É inegável que a publicidade e a comunicação são campos de grande fascínio e poder. Comovem, encantam, provocam. Comunicam, seduzem, iludem. Compram, vendem, lucram. Produzem e reproduzem. Educam e deseducam. Valoram e desvaloram. Constroem e destroem…. mas nem sempre desconstroem .
Salvo belas exceções, ainda estão destituídas de tarefa mais ousada – o questionamento e a desconstrução em bases éticas. Desconstrução do inquestionável, do estabelecido e do intocável, que em geral servem a alguns e desservem a muitos.
Viva a liberdade de criação e de expressão, sem dúvida! E poucas pessoas e grupos têm tanto espaço, domínio e poder inerentes para expressar e vender sua idéia quanto as que atuam no campo da publicidade e dos meios de comunicação, principalmente os de massa. Tanto até que algumas não usam, abusam desse poder.
Felizmente, e muito felizmente falando, a reconquista e a manutenção da democracia trazem também o irrefutável, imprescindível e inalienável direito constitucional da ‘livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença’ (Art. 5º, Capítulo X da Constituição).
Só que, para alguns, parece que a liberdade de criação e expressão pode – e, às vezes, deve – ser exercida independentemente da ética, bem como dos princípios de cidadania, igualdade, dignidade da pessoa humana e tantos outros também constitucionalmente garantidos. Será que nos faltou constitucionalizar a ética?
É na esteira desse pensamento – em que vale tudo pela venda de uma ‘boa’ idéia – que, por vezes, surgem vozes de pseudo-arautos da liberdade de expressão, quando alguém, em geral com razão, questiona forma e conteúdo de uma mensagem veiculada pela mídia e a propaganda.
Pela culatra
Vale perguntar: foi isso que ocorreu com o artigo ‘A oficina das patrulhas ideológicas’, na coluna do publicitário e jornalista Alex Medeiros, publicada em 3/5/04 no diário Jornal de Hoje, terceiro maior jornal de Natal (RN)?
Trata-se de um texto em defesa da propaganda de uma concessionária de automóveis que mostra o rosto todo machucado de uma mulher com a chamada ‘Mecânica, funilaria e pintura. Tá na cara que precisa’. Resumindo o ‘irresumível’, para não virar pretexto de que se retirou do contexto. Segundo frases, parágrafos pitorescos e quase inteiros do texto:
**
‘A guerra-santa contra o anúncio já teria amedrontado’ a agência responsável pela campanha, que ‘teria prometido nunca mais produzir propagandas que insultem, agridam ou desrespeitem a dignidade da pessoa humana’.**
‘A fogueira da hipocrisia no Brasil anda produzindo histerias nunca vistas nem nos tempos da ditadura militar, principalmente depois do advento da postura ‘politicamente correta’ inventada por intelectuais esquerdóides que perderam a causa com a redemocratização nacional.’**
O anúncio ‘… é uma grande sacada e se fosse criação minha já estaria inscrito em festivais publicitários e nunca em boletim de ocorrência de delegacias ou mesa de promotor público’.**
Em reação às críticas feitas à propaganda diz: ‘O rapaz defensor dos direitos da mulher nem se manifestou com o anúncio anterior ao da moça, onde o rosto de um homem também apresenta hematomas e o texto sugere o serviço de funilaria do anunciante. Só quem não tem a menor noção de criatividade e linguagem poderia imaginar que quem deve ir à oficina é a pessoa (humana, como dizem) e nunca o automóvel que a vítima ocupava’.**
‘Outra coisa: o rosto não é de uma mulher espancada e sim acidentada. E por que as entidades feministas só identificam ‘degradação’ no anúncio com a mulher, e não com o homem?’**
‘As Torquemadas-de-saia papa-jerimuns e latinas garantem vigilância total e juram que até os jornais de Natal se comprometem a fazer censura prévia do que sai das oficinas de criação das agências.’**
‘A democracia brasileira em sua fase adolescente tem produzido acidentes de percurso sociológicos que estão levando a sociedade à hipocrisia e formando personalidades neuróticas que se fecham num mundinho peculiar, achando-se salvadores da raça.’**
‘Não vejo como condenar uma agência e um anunciante só porque entidades ideologicamente equivocadas se autonomeiam, mecanicamente, justiceiras das mulheres.’Enfim, quase todas as ‘pérolas’ do texto reproduzidas. E não é o caso de ir uma a uma desfilando e descontruindo ou recontextualizando. Mas é ótimo pretexto de reflexão, embora de triste fecunda inspiração.
De fato, foi tão ‘bem sacada’ a propaganda, que conseguiu exatamente o que queria… passar mensagem de impacto, causar polêmica e, assim, tornar ainda mais visível o produto ou serviço que quer vender. Mas o tiro pode sair pela culatra. Se para uns e outras o anúncio é uma ‘grande sacada’, para umas e outros existem várias leituras e interpretações possíveis.
Especulando algumas delas…
Nem tudo é previsível
Associar o rosto machucado de uma mulher à carroceria de um automóvel é tão de mau gosto quanto associá-la ao rosto de um homem. E seria tão ou igualmente desrespeitoso, não fosse um detalhe histórico por nada despercebido, que agrava e compromete a ‘brilhante’ idéia de colocar a mulher como vítima e protagonista da grande sacada. Que detalhe? O da permissiva e autorizada violência de gênero contra as mulheres, no espaço público e no âmbito doméstico e familiar.
Permissividade reproduzida, por vezes, não só em propaganda, mas em várias leis e políticas vigentes, nas instituições, no enredo da prática social e em tantos espaços, meios e mensagens que nos rodeiam. Não são só profissionais de publicidade e de comunicação que produzem mensagens… e nem só deles(as) essas mensagens se sustentam.
‘Publicitários têm mais o que fazer e não estão articulando com seus ‘brainstorms’ a desgraça do mundo ou a dizimação das mulheres’, outro texto ipsis litteris. Verdade. E nunca escutei alguém dizer o contrário.
Mas quem produz, patrocina e veicula meios e mensagens tem o raro privilégio e oportunidade de medir e refletir sobre o impacto dessas mensagens. E trabalhando com indicadores pré e pós-veiculação da mensagem, os quais vão muito mais além do número de produtos vendidos ou serviços prestados. Dá pra calcular ou assumir, nessa perspectiva, uma margem mínima de responsabilidade no antecedente e no conseqüente, não?
Profissionais da publicidade e da comunicação – tanto quanto ativistas de direitos humanos, inclusive das mulheres – estão imbuídos(as) de reflexividade, conceito bem desenvolvido pelo sociólogo Anthony Giddens (aquele mesmo… e mesmo que amigo do Tony Blair, como disse um psicanalista e filósofo, reunidos numa única pessoa).
E o pior não é a prática de atos com impactos negativos sem que tenha havido intenção para tal. Margens de erros e riscos sempre existem, em campanhas publicitárias de produtos e serviços, eleitorais, de opinião e comportamento etc. e tal. E, muitas vezes, assume-se o risco de produzir um resultado não desejável e até mesmo impensável. O pior mesmo parece ser a recusa de alguns em promover a reflexividade sobre o conseqüente não desejado, não previsto e, até mesmo, não assumido de ser produzido. Deixar de dialogar sobre essa base pode, no mínimo, fomentar ações futuras inconseqüentes. E como o mundo tem textos, contextos e dinâmicas, nem tudo é previsível. Vale uma avaliação em vetor de dupla mão: no conseqüente e no antecedente.
Criação falaciosa
‘Tá na cara que precisa’ de quê? Mais fácil (des)qualificar qualquer manifestação crítica de ‘patrulha ideológica’, ‘censura prévia’ ou postura ‘politicamente correta’, conceitos bem diferentes e que para muita gente não se aplicam em nada ao caso em questão.
Enfim, também é sempre mais fácil desqualificar o outro (um ‘tal’ Antonino Condorelli, um ‘tal’ monitoramento de ações’, um ‘tal’ Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher’, ‘Torquemadas-de-saia papa-jerimuns e latinas’, e por aí afora), do que promover um diálogo aprofundado que não fique no medíocre e rasteiro ressentimento do umbigo corporativista.
Até ‘monitoramento de ações’, mecanismos de controle social da mídia e da propaganda, no limitado entender, vira sinônimo de censura prévia e ofensa à liberdade de expressão.
Não há dúvida, tal qual ainda preconiza o texto: ‘Salário mínimo de R$ 260, turistas que atraem meninas pobres em Ponta Negra, verbas de educação desviadas para fins particulares, a fome que destrói o tecido social da nação’. Também é verdade. Mas verdade também que o anúncio foi infeliz… fazer o quê? O conseqüente dele também destrói o tecido social da nação e fere a dignidade da pessoa humana.
Tudo bem, de tréguas se travam batalhas… mas aqui não é guerra, e muito menos santa. Nada mal ser arauto do direito à liberdade de expressão. Lamentável é usar o pretexto de ofensa a esse direito, para defender interesses corporativistas ou sabe-se lá de que(m). Lamentável e sem comentários são os ataques às ‘tais’ pessoas e entidades de direitos humanos, inclusive das mulheres.
Mais lamentável ainda é perceber que, em nome desse direito, falaciosamente cria-se um campo fértil para a propagação de posturas agressivas e reacionárias, das quais nem mesmo a agência responsável pela referida campanha publicitária compartilha. E, por certo, delas não deve compartilhar também um elenco expressivo de profissionais de agências de propaganda, anunciantes, meios de comunicação, e talvez até mesmo de concessionárias e oficinas de mecânica, funilaria e pintura.
A chance de escutar
Para inquietar o caldo de reflexões, recomendável mesmo seria um pouco de leitura de bons artigos, textos e livros que pensam e tecem sobre direitos humanos, feminismo, violência contra as mulheres, racismo, desigualdade socioeconômica, ética, política, publicidade e comunicação etc. etc. etc. Recomendável seria a simples porém profunda observação da vida ou a reflexão sobre a experiência, sobre o que se lê, o que se vê, o que se escuta, o que se consome.
Mas, considerando a ocasião, o tema e a falta de tempo para tanta coisa, recomendável pode ser a breve leitura de um texto bem curto e atual: ‘O erotismo do corpo feminino brutalizado’, artigo da colunista Bia Abramo, publicado na Folha de S.Paulo (2/5/04, ‘Ilustrada’, pág. E 3). No mínimo, faz refletir sobre o conteúdo das imagens e mensagens, e sobre a não-passividade e a apatia de quem as recebe pela televisão ou por qualquer outro meio de comunicação de massa.
E isso faz lembrar Eugênio Bucci, quando observa que não por acaso a televisão trabalha com uma das maiores pulsões do inconsciente: o sexo e a violência. E ele desconstrói – em argumentação que só ele mesmo poderia reproduzir – a falácia de que é a democracia do que se quer ver, justamente porque não passa pela intermediação da consciência, nem antes, nem durante, e talvez mesmo, nem depois de sua veiculação. Eugênio está autorizadíssimo e convidadíssimo a me corrigir e dizer que falei bobagem se tiver entendido mal o que ele disse, ao vivo e em cores, na TV Cultura.
Escrever esse texto é menos uma resposta a um caso isolado e muito mais uma proposta para nos debruçarmos na ousadia da reflexão. É desejo de compartilhá-la com quem pense igual, parecido ou totalmente diferente.
É escutar as companheiras feministas – estamos despertando e apontando para o mundo da comunicação para além de nós mesmas. Dialogar com diferentes mulheres e homens que atuam no campo dos direitos humanos e feminismo, da publicidade e da comunicação, da filosofia e da psicanálise etc. Quem sabe ter a chance de escutar ao menos, entre tantas figuras, Fátima Pacheco Jordão, Jurandir Freyre Costa, Eugênio Bucci, Suely Carneiro, Alberto Dines, Raquel Moreno, salpicadas aleatoriamente numa lista infindável de pensantes críticos e reflexivos (de anônimos a famosos) que passeiam por alguns desses campos com olhares privilegiados.
‘Pensar pede audácia’
Mesmo com tantos sinais explícitos, preferia pensar que matérias dessa natureza fossem raras, e frutos de uma ingenuidade, purismo ou imaturidade política, em vez de manifestação do umbigo corporativista de pouca, ou quase nenhuma, ética e autocrítica. A análise da propaganda em questão não resiste ao pente fino de uma mínima visão crítica, à percepção da associação simbólica da mensagem – no caso bem mais explícita que simbólica – e não resiste à noção elementar de que a publicidade trabalha com mensagens subliminares, até por detrás do que é explícito.
É, pois, reprodução de um modelo de pensamento, criatividade e expressão alimentado ainda por valores e atitudes calcados em estereótipos, preconceitos e discriminações que marcam a nossa sociedade e nela reproduzem a violência. E é difícil mesmo deles nos livrarmos. E deles não estão imunes profissionais de qualquer área, inclusive da publicidade e da comunicação. Exige um tanto de reflexão, autocrítica, humildade… abandono da arrogância antes de tudo.
O discurso em defesa de propagandas nessa linha é tão ou ainda mais lamentável e danoso que as próprias mensagens por elas veiculadas. Espera-se que não tenha vida longa a lógica perversa e rasteira que rege a propagação de ideologias radicalmente machistas, capitalistas e racistas ‘por meio de qualquer meio’. Alguns, sem se dar conta, reproduzem essa lógica; outros, o fazem propositadamente, e ambos acabam lançando mão de uma provocação inconseqüente, muitas vezes com um nobre e nada condenável objetivo a priori de vender produtos, arregimentar consumidores e auferir lucros. Depende de como. Ainda bem que tantos outros pensam e agem de forma diferente.
Ainda nos falta aprender a ‘pensar e transgredir’. Como diz Lya Luft, ‘pensar pede audácia, pois refletir é transgredir a ordem do superficial que nos pressiona tanto… pensar não é apenas a ameaça de enfrentar a alma no espelho: é sair para as varandas de si mesmo e olhar em torno, e quem sabe finalmente respirar’.
Instrumentos de transformação
A aludida propaganda não se sustenta aos olhos de quem enfrenta a alma no espelho, vê além do próprio umbigo, sai para as varandas de si mesmo, olha o entorno e respira. Que tal sair um pouco do umbigo corporativista e respirar? Cabe aqui a máxima consagrada numa bela propaganda, por acaso, de um fabricante de automóveis: ‘Está na hora de você rever seus conceitos’.
Se eu fosse criadora da polêmica campanha ela não teria saído assim. Mas, ainda que por um lamentável surto tivesse cometido a criação dessa campanha, em vez de inscrever essa peça em algum concurso publicitário, como foi sugerido, investiria energia, dinheiro e tempo para pensar e transgredir… sair para as varandas da minha inteligência e imaginação, e quem sabe reconstruir uma idéia de peça publicitária mais ousada, desafiadora, audaciosa… e, claro, criativamente ética.
É preciso questionar e desconstruir em bases éticas. É preciso pensar e transgredir. Criar para além do superficial estabelecido e, acima de tudo, sobre o que parece e aparece, para alguns, infelizmente, como intocável: a lógica extremadamente capitalista, racista, patricarcal e machista, conservadora e reacionária que ainda habita um bom pedaço desse nosso caldo de cultura brasileiro, latino-americano e mundial. Habita o (in)consciente, o imaginário social, o pensamento de cada dia, a prática social e institucional predominante.
E para o texto de quem, nas linhas e entrelinhas, confessa fazer polêmica ‘só pra chatear’… Bem, a liberdade de expressão e o livre arbítrio existem e valem para todas as pessoas. Que se faça uso e não abuso. E, de preferência, por meio de criativas idéias, imagens, palavras, posturas e atitudes, basta escolher como.
Por acreditar que a publicidade e a comunicação, assim como os direitos humanos e o feminismo, podem ser instrumentos de transformação social, é que vale a pena ousar pensar e transgredir sobre (a)ética criativa.
******
Advogada feminista, coordenadora da área regional de violência do Cladem – Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (violencia@cladem.org)