Friday, 29 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

O Brasil está na banheira

As crises brasileiras são uma caixinha, não, um caixão de surpresas. A caixa de Pandora pode tornar-se um caixão. Mas, antes, uma vez aberta, vai espalhar pelo Brasil inteiro os males ali aprisionados?

Nós somos o país do futebol. Ou O País da Bola, título do livro da psicanalista e escritora Betty Milan. O futebol é nossa pandora. O Senado é uma pandora. A Câmara é outra, por ora controlada por assustados guardiães, deputados à beira de um ataque de nervos, apreensivos com temidos alastramentos do fogo que grassa na casa do vizinho.

Situemos o contexto de Pandora, a Eva da mitologia grega. Zeus ordenou a Hefesto, deus do fogo, que criasse Pandora do barro. Coube à deusa Atena dar-lhe o sopro da vida. Em seguida, a primeira mulher recebeu de outros deuses todos os encantos.

O étimo de seu nome tem a ver com pân, que em grego significa todo, inteiro, completo, e dôron, dom, presente.

Pandora tinha uma caixinha dentro da qual estavam aprisionados os seguintes males: a mentira, a loucura, a paixão, o trabalho, a doença, a velhice e a esperança.

Encantos perigosos

Mas a esperança é um mal? Provavelmente terá havido erro de tradução. A palavra grega que designa antecipação foi entendida pelos antigos romanos como spes, esperança, em latim, e isso resultou em confusão ou, no mínimo, em ambiguidade. O mal estaria em conhecer o futuro ou em apenas conhecer, pois a ciência é dada como maldição nas primeiras narrativas míticas.

Pesava, pois, sobre Pandora a mesma ameaça feita a Adão e Eva: se comessem o fruto da árvore da ciência do bem e do mal, nesse dia morreriam.

A mitologia bíblica aliviou a culpa de Eva. Ela já era a segunda mulher de Adão, que veio para substituir Lilith, a Lua Negra, que se aliara a Lúcifer na primeira e única revolta ocorrida no Paraíso. E Satanás, palavra de origem hebraica que tem o significado de caluniador, tentou Eva, dividindo, pois, a culpa com ela e com Adão, que não soube moderar a ambição da companheira.

Já Pandora, não. Ela tomou sozinha a decisão de abrir a caixa, rompendo a proibição divina, sem ser tentada por ninguém. Fez isso quando paquerava Epimeteu, irmão de Prometeu. Este, antes de ser acorrentado ao monte Cáucaso, onde o abutre Éton comeria seu fígado pela desobediência de ter roubado o fogo, avisou o irmão que os encantos de Pandora eram perigosos. Em vão.

O futebol na vida cotidiana

Quando Pandora percebeu o conteúdo da caixa, fechou-a depressa, mas somente impediu que a esperança, ou o dom de prever o futuro, ganhasse o mundo. Caixa, em grego, é do mesmo étimo de uma palavra chula que veio a designar a vulva.

E a Humanidade passou a sofrer, mais ou menos nos moldes das maldições lançadas sobre Adão e Eva: ganhar o pão com o suor do rosto, para o homem, e sofrer dor nos partos, para a mulher, até que ambos voltassem ao pó da terra de onde tinham sido tirados.

A triste lembrança é reiterada pela liturgia católica um dia depois do fim do Carnaval, na quarta-feira de cinzas: ‘Lembra-te, homem, que és pó e que ao pó voltarás.’

Pois é, leitores, nós temos uma cultura do futebol. Eu só quero alargá-la numa direção diferente. Expressões como meio de campo, craque, levar bola nas costas, partir para o ataque, marcar gol, pisar na bola, encher a bola, entrar de sola, tirar o time de campo, ser flagrado em off side ou na banheira etc. trouxeram a linguagem do futebol para a vida cotidiana.

O juiz marcou impedimento

Todos haverão de lembrar que o presidente Lula apresentou o então ministro José Dirceu como capitão do time. O presidente, claro, é um técnico, prestigiado (no bom sentido, já que nas sutis complexidades do futebol, ‘prestigiado’ é pré-demitido) por um índice de popularidade tão alto que nem mesmo uma bola chutada por Nelinho (desculpem, ainda não surgiu quem chutasse tão forte e tão longe) é capaz de alcançar.

Por sua vez, o futebol trouxe metáforas da guerra: artilheiro, bombardeio, estratégia, tática, cidadela, franco, fuzilar, tiro, vanguarda, retaguarda etc.

Como a Argentina é a grande rival do Brasil no futebol, lembremos os versos de um tango que dá um colorido especial ao off side, ou à banheira, quando nossas almas são flagradas em depressão: ‘Y esas ganas tremendas de llorar/ que a veces nos inundan sin razón,/ y el trago de licor que obliga a recordar/ si el alma está en orsai‘. (E esses desejos tremendos de chorar/ que às vezes nos inundam sem razão/ E o trago de licor que obriga a recordar/ que a alma está na banheira). É isso. Fizemos o gol, mas o juiz marcou impedimento. O Brasil está na banheira!

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é coordenador de Letras e de teleaulas de Língua Portuguesa; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da Editora Novo Século)