Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma minoria que se expressa em nome da sociedade

A liberdade de expressão é uma das primeiras, já no século 17, a construir o Estado democrático. Sem direito a pensar, falar, se organizar e votar não há democracia. Uma célebre definição diz que a verdadeira liberdade é a de quem discorda de nós. Aceitar só a palavra de quem concorda conosco é fazer troça da liberdade. Ela só vale quando incomoda. E o melhor mesmo é quando a discordância já não nos incomoda, mas nos enriquece. Um dia, leremos jornais para aprender com quem diverge de nós.

O problema é quando passamos dessas considerações de filosofia política para a liberdade de imprensa. Quem fala na mídia, impressa ou não, é uma minoria. A liberdade de imprensa é diferente da de votar, de ir e vir, de escolher a religião. Dessas liberdades, todos desfrutamos em pessoa. Já na mídia, fala uma minoria. A maioria (os leitores) tem liberdade por pessoa interposta. Então, liberdade de expressão para quem?

A melhor resposta que conheço vem da ideia inglesa de trust, que vai além da sua tradução literal como ‘confiança’. Trustee é o fiel depositário. A liberdade de imprensa tem um titular, que é o conjunto dos cidadãos, mas quem a exerce não é ele e sim quem a recebe como depositário. Ele deve ser fiel: verídico, diz Rui Barbosa; livre, acrescenta Eugênio Bucci, professor da ECA-USP e colaborador do Estado de S.Paulo, neste seu A Imprensa e o Dever da Liberdade.

Os valores, os fins

Mas isso não é simples. Nós, o povo, elegemos os governantes. A imprensa deve criticá-los. Ela é um ‘quarto poder’ justamente porque pode ser mais eficaz que o primeiro e o terceiro, o Legislativo e o Judiciário, para conter excessos do Poder Executivo. Melhor a imprensa criticar demais do que de menos. Melhor uma imprensa injusta com o eleito do povo do que uma cortesã. Mas, se a eleição legitima o governante, quem legitima a imprensa? Porque a liberdade de informar é serva do direito de ser informado. Todos têm direito a saber e a formar sua opinião, e a imprensa livre é o melhor meio (mas, apenas, meio) para esse fim tão nobre.

É esse o horizonte do livro de Eugênio. Ele fala da política quando, por exemplo, conta seu empenho em converter uma mídia governista – a Radiobrás, que ele presidiu no primeiro governo Lula – em mídia pública. Mas me atrevo a dizer que o mais importante de seus artigos, sem desconsiderar as ótimas páginas sobre o atentado às Torres Gêmeas, é o que trata do jornalismo cultural e de seus problemas.

Aqui se exemplificam novas ameaças à liberdade de ser informado. Tomando como exemplo a cobertura do cinema, Bucci diz que ela foi anexada pela indústria e se converteu numa província do show business. Ninguém admitiria que o ministro da Fazenda pagasse passagem, hotel e restaurante do jornalista que vai entrevistá-lo. Mas por que se aceita isso do produtor de um filme, ou da agência de viagens que lança um novo pacote turístico? Pode ser que o apoio a um plano econômico canalha seja pior do que a recomendação de um resort ou de um filme ruim, mas será mesmo?

Isso não diminui a credibilidade da cobertura cultural? E acrescento: isso não está ligado a uma visão do mundo que considera a cultura coisa menor que a economia, assim como o governo se divide entre os ministros com sede na Esplanada e os secretários de nível ministerial que se sentam no fundo da sala nas reuniões do gabinete? E, no entanto, são estes últimos que lidam com os valores, com os fins, com o futuro – direitos humanos, igualdade étnica, meio ambiente. Não é esse o caso da cultura?

Sal da Terra

Todos somos afetados pela política e pela economia. Acompanhar o que fazem os poderes eleitos e as potestades econômicas deste mundo é crucial para garantir a liberdade. Mas estou convicto de que, mais e mais, o sentido que cada um constrói para sua vida pessoal tem menos a ver com a política, e sim com as vastas províncias do que antes se chamava mens sana in corpore sano – ou sejam, a cultura e o entretenimento, o esporte e a atividade física. É isso o que entra em jogo nos cadernos cultural, esportivo, turístico ou de saúde de um jornal.

Há hoje um crescente desinteresse pela política. Será porque ela nos ameaça menos do que antes? Não tememos, no Brasil, uma ditadura. As que restam no hemisfério – hoje, Cuba e Honduras – são, apenas, restos. Será que conseguimos chegar a uma política, não perfeita, mas razoável? É possível.

Mas, à medida que a política se consolide como democrática, e desde que a economia venha a extinguir a miséria, os assuntos principais de nossas vidas estarão em como nos realizarmos cultural e fisicamente. Na cultura incluem-se a espiritualidade, as artes, o próprio entretenimento leve. Na parte física está o interesse em ver esportes, mas também em praticá-los, o cuidado com o corpo, o que tão apropriadamente se chama wellness.

Ora, a ligeireza com que se trata o lazer – esse lazer que De Masi elogia como ‘ócio criativo’ – está presa a uma visão da sociedade e da política em via de superação. Uma mídia que reduza a cultura e o esporte a fofocas de celebridades (a favor ou contra, não importa), que não aprofunde essas questões, faz pouco caso do que se está tornando essencial para o leitor.

Na verdade, esses assuntos talvez sejam até mais difíceis que a pauta tradicional da imprensa. Afinal, de senadores e empresários há muito tempo que se sabe falar. Mas sabe-se falar de arte e de corpo? Sabe-se falar do corpo como arte, sabe-se falar da vida das pessoas? A economia está complexa, precisamos de especialistas que falem do pré-sal, mas o que falta mesmo é quem entenda as mudanças que estão ocorrendo na vida das pessoas, quem saiba captar o novo sal da Terra. Para isso, tem de haver verdade, inteligência, liberdade.

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Professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo