vaso sanitário e o encaminhou para a pediatria, inquirida sobre a possibilidade de ter sido dada a descarga, respondeu: ‘Ouvi dizer que Verônica deu descarga. Mas foi um boato. Boatos a gente escuta muito. Eu não posso provar’.

Sônia Corrêa (coordenadora de pesquisa em Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos da Rede DAWN/Abia) comenta o radicalismo da médica e da promotora: ‘Acho que o judiciário tem uma longa tradição conservadora, mas não é homogêneo do ponto de vista de suas posições e interpretações da Lei. A médica que algemou Verônica é uma pessoa diretamente influenciada pelos setores mais fundamentalistas, forças sociais em crescimento que estão ganhando capilaridade na sociedade. Evidentemente essas forças influenciam mulheres e jovens das favelas, e influenciam também pessoas dos setores médicos e do judiciário. E estou convencida de que há uma estratégia bem urdida para centrar fogo contra a prática do aborto. E esta estratégia atinge, sobretudo as mulheres pobres’.

Miriam Ventura, advogada da ONG Advocaci, acrescenta: ‘Independente da conduta ter sido criminosa ou não, o direito à saúde prevalece sobre a segurança. Este direito Verônica não teve respeitado’.

Caso no Norte do país. Maio de 2003. ‘Acompanhei o caso de uma empregada doméstica, de 25 anos e com dois filhos. Esta mulher ficou grávida do patrão. Ele não quis reconhecer o filho e nem saber dela. Ela decidiu abortar. Pagou 100 reais (U$ 36) para fazer com uma pessoa que introduziu soda cáustica no útero dela. Acho que com sonda. Depois ela ficou muito ruim. Foi encaminhada para o hospital do estado e o médico disse: ‘Se demorasse mais meia hora a infecção era tanta que ela morreria’. Hoje ela se recuperou, mas nunca mais foi a mesma pessoa. Está menos alegre’. Depoimento de Maria José Rocha Melo, agente comunitária de saúde do Grupo Ato-Irê, São Luís do Maranhão.

Para as mulheres de classe média a realidade é obviamente outra. Julho de 2003. ‘Quando desconfiei que estava grávida falei com meu ginecologista. Ele fez um exame de toque em mim, e achou que realmente eu estava certa das minhas suspeitas. Me indicou fazer uma ultra-sonografia. Saí dali e fui fazer. Mas mesmo durante a consulta ele já me deu o telefone de um médico que fazia o que eles chamam de ‘pequena cirurgia’. Trata-se de uma clínica clandestina de aborto. Paguei R$ 700 em cash (U$ 250) e correu tudo bem. Me senti muito aliviada e bem atendida: recebi todas as informações para me cuidar’. A.T.F.B., 21 anos, estudante de cinema, Rio de Janeiro, RJ. (Trecho do texto ‘Misoprostol in Brazil – An ambivalent situation’, escrito por Ângela Freitas para IPAS. Rio de Janeiro, 2003).

Respostas do Estado brasileiro à ilegalidade do aborto

O Código Penal não pune o aborto em caso de gravidez resultante de estupro e para salvar vida da gestante (1940): ‘Só meio século depois foi instalado na cidade de São Paulo o 1o Serviço Público de Aborto Previsto em Lei, na administração da prefeita Luiza Erundina. Antes disso, apenas na Unicamp (Campinas, SP), sob a responsabilidade do dr. Aníbal Faúndes, as mulheres encontravam solidariedade para o aborto quando engravidavam pós-estupro. Há mais de uma década gestantes que não desejavam levar adiante uma gravidez na condição de ‘caixão ambulante’ de fetos anencéfalos recorriam a juízes e ao Ministério Público, que em geral autorizavam a interrupção. A liminar encerra tão injusta peregrinação (…) Todos os tratados, convenções e conferências do Sistema Nações Unidas não proíbem o aborto e instam os países membros a atenderem com dignidade os casos de abortamentos inseguros’ [Oliveira, Fátima. ‘Interrupção de gestação: um direito’. O Tempo, Belo Horizonte, 28/7/04].

1) Norma Técnica Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Meninas (1998), ministro da Saúde, José Serra, e coordenadora da Área Técnica de Saúde da Mulher, a médica e feminista Tânia Lago;

2) Gestação de Alto Risco: Manual Técnico (1999), ministro da Saúde, José Serra, coordenadora da Área Técnica de Saúde da Mulher, a médica e feminista Tânia Lago;

3) ‘Rever a legislação repressiva sobre o aborto: um compromisso do Brasil para com as mulheres’, documento da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, da Presidência da República, divulgado no dia 28 de setembro de 2003, por ocasião das atividades da Campanha 28 de Setembro, pela Descriminalização do Aborto na América Latina e no Caribe, no qual está escrito: ‘A legislação brasileira ainda não se adequou às recomendações do Plano de Ação da Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Beijing, em 1995, que considerou o aborto uma questão de saúde pública e apontou para a necessidade do abrandamento de leis repressoras (…) O governo brasileiro é signatário de documentos de Conferências das Nações Unidas que consideram o aborto um grave problema de saúde pública (Cairo, 94) e recomendam que os países revisem as leis que penalizam a prática do aborto inseguro (Beijing, 95). E reafirma neste 28 de setembro – Dia pela Descriminalização do Aborto na América Latina e no Caribe estes compromissos. Ministra Emilia Fernandes. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres Presidência da República.’

4) Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (2004), ministro da Saúde, Humberto Costa, e coordenadora da Área Técnica de Saúde da Mulher, a médica e feminista Maria José de Oliveira Araújo;

5) Seminário Internacional Políticas Públicas para as Mulheres na Área de Saúde: experiências Latino-americanas e do Caribe (25 a 27 de maio), idealizado e realizado pela Área Técnica de Saúde da Mulher do Ministério da Saúde, que resultou na criação do Fórum de Políticas Públicas para a Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe, espaço de intercâmbio de informações, experiências, articulação política e elaboração de mecanismos de cooperação entre os países membros, integrado por órgãos nacionais governamentais de mulheres e de saúde e organizações feministas nacionais e regionais (2004), ministro da Saúde, Humberto Costa, e coordenadora da Área Técnica de Saúde da Mulher, a médica e feminista Maria José de Oliveira Araújo;

6) Pacto Nacional pela Redução da Morte Materna e Neonatal (2004), ministro da Saúde: Humberto Costa; e coordenadora da Área Técnica de Saúde da Mulher: a médica e feminista Maria José de Oliveira Araújo; e

7) Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento (2004), ministro da Saúde: Humberto Costa, e coordenadora da Área Técnica de Saúde da Mulher, a médica e feminista Maria José de Oliveira Araújo.

Ao mesmo tempo em que o governo responde às pressões do movimento feminista, ainda que tímida e lentamente, no tópico aborto (prevenção e atenção ao abortamento inseguro) das ‘Recomendações do Cairo’) o ‘núcleo duro’ do governo silencia, e parece sucumbir diante das pressões diretas do Vaticano sob o governo do presidente Lula que, como sabemos, é um cristão/católico romano vulnerável. Em contraposição, e rompendo a ordem do governo de silenciar sobre o aborto, e entendendo que fazem parte de um ‘governo de coalizão nacional’, setores, notadamente Ministério da Saúde e Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, fazem a disputa ideológica no interior do governo.

Ao mesmo tempo, as forças conservadoras se movimentam também no Congresso Nacional, conforme quadro abaixo sobre Projetos de Lei sobre aborto apresentados em 2003, dos quais três mantêm o caráter restritivo e criminalizador (PL 809/03, 849/03 e 1.459/03), com aumento da pena (PL 1.459/03) e a instituição da legalidade da delação (PL 849/03). Considerando as antigas e novas proposições, o PL 1.135/1991 e o PL 21/2003 suprimem, no Código Penal, o artigo que criminaliza o aborto, portanto contam com o apoio do feminismo.

Projetos de Lei sobre aborto apresentados em 2003

Proposição/Ementa

Autoria

PL 21/2003. Suprime o Art. 128 do Código Penal que caracteriza como crime o aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento.

Deputado Roberto Gouveia (PT-SP)

PL 809/2003. Dispõe sobre a assistência à mãe e ao filho gerado em decorrência de estupro.

Deputado Elimar Máximo Damasceno (Prona-SP)

PL 849/2003. Autoriza o Poder Executivo a criar central de atendimento telefônico destinada a atender denúncias de abortos clandestinos.

Deputado Elimar Máximo Damasceno (Prona-SP)

PL 1.091/2003. Dispõe sobre a implantação em hospitais públicos de programa de orientação sobre os efeitos e métodos utilizados no aborto, quando autorizado legalmente.

Deputado Durval Orlato (PT-SP). Apensado ao PL 1.135/91

PL 1.459/03. Acrescenta ao artigo 126 do Código Penal ampliação da pena para aborto provocado em razão de anomalia fetal.

Deputado Severino Cavalcanti (PP-PE)

Fonte: Jornal Fêmea, nº 126 (julho, 2003)

Reafirmo que o Brasil moralmente não pode seguir cultuando uma cultura de crueldade para com as mulheres que precisam abortar que, à falta da legalidade, recorrem à práticas inseguras e chegando às maternidades são olhadas como criminosas e punidas com curetagens sem anestesia e uma queixa na polícia e até prisão. É dever do Estado brasileiro apoiar as mulheres em suas decisões reprodutivas e cabe às ´entidades de classe´ da categoria médica desenvolver esforços para ampliar a consciência e o respeito pelos direitos das mulheres e exigir conduta ética e deferência à alteridade na atenção. Em respeito à democracia participativa, o governo Lula deve acolher a diretriz aprovada na Conferência Nacional de Políticas para Mulheres: descriminalizar e legalizar o aborto’ [Oliveira, Fátima. ‘Interrupção de gestação: um direito’. O Tempo, Belo Horizonte, 28/7/04].

No ambiente de debate das Jornadas Brasileiras pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro [composição: 28 organizações feministas, de diferentes partes do país, e 11 articulações políticas em formato rede ou organização de âmbito nacional], considerando os casos de mulheres que morreram, foram presas ou respondem a processos por terem abortado, foi constatada a necessidade de um apoio mais real e ostensivo às mulheres e famílias vítimas do aborto clandestino e inseguro. Nos indagávamos como apoiar, de forma sistemática, mães, famílias e amigos(as) de tais mulheres e as sobreviventes do aborto clandestino e inseguro. Compreendeu-se que uma saída é construir caminhos que possibilitem: resgatar a dignidade e a memória das mulheres que morreram exercendo o direito de decidir e retirar essas mortes da invisibilidade; apoiar moral e juridicamente suas famílias e contribuir para retirar o ‘manto de vergonha’ que recobre estes episódios, ajudando na conscientização de que a vergonha consiste no Estado brasileiro permitir que suas cidadãs morram quando há meios médicos de evitar essas mortes; buscar meios de apoiar juridicamente mulheres sobreviventes do aborto inseguro que respondem processos; e lutar para responsabilizar o Estado brasileiro por essas mortes.

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Médica, secretária-executiva da Rede Feminista de Saúde, autora de Engenharia genética: o sétimo dia da criação (Moderna, 1995; 14a impressão, atualizada em 2004); Bioética: uma face da cidadania (Moderna, 1997; 8a impressão atualizada, 2004); Oficinas Mulher Negra e Saúde (Mazza, 1998); Transgênicos: o direito de saber e a liberdade de escolher (Mazza, 2000); ensaio O estado da arte da Reprodução Humana Assistida em 2002 e Clonagem e manipulação genética humana: mitos, realidade, perspectivas e delírios (CNDM/MJ, 2002); e Saúde da população Negra, Brasil 2001 (OMS-OPS, 2002)