Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O debate que ainda não houve

Uma das dificuldades para se avançar no tímido debate público que temos no Brasil sobre as questões relacionadas à mídia, eletrônica e/ou impressa, é que tanto os defensores do status quo como os seus críticos insistem em discutir o secundário e não enxergam o principal.

Embora as questões profissionais e de conteúdo sejam relevantes, a mídia tem que ser entendida em primeiro lugar como uma instituição, uma totalidade. É nesse nível que se colocam as questões relacionadas à forma de sua organização na sociedade, à concentração da propriedade, à formação dos conglomerados, monopólios e oligopólios, à propriedade cruzada, entre muitos outros.

Em seu livro Mídias sem limite: como a torrente de sons e imagens domina nossas vidas (349 pp., Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2003), Todd Gitlin, interessado sobretudo na mídia eletrônica, usa uma inteligente parábola para explicar o seu objeto de estudo. Reproduzo:

‘Um fiscal de alfândega observa um caminhão aproximar-se da fronteira. Desconfiado, manda o motorista descer e revista o veículo. Retira painéis, pára-choques e estepe mas não encontra nem traço de contrabando, e assim, ainda desconfiado mas sem saber onde procurar mais, manda o motorista embora. Na semana seguinte, o mesmo motorista aparece. Novamente o fiscal revista tudo e, novamente, não encontra nada ilícito. Os anos passam, o fiscal experimenta revistar o próprio motorista, tenta raios X, sonar, tudo em que consegue pensar, e toda semana o mesmo homem vem, mas nenhuma carga misteriosa jamais aparece e, todas as vezes, relutante, o fiscal manda o homem embora. Finalmente, depois de muitos anos, o fiscal vai se aposentar. O motorista chega.

– Sei que v. é contrabandista – diz o fiscal. – Nem adianta negar. Mas não consigo imaginar o que você contrabandeou esses anos todos. Estou quase me aposentando. Juro que não vou prejudicar você. Por favor, me conte o que você está contrabandeando.

– Caminhões – diz o motorista.’

Será que estaríamos cometendo o mesmo reiterado erro do fiscal de alfândega de Gitlin e, portanto, não só estaríamos procurando no lugar errado mas, sobretudo, deixando de ver o ‘caminhão’ que está à nossa frente?

A não-questão

Nunca será demais lembrar que compete constitucionalmente à União explorar diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão os serviços de radiodifusão sonora, de sons e imagens. Vale dizer: a radiodifusão privada é uma concessão pública. Ou melhor: as empresas que operam os canais de TV são propriedade privada; os canais são públicos.

Por outro lado, a Constituição refere-se ao serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens em termos da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal. Decorridos mais de 15 anos da promulgação da Constituição de 1988, essa norma não foi ainda regulamentada e, claro, não vem sendo cumprida.

Nunca tivemos no Brasil complementaridade entre os sistemas de radiodifusão. Na verdade, embora não exista dúvida sobre como funciona o sistema privado, não chegamos a ter sequer uma definição legal sobre a diferença entre os sistemas estatal e público. O rádio primeiro e a televisão, logo depois, foram sendo consolidados como sistemas hegemonicamente privados, comerciais, sustentados pela publicidade, regulados por decretos de 1931 e 1932, durante o regime instalado pela Revolução de 1930, chefiado por Getúlio Vargas.

Ao contrário do que aconteceu em outros países, a opção prioritária por um modelo privado-comercial de radiodifusão foi feita nos gabinetes do poder, sem debate e sem participação da sociedade civil. Como em vários outros momentos de nossa história, infelizmente, uma decisão que interessava a toda a população foi tomada sem que ela sequer compreendesse o que estava sendo decidido. Até hoje, as diferentes opções de organização da radiodifusão permanecem uma não-questão para a grande maioria da população brasileira. A sociedade não teve a opção de escolher. E ainda não se deu conta de que tem o direito de fazê-lo.

Erro recorrente

A mídia raramente pauta a própria mídia e, quando o faz, não segue as normas da pluralidade e da diversidade. Assim, acaba ajudando a naturalizar um modelo que é apenas um dos modelos possíveis. Não é o único. Nem necessariamente o melhor.

Pautar o debate sobre os diferentes modelos de organização da radiodifusão previstos na Constituição – privado, estatal e público; buscar o esclarecimento conceitual das diferenças entre os sistemas estatal e público e lutar pela efetiva complementaridade entre os três sistemas são tarefas necessárias e urgentes.

Na modernidade, a mídia conquistou um papel de tal maneira central na vida das sociedades humanas que a forma de sua organização deve constituir-se em política pública prioritária. O caminhão da mídia é ela própria. Não podemos cometer o mesmo erro do fiscal de alfândega de Gitlin que, apesar da suspeita, foi durante uma vida inteira incapaz de ver o que realmente importava.

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Professor aposentado da Universidade de Brasília, fundador e primeiro coordenador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da UnB, autor de Mídia: teoria e política (Editora Fundação Perseu Abramo)