Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A demora na difusão da ciência

O comportamento do jornalista frente à informação e ao fato deve ser o de verificar sua veracidade. Assim age em jornalismo investigativo na política, nos assuntos policiais. Mas, estranhamente, em jornalismo científico ele abandona o método para entrevistar duas posições opostas, como se não houvesse possibilidade de se saber qual realmente é a correta. Age como se o peso fosse de duas opções políticas religiosas. Às vezes usa o peso de um leigo qualquer contra a opinião de um cientista com anos de formação, como se fosse tudo igual. A esfericidade da terra não é crença questionável, mas uma verificação. O capitão Joshua Slocum (1844-1909), que fez a primeira circunavegação em solitário em veleiro ao redor do mundo (1895-1898), encontrou no Pacífico pessoas de origem européia que ainda não aceitavam a idéia de que a Terra seja redonda, apesar de ter chegado lá por tal princípio e pela navegação estelar. Por ela, já em 1500 Cabral chegava às ‘Índias’, e Fernão de Magalhães circunavegava o globo em 1519 (400 anos antes).

Um erro médico é baseado no fato de que existe uma conduta correta, e quem praticou o deslize usou procedimento fora da prática estabelecida, que impede o resultado esperado. E a prática é referendada em base científica, de comprovação de resultado. Ou seja, a evidência de que certo efeito vai ocorrer. Se assim não fosse ninguém poderia ser acusado de erro, e não seria determinado o procedimento correto. A ciência é antes de tudo um ‘método’ para verificar a existência do fato fora das simples alegações das pessoas. A partir de sua comprovação podem ser estabelecidos seus limites.

O Fantástico de 2 de maio entrevistou pessoas que alegam coisas que contrariam o conhecimento científico há 200 anos. E mais ainda na atualidade. Não se pede mais o mínimo de demonstração de evidência, como se ela não fosse possível de obter ainda hoje. O resultado alegado, independentemente do que seja o método usado, a cura do paciente. Este assunto transcende a informação, chega à defesa do consumidor também. Deve ser uma falha dos cursos de Jornalismo não ensinar princípios de comprovação científica.

Como São Tomé

A capacidade da pessoa comum de adquirir conhecimento a cada dia se distancia mais do volume de informações criadas em todas as áreas. Mesmo em política vemos que muitas pessoas que usam a mídia para se informar ainda desconhecem casos batidos como o do Sr. Waldomiro Diniz. Em termos de ciência, então, esta separação ainda é maior. As pessoas são extremamente crédulas, a ponto de colocarem garrafas d’água em cima de relógios de luz para economizar, pois desconhecem os fundamentos de seu funcionamento e usam o pensamento mágico para tentar entendê-lo. Esta deve ser a missão do jornalista ao fazer esta ponte, ensinando-as a achar as respostas pela informação correta.

Na Índia diariamente pessoas acorrem a praça central de Nova Deli para se submeterem a sangrias e liberar os maus humores. E juram que se sentem bem. O testemunho de um ator da Globo que garanta que isso ou aquilo ‘está mais do que provado’ é insuficiente. O método científico é que determina a afirmação verdadeira.

Assim, o Fantástico abandona a evidência de que não há cura da malária pela homeopatia e aceita uma alegação de Hahnemann, que experimentou a infusão com quinino há 210 anos. Nesses 210 anos não houve um trabalho sequer que demonstre a cura da malária pela homeopatia, apesar dos milhares de casos de malária que existem no mundo e no Brasil. (Uma evidência destas vale um milhão de dólares e um Prêmio Nobel). Como, de resto, de nenhuma doença objetiva, mas apenas de sintomas subjetivos (redundância). É a hora de o jornalista em dúvida solicitar evidências da ‘cura’, agir como São Tomé.

Até Júpiter

O neurofisiologista da Unicamp Renato Sabbatini sugeriu no programa que se use água com açúcar, que seria mais barato. O segredo está aí. Se o médico der uma colher de água com açúcar para a pessoa tratar uma dor de cabeça ela não vai melhorar. Para ela, água com açúcar não é remédio. Mas, se afirmarmos que este açúcar foi colocado com cristais retirados da sepultura de Saint-Germain, e ficou dois anos ‘energizando’ numa igreja no caminho para Santiago de Compostela, ela passa a ser um placebo ‘mais confiável’. Quando se testa uma medicação contra o placebo, seu aspecto é igual em tudo ao medicamento ativo: se o paciente souber que é inócuo, o efeito psicológico é anulado. É nisso que a homeopatia é extraordinária. Tem um livro de prescrição que serve de álibi para quem prescreve, como se realmente houvesse uma lei do ‘semelhante’. Para o paciente, aquela água pura parece remédio.

O programa tenta esclarecer como é feita a diluição das medicações homeopáticas. De uma gota da solução-mãe se acrescentam 99 gotas do diluente (água/álcool). Esta nova solução é agitada vigorosamente 100 vezes. Temos aí o que se chama de 1 CH, um centesimal de Hahnemann (C = 100 em algarismo romano e H de Hahnemann ). Pega-se uma gota desta solução e se acrescentam novamente mais 99 gotas do diluente, e repete-se a agitação. Seria a dinamização de 2 CH. O Fantástico faz interessante analogia da diluição: o volume de água requerido para se encontrar apenas uma molécula da solução-mãe corresponde à água dos oceanos terrestres (portanto, a energia contida na primeira gota ‘energizaria’ este fantástico volume).

A partir da diluição/potência de CH-12 nada mais resta da substância original em termos materiais (molécula), mas alegam que sua ‘marca’ (?) fica impressa na solução álcool/água usada para fazer a diluição, e a partir daí, sem molécula alguma, ela vai ‘marcando’ as outra moléculas da água (marca esta não-identificável) pela ‘memória da água’. Na diluição de 30-CH a quantidade de energia da primeira gota deveria ser capaz de ‘memorizar’ um volume de água do tamanho de uma esfera com um raio que atingiria até Júpiter, conforme o Fantástico. O laboratório francês Boiron vende uma medicação para tratar gripe, Oscillococcinum (autolisado filtrado de fígado e coração de pato em diluição de 200-CH partindo do mesmo mililitro. (Que volume fantástico de água teria esta diluição?)

Ilusão e desinformação

No entanto, Hahnemann, já clinicando na França, usava, pelo mesmo princípio, escala muito mais diluída de Cinqüenta Milesimal (L e M em romanos), em que a diluição é feita na base de 1:50.000: ‘Este método de dinamização eu encontrei após muitos experimentos laboriosos e de contraprova, por ser o mais poderoso e ao mesmo tempo o mais suave em ação, como a parte material do remédio é diminuída em cada dinamização de 50 mil vezes e mesmo assim aumentado incrivelmente em poder’. Ela é usada em várias partes do mundo. O que prevalece é a preferência pelo número a ser usado. Não se pode comprovar nenhuma das apresentações. (Hahnemann´s Advanced Methods: Chapter Four, The LM Potency – em www.simillimum.com/Thelittlelibrary/Greathomoeopaths/HAM4.html).

Esta, na verdade, é uma energia muito especial, não usada em nenhum campo da medicina. Pois se pensarmos na energia que o álcool e a gasolina detêm, ela não se transfere para a água por mais que se agite (mesmo numa solução de água e álcool). Nem mesmo estas substâncias aumentam sua energia se forem agitadas vigorosamente. A quantidade de calorias da queima permanece uma constante. Uma substância radioativa também segue o princípio de diluição. Quanto mais diluída em água mais diluída fica a radioatividade. O que, evidentemente, possibilita lavar as coisas contaminadas. E, nos volumes mencionados pelo Fantástico, seria uma insensatez acreditar nisso. Água submetida a agitação sob efeito de Raios X ou energia luminosa também não adquire estas propriedades. Não vai impressionar uma chapa de Raios X depois ou ficar luminosa.

O Sr. Thomas Green Mortom, que alegava coisas extraordinárias, foi desmascarado pelo próprioFantástico quando usou este meio de inquirição conseqüente, que pode realmente esclarecer o telespectador. Assistimos, infelizmente, todo fim de ano, às previsões astrológicas de pais-de-santo, jogadores de búzios, babalorixás sobre o ano que entra, mas não vemos o igual número de previsões que não se concretizaram, além das generalidades que qualquer pessoa faria, como a morte de um artista, a eleição de um político ou a descoberta de uma fraude. A eleição para presidente do Sr. Afif Domingos e a descoberta de metal precioso que enriqueceria o Brasil, afirmações da Sra. Neila Alckmin, não se concretizaram passados mais de 10 anos.

Mas deve ter sido para isso que os jornalistas obtiveram a reserva de mercado da informação, para tirar dela a fabricação da ilusão e da desinformação.

******

Médico