Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As reflexões que o jornalismo não faz

Mais de um mês após a morte de 29 garimpeiros de diamante atacados por Cinta-Larga na reserva indígena Roosevelt, em Roraima, o assunto continua nebuloso. Os grandes jornais, especialmente a Folha de S.Paulo, abriram espaço para o ataque, enviaram repórteres de texto e fotográficos à reserva e ouviram tanto representantes indígenas quanto líderes garimpeiros. Mas nada do que relataram é novo. Ao contrário, são explicações tão velhas como o Brasil.

No caso específico dos Cinta Larga (há problemas à vista também com os Caiapó, em cujas terras, no baixo Xingu, existe abundância de madeira, entre outros recursos cobiçados pela sociedade exterior), a correspondente da Agência Folha na Amazônia, Kátia Brasil, ouviu de mulheres a acusação de violência sexual por parte dos homens ‘brancos’ e desestruturação familiar pela presença de prostitutas.

Nada errado com o trabalho de Kátia Brasil, que fez o dever de todo repórter: procurar as personagens da história, ouvir o que têm a dizer, combinar os relatos com uma postura crítica e enviar seu escrito para publicação e apreciação pela sociedade nacional. Além das violências sexuais e perturbação de valores culturais, ela relatou, em material publicado na edição de segunda-feira (10/5), queixa de crianças indígenas sobre insegurança nas escolas que freqüentam em Espigão d´Oeste e Cacoal, municípios onde estão se localizam as reservas Cinta Larga.

Filtro indispensável

O problema por trás das questões indígenas está numa visão global do país (ou na ausência dela) no interior das redações.

O desafio que permanece, quando o levantamento das histórias deixa de ser feito por telefone e se colocam repórteres em campo, é o da edição. O enfoque, por melhor que sejam os relatos de repórteres (há uma mentalidade despótica que assegura a editores um poder ilegítimo de opinião dissimulada), não dá conta da realidade num escrito que tende a ser pontual e, quase sempre, com restrições de espaço.

O que quero dizer, para ir diretamente ao que interessa, é que os problemas indígenas, que tendem a ser agravados por muitas e variadas razões, não se restringem aos índios. São uma metáfora poderosa – um espelho cristalino – dos problemas nacionais dos mais variados conteúdos e expressões. O que falta à imprensa é um poder de análise mais amplo e inteligente para dar conta dessa complexidade que deve, de muitas maneiras, estar presente numa edição diária.

Esse poder de análise, na realidade, significa a prática do jornalismo interpretativo, o jornalismo contextualizado historicamente. E o maior desafio, por trás disso tudo, está numa transformação estrutural da mídia impressa, no sentido de mudança de mentalidade, por um amplo conjunto de razões, entre elas uma reação positiva à disseminação da internet, ampliando poderosamente o que já faziam antes o rádio e a televisão.

Alguém pode objetar que esse não é um desafio restrito ao jornalismo brasileiro – no que, evidentemente, tem razão. O comportamento vergonhoso da imprensa espanhola em relação aos ataques terroristas a Madri (quando a mídia engoliu a versão mais que suspeita do governo direitista de José Maria Aznar atribuindo o ataque ao grupo separatista ETA) é uma prova disso.

Outra evidência, se for necessária mais de uma, é o da mídia americana envolvendo a invasão do Iraque pela liderança belicosa de George W. Bush, tirando partido de um pretexto traumático como foram os ataques do 11 de Setembro. Só a muito custo a mídia se curvou às evidências (inexistência de armas químico-biológicas) e, agora, à constatação de que soldados americanos e ingleses adotam expedientes similares aos do truculento Saddam Hussein e seus filhos torturadores, evidentemente com o conhecimento de seus superiores.

No Brasil, no entanto, a mídia tem a obrigação profissional e ética de tratar a realidade nacional com a inteligibilidade necessária. Até porque esse é, também, um filtro crítico indispensável para leitura e processamento do que chega do exterior e se funde numa imagem única – a imagem de um mundo globalizado, ainda que pela miséria e violência.

E o que as redações vêm fazendo neste sentido?

Praticamente nada.

Postura ‘pragmática’

O assassinato recente de uma repórter por um ex-diretor de Redação no mais que centenário O Estado de S.Paulo talvez seja mais a expressão de uma dura metáfora, evidência do ponto a que chegamos, que uma simples coincidência.

A mídia toda relatou, nos últimos dias, o registro de 40 mil assassinatos no Brasil ao longo do ano passado. Qual o significado disso?

Apenas para ficarmos com um termo de referência, convém lembrar que durante toda a Guerra do Vietnã os Estados Unidos perderam, no Sudeste Asiático, 50 mil soldados – o que dá uma média de 5 mil homens/ano. No Brasil, sem uma guerra formal, matamos/morremos em número oito vezes maior.

Qual a matriz de tamanha violência e o que nos faz pensar que populações indígenas (mesmo os grupos isolados, aqueles que insistem em não manter contato com a sociedade exterior por relatos de brutalidades que remontam ao passado colonial) estariam a salvo da morte e destruição?

Há um imaginário, explorado por políticos sem escrúpulos (que formam a imensa maioria dos políticos), empresários hipócritas e outras lideranças sociais, sobre uma pretensa cordialidade do homem brasileiro. Essa imagem de um paraíso social estende-se para a natureza e, neste sentido, o Brasil estaria livre de problemas naturais como sismos, tufões e invernos rigorosos.

Por experiência cotidiana sabemos todos que as coisas não são assim, ainda que jornalistas imbecilizados pareçam não se dar conta disso. Parte deles continua perguntando a estrelas da música e do esporte internacional o que acham da mulher brasileira. Sem se dar conta da condição abjeta de rufiões.

Observadores podem argumentar que outras dessas imposturas não são específicas de jornalistas e reúnem categorias como economistas e advogados, o que também é verdade.

Os economistas, enquanto categoria profissional, ganharam prestígio, poder e dinheiro com o ‘milagre brasileiro’ trombeteado pela ditadura militar entre fins dos anos 1960 e meados dos 1970. O ‘milagre’ teve em Reis Velloso e Delfim Netto dois dos homens de ouro dos generais.

Reis Velloso disse, em 1972, época de um dos primeiros encontros ambientais significativos para vida no planeta, que o Brasil tinha ‘rios à vontade para serem poluídos’. Mais que ironia, esta era a interpretação de caserna para a complexidade ambiental que se desenhava: os países ricos queriam bloquear o desenvolvimento dos emergentes…

Delfim Netto foi o chef que recomendou ‘esperar o bolo crescer’ antes de ser dividido, interpretando a necessidade cada vez mais dramática de uma distribuição menos injusta da riqueza nacional. O resultado dessa postura ‘pragmática’, palavra de uso freqüente da plutocracia, mais que nunca está refletido na realidade nacional. O Coeficiente de Gini, com que os economistas avaliam a distribuição de renda, é alarmante no Brasil e o Índice de Desenvolvimento Humano, como não poderia deixar de ser, compara-se ao dos países mais miseráveis de um continente depauperado como a África.

Café da manhã

O discurso do jornalismo econômico neste momento é o da pretensa modernidade do agronegócio (ou agribusiness) sustentado pela soja e, recentemente pelo algodão, consumidos vorazmente pela China.

Como é possível falar de modernidade e eficiência do agronegócio com a miséria e violência do campo brasileiro?

Vendemos soja e algodão para a China e com isso ajuntamos algumas economias para saciar os custos de uma dívida que não pára de crescer. Mas quando anuncia que vendemos todo nosso algodão, a mídia raramente acrescenta que nossas roupas, feitas com algodão, ficarão ainda mais caras. Ou sofrerão com a mistura sintética que as deixará com uma qualidade abaixo do desejável.

Quando se fala do agronegócio não se faz uma reflexão sobre a ampliação das fronteiras agrícolas que se aproximam dos solos delicados da Amazônia, imprestáveis para culturas anuais. Nem se faz referência aos baixos salários que tornam possível essa competição internacional.

Quanto a advogados, talvez a melhor expressão seja a inversão de uma frase (‘sem advogado não se faz justiça’) que aparece com freqüência no vidro traseiro de automóveis nos espaços urbanos.

Antes que observadores mais apressados façam seus disparos é preciso dizer que o problema, aqui, não está na acusação pura e simples de categorias profissionais. Está, sim, na análise das distorções sofridas por essas categorias profissionais. E os jornalistas, por construírem uma realidade reafirmada a cada café da manhã, quando as pessoas lêem o que eles escreveram no dia anterior, têm a obrigação particular de mergulharem numa necessária reflexão sobre o trabalho que fazem.

Não é por acaso que a mídia é considerada o Quarto Poder.