Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O dom de iludir e a ilusão do dom

‘Por este motivo, um príncipe prudente não pode nem deve manter a palavra dada quando isso lhe é nocivo e quando aquilo que a determinou não mais exista. (…) Mas, uma vez que [os homens] são pérfidos e que não manteriam [a palavra dada] a teu respeito, também não te vejas obrigado a cumpri-la para com eles. Nunca, aos príncipes, faltaram motivos para dissimular a quebra da fé jurada.’ O Príncipe, Nicolau Maquiavel (1469-1527).

O pai do lema ‘os fins justificam os meios’, dissertando sobre as qualidades do leão (infundir o temor) e da raposa (a esperteza em reconhecer as armadilhas) – atributos do príncipe prudente – ‘justifica’ a quebra da palavra, seja por ‘razões de Estado’, seja pela facilidade de iludir, uma vez que ‘tão simples são os homens, e obedecem tanto às necessidades presentes, que aquele que engana sempre achará a quem enganar’.

Cinco séculos depois, o filósofo José Arthur Gianotti, professor da Universidade de São Paulo e amigão do peito do então príncipe FHC, o Limpo, num artigo famoso para a Folha de S.Paulo, afirmava que ‘as leis guardiãs que regem a pólis, para serem praticadas, requerem uma zona de amoralidade’. Forte candidato ao Nobel de Madeiramento Facial, impávido, arrematava: ‘(…) na medida em que a política, entre muitas coisas, consiste numa luta entre amigos e inimigos, ela pressupõe a manipulação do outro. Desde logo suporta, portanto, uma certa dose de amoralidade’.

Sutil, não? O que, para o comum dos mortais, é imoral, para o príncipe é ‘amoral’, ou seja, não é passível de enquadramento nos paradigmas de uma ética ‘arcaica’. Maquiavel, relembrado, clamou ‘bravo!’, lá das profundas, e nós todos dormimos mais tranqüilos, enfim sabedores de que tudo é uma canalhice só. E não nos perturbará o sono frases como a do ministro Gilberto Gil, quando diz que tem exercido ‘toda hora’ a hipocrisia, que considera ser ‘uma ferramenta da civilidade’ (sic). E vamos em frente.

Fogo de barragem

Homens simples e desatentos existiram antes, durante e depois do florentino, assim como príncipes que, de maneira generalizada, mentiram, omitiram, dissimularam, segundo seus interesses (ou, para sermos condescendentes, pelos interesses do Estado) – e o fazem até hoje, e o farão até a consumação dos séculos, ou até o fim das prestações das Casas Bahia – o que ocorrer primeiro. E todavia haverá, nestes tempos de Gianotti, homens ainda mais ingênuos que acreditarão ser este ‘dom de iludir’ uma espécie de talento, uma grande qualidade dos nossos astuciosos governantes e de seus brilhantes marqueteiros. Enfim, como dizia o grande Moreira da Silva, a cada minuto nasce um otário.

Otários ou não, em menos de um mês cerca de 120 milhões de brasileiros irão às urnas para escolher as quase 70 mil autoridades municipais do executivo e do legislativo de mais de 5.500 municípios, dentre uma plêiade de 31.000 candidatos(as) a prefeito(a) e vices, e 344.000 excelências, candidatos e candidatas a edis.

Antes de exercer o sagrado direito e o cívico dever da democracia, os eleitores terão sobrevivido a centenas de horas de propaganda gratuita, com inserções no rádio e na TV, milhares de anúncios nos jornais, panfletagem a mancheias e, novidade, aos ‘visitadores’ dos partidos – potência máxima em estratégia de convencimento. Neste fogo de barragem da propaganda política, surge, rediviva e imponente, a arte de manipular as estatísticas, um item importante da mala de truques de nove entre dez marqueteiros.

Promessas, promessas, promessas

Aquele dito espirituoso das ‘mentiras, mentiras deslavadas e estatísticas’, ora atribuído a Mark Twain, ora a Disraeli, tem que ser revisto e atualizado: não são apenas três, mas quatro os (atuais) tipos de mentiras. É necessário acrescentar as ‘mentiras das propagandas política que utilizam estatísticas’.

Poucos meses atrás, houve aquela série de comerciais do PT na TV e no rádio em que o governo Lula – então com ‘um ano, quatro meses e seis dias’, e que proclamava que tudo ‘isso é fato, isso é verdade’ – aparecia com uma salada estatística de fazer corar qualquer aluno de primeiro ano. Misturando períodos de tempo, tarifas, preços e números-índices da economia a seu bel-prazer, colou em nossas retinas a impressão de que há um Brasil insuspeito que nos aguarda logo ali em frente – se a gente tiver um pouco de paciência (e patriotismo) e nos comportarmos direitinho, isto é, obedecendo e confiando na receita.

Antes haviam nos brindado com outra obra-prima do Duda Mendonça, especialista em bem vestir roupas novas nos reis, que foi aquele filminho sobre a reforma agrária onde nada era ‘de verdade’, da admirável hacienda aos dados sobre o projeto de reforma agrária. Enfim, se a realidade não traz bons frutos a exibir, inventa-se algo que seria como se fosse do jeito que se queria que fosse, entendeu?

Mas corre-se o risco de errar a mão e abusar do dom de iludir, como naquelas ‘peças publicitárias’ na época da reforma da Previdência, que foram até retiradas do ar talvez por uma ‘excessiva habilidade’ no trato dos números. Ao invés de meias-verdades (que são meias-mentiras, ou não?), a propaganda oficial do governo pela aprovação da reforma simples e deliberadamente distorceu todos os dados, falseou os números e ‘interpretou’ os valores, ignorando ou atropelando as regras básicas da contabilidade (pública e privada).

O que espanta, e enoja, é justamente esta truculência à la Goebbels, esta indiferença a qualquer coisa que mesmo remotamente possa se chamar ‘bom senso’; é como se alguém revogasse o teorema de Pitágoras ou a lei da gravidade. É aquela história de que não há fatos que resistam a argumentos, e isso ou aquilo ‘é’ simplesmente ‘porque eu quero’ que seja.

É preciso lembrar que Duda Mendonça, quando ressuscitava Paulo Maluf ou ajudava a inventar Celso Pitta e outros candidatos ‘do mal’, era considerado pelos nossos atuais governantes a fina flor da malandragem imagética… Sinal dos tempos: no essencial, Duda Mendonça não mudou em nada – pelo contrário, acumula seguidores e discípulos que repetem a fórmula de bandeiras drapejando nos arrebóis do ‘dia que virá’, com operários em macacões imaculados, levas e mais levas de sorridentes ‘representantes da raça’ (brancos, negros, mulatos, amarelos etc.), todos em seus afazeres ou se abraçando em doce enlevo, embalados por canções entusiasmadas, numa espécie de ‘vamo-que-vamo’, tudo e todos solidamente bonitos e alegres como num filme do Franco Zefirelli. E, é claro, uma legião de crianças, a correr felizes pela estrada afora, rumo a um venturoso porvir. Ainda funciona?

Na hora de apresentar os projetos e/ou realizações do próximo mandato, é outra festa. Já vi e ouvi candidato a prefeito prometer uma redução de 70% (isso mesmo) na passagem de ônibus; outro promete dobrar (!) o número de postos de saúde na cidade. Outro tem a solução para o problema da segurança: basta deixar que o planejamento e as ações da PM fiquem por conta apenas dos soldados e cabos – ‘que são aqueles que estão o dia inteiro na rua, e por isso sabem muito mais da criminalidade do que os oficiais que passam o tempo enfiados nos gabinetes’.

O mesmo candidato, refletindo sobre o problema do preço das passagens, diz que irá promover uma ‘audiência pública’ (não seria auditoria externa?) nas concessionárias do transporte urbano. Um diz que vai matricular as crianças de seis anos no ensino fundamental, sua meta para a educação que, estranhamente, já está prevista pelo governo estadual e já é adotada por muitas escolas. Outro diz que irá ‘acabar’ com as taxas municipais (!!!!).

Quanto aos candidatos a vereador, em que muita coisa beira o inacreditável, melhor deixar para o Zé Simão da Folha ou para o Agamenon, do Globo.

Tolices de candidatos

Não é fenômeno recente, pelo contrário, mas parece que ‘pega’ junto com o deslumbramento do poder: Collor era um monumento à arrogância mas, lembra do FHC declarando que governar o país era fácil? Pois é, não deu tempo de desdizer e o segundo mandato jogou a economia no chão.

O presidente Lula foi pela mesma trilha já no discurso de posse, quando ainda não tinha descido do palanque e a realidade ainda não havia ‘batido’. Depois que viu que o buraco era muito mais embaixo, alguma coisa lhe subiu à cabeça e, enquanto Antonio Palocci e José Dirceu faziam o servicinho sujo, continuou a acreditar naquelas ladainhas da campanha eleitoral e começou a imaginar-se um super-herói. A cada fracasso administrativo, culpava a inoperância dos ministros. A cada promessa descumprida anunciava um próximo espetáculo do crescimento. A cada escorregão interno correspondia um discurso de estadista numa cúpula qualquer, lá fora.

A ilusão do dom da onipotência e da certeza de ser um ungido dos deuses atingiu um dos seus picos mais elevados quando o presidente da Republica propôs a taxação especial das exportações de armas em prol dos pobres do mundo. Mas não parou por aí, a língua solta perpetrou mais essa, sua bobagem semanal do final de agosto, açulada pelo ‘requecimento da economia’:

‘O Brasil já foi a oitava economia mundial. Daí criaram o G-7. Quando caímos para a décima, criaram o G-8. Agora que este país vai voltar a ser a sétima ou a oitava economia, vamos ver se os países mais ricos vão diminuir o grupo dos privilegiados.’

Alguém deveria ter a bondade de explicar o presidente Da Silva, cuja eleição foi um ‘momento histórico da humanidade’, que:

a) Quem ‘criaram’ o G-7 foi o presidente francês Valéry Giscard d’Estaing, em 1975, quando convidou os dirigentes da Alemanha, Estados Unidos, Japão, Reino Unido e Itália para uma reunião no castelo de Rambouillet (perto de Paris). Tratava-se de um encontro reservado, cujo objetivo era poder discutir como essas economias estavam sendo afetadas pela crise do petróleo. O evento passou a ser anual, e o Canadá foi convidado a participar em 1976. Em 1998, bem depois da queda do Muro de Berlim, a Rússia, também convidada, passou a integrar o grupo – agora o G-8.

b) Para entrar neste clube não basta apenas ter grana, não. A carteirinha só é liberada devido também à sua importância política. Por exemplo, o caso da Rússia, que é um país ligeiramente mais pobrezinho que nós, e a União Européia, que também participa, por intermédio de seu ‘país-presidente’. A China ainda não está lá, mas não custa muito a ser admitida.

c) Em termos de PIB, o pódio é o seguinte (segundo a Global Invest, abril de 2004): EUA (US$ 10,857 trilhões), Japão (US$ 4,291 trilhões), Alemanha (US$ 2,386 trilhões), Reino Unido (US$ 1,752 trilhão), França (US$ 1,732 trilhão), Itália (US$ 1,459 trilhão), China (US$ 1,381 trilhão), Canadá (US$ 851 bilhões), Espanha (US$ 819 bilhões), México (US$ 612 bilhões), Austrália (US$ 608 bilhões), Índia (US$ 510 bilhões), Coréia do Sul (US$ 521 bilhões), Holanda (US$ 505 bilhões) Brasil-iu-iu! (US$ 493 bilhões). Depois vem a Rússia, com US$ 419 bilhões.

d) Além do valor nominal do PIB, interessa (e muito) saber a taxa de crescimento anual desta estatística. Como é do conhecimento de todos, o PIB brasileiro cresceu, embora negativamente (como diria o Duda Mendonça), de menos 0,2%, em 2003. Este ano, as previsões são de que cresça 4,5%, o que está muito bom, mesmo comparado com os últimos 5 anos, quando crescemos positivamente em 1,4% (média).

e) Outra coisa: se a gente continuar a crescer nesse pique, em cerca de 13 anos passaremos o Canadá (o oitavo do G-8). Mas tem que mandar os canadenses ficarem bem quietinhos, imóveis, congelados – o que é muito fácil para eles, lá é frio à beça. Nestes próximos 13 anos, o Canadá tem que crescer ‘paradamente’. Aí, é mole pra nóis. O problema é que, mesmo assim, seremos atropelados pela China, que cresce a 9% ao ano, e pela Índia, com quase isso. Se juntarmos (matematicamente, é claro) as populações destes dois países, teremos algo como 2,5 bilhões de pessoas (ou 40% da população mundial). Mas se este pessoal ficar parado, logo, logo se impacienta e começa o empurra-empurra e lá vamos nós para o brejo de novo.

Tolices como essas do presidente e dos candidatos a prefeito e a vereadores me inspiraram a criar a Enciclopédia de Bolso do Besteirol Estatístico da Propaganda Política e Afins (EnBoBEsta), a sair em breve neste Observatório.

Até lá.

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Engenheiro, professor do Departamento de Estatística da Universidade Federal de Juiz de Fora