Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A perversão da lógica quantitativa

Dois registros de origem midiática inspiram o tema do presente artigo. Um é relativo à mídia impressa (carta de um leitor, publicada no ‘Painel do leitor’ da Folha de S.Paulo, em 13/9); outro diz respeito à mídia eletrônica (o programa Armazém 41, exibido na noite de 13/9 pela GNT – canal 41 – Net). Em comum, une-os o quadro cultural em que vive o Brasil na atualidade. Ainda mais se faz oportuna a pontuação crítica a seguir, levando-se em conta que se realiza, no Congresso Nacional, um debate em torno do Plano Nacional de Cultura, a exemplo da mais recente audiência pública, realizada em 25/8/04, tendo na presidência o deputado Paulo Rubem Santiago (PT-PE).

Antes, porém, de focalizarem-se criticamente os dois fatos midiáticos, faz-se necessário um prévio recorte conceitual, por compreender-se que a conjuntura cultural, conforme ocorre com a esfera social, deriva, principalmente na realidade brasileira, das condições que fixam roteiros de política econômica. Com base, pois, em tal reconhecimento, pautaremos algumas questões.

O que significa, em profundidade, a opção pela ‘economia de mercado’, sob o aval dos sucessivos governos, desde a traumática experiência implementada pela gestão Collor e drasticamente intensificada por seus sucessores? Que efeitos dela decorreram e em que níveis acabaram por atingir a atividade midiática, contaminando, por sua vez, todo o tecido cultural, a ponto de, na realidade presente, a mídia expor um desempenho tão sofrível quanto submisso e acrítico?

Para satisfazer, ao menos parcialmente, a demanda contida nas perguntas formuladas, torna-se imperativo que, de pronto, se identifique o fundamento de caráter mais amplo possível. Para tanto, outra indagação se impõe: em que aspecto central se apóia a ‘economia de mercado’?

A deformação da lógica quantitativa

Em princípio, o foco de interesse a mover o mercado reside no insaciável apetite em capturar as poupanças disponíveis, prática que se materializa na intensificação de operações a envolverem compra e venda, ou seja, multiplicar, em patamares máximos, quantidades de ofertas e incluir o maior número de consumidores. A avaliação que sucede a tal estratégia é medida pelo primário critério de ‘maioria’. A ‘maioria’ consome isso; a ‘maioria’ quer aquilo. Assim, sob esse parâmetro, tudo parece legitimado e justificado.

O primeiro problema, todavia, está no fato de a ‘lógica quantitativa’ na qual se sustenta o mercado absorver – como perversão – o princípio que, nas origens, fez criar o sentido de democracia (vontade da maioria). Quando um setor incorporou o critério do outro, deu-se início ao embaralhamento das cartas. A deformação, a partir daí, tornou-se inevitável, vindo a afetar drasticamente o próprio exercício da democracia. De que maneira se opera a degeneração? Ora, se uma sociedade passa a comportar-se em todos os setores com base no simples e aritmético conceito de ‘maioria’, cai-se na vala da ‘ditadura da maioria’ na qual se atola a democracia política e cultural.

Na fria ‘lógica quantitativa’, inimiga feroz da contrapartida ‘ética qualitativa’, quem não está inserido no mercado é traço nas estatísticas. De igual modo, quem, no plano cultural, representa segmento cada vez mais minoritário igualmente é transformado estatisticamente em traço, sendo tragado pelo furor de um ‘gosto’ dominante. Nesse emaranhado indiferenciado, mesclam-se o econômico, o político e o cultural. Como resultado, tem-se o perfil de uma sociedade degradada. A visibilidade desse quadro passa a ser então exibida e exposta pelo sistema midiático – seja na vertente impressa, seja na modalidade eletrônica.

A cultura do traço e a entronização do ‘troço’

Como ilustração da visibilidade mencionada no parágrafo anterior, reproduzimos dois momentos nos quais a mídia, na semana passada, forneceu os exemplos. O primeiro segue, em corroboração aos conceitos aqui emitidos, com a reprodução, na íntegra, da carta publicada pela Folha de S.Paulo, cujo signatário é o leitor Marcos Penteado (São Paulo – SP):

‘Li no ‘Painel do Leitor’ um comentário sobre o programa ‘Provocações’ e sobre programas de TV que apresentam ‘traços’ no Ibope. Eu sou um desses ‘traços’, pois assisto sempre ao ‘Provocações’ – e assisto basicamente à TV Cultura. Acho que sou sempre um ‘traço’ nas estatísticas. Sou traço quando escuto música clássica ou jazz. Sou traço quando leio livros. Sou traço quando jogo xadrez e quando estudo francês. Na verdade, considero o Ibope das TVs abertas uma medida da qualidade da educação no nosso país. Teremos um país digno de orgulho na educação quando o Ibope inverter-se e passar a dar traço nas novelas, nos programas de auditório, nos programas sensacionalistas e nos jornais de tragédia.’

Somente em um ponto o signatário se equivoca: ao excluir a TV a cabo. Nesta, afora ocasiões cada vez mais raras, o quadro não muito difere. Entre outros programas para os quais um indivíduo medianamente qualificado, ou uma pessoa exigente mas tolerante destinem o olhar melancólico, há aqueles para os quais somente o olhar da indignação tem lugar. Um exemplo foi a exibição de Armazém 41. Integram a cena, para uma suposta conversa, o jornalista Arthur Dapieve e o comediante Marcelo Madureira.

Deixando de lado considerações outras, vamos diretamente ao ponto fulcral. A pretexto de comentarem o belíssimo documentário Janela da alma, de João Jardim e Walter Carvalho, a certa altura Marcelo Madureira, sem estar figurando num dos momentos (engraçados ou não) do Casseta & Planeta, teceu as seguintes considerações sobre o escritor José Saramago:

‘Eu acho o Saramago um saco. Eu já tentei ler livro dele e não consegui. Ele só fala bobagem’.

Bem, numa democracia, qualquer um tem o direito de expressar o que quiser, razão pela qual também o direito se estende ao articulista.

Não bastasse a ‘singela avaliação’ destinada à envergadura crítica e literária de José Saramago e em que pese a auto-avaliação de Madureira, ao definir-se, em fala adiante, como ‘ignorante e rústico’, ainda ‘enriqueceu’ o comentário com o seguinte arremate:

‘Ou é intelectual ou é português. Ele tem que escolher. Ou ele é intelectual, ou é comunista, ou é português. Ele tem que escolher’.

É óbvio que nenhuma importância tem a opinião de Marcelo Madureira quanto ao que ache sobre o que quer que seja. Felizmente, o restante do mundo não terá ouvido, o que já é lucro. Menos ainda, fica sequer arranhada a densa obra literária de Saramago, que, além de grande escritor, é portador de uma integridade ética digna de registro. Também não há problema algum em alguém não gostar. Há de se respeitar a escolha de cada um.

O problema começa, entretanto, a existir e de maneira grave, quando pessoas intelectualmente inexpressivas se acham no direito de desqualificar outras, cujo valor da obra está consignado. E esta é a questão central que, na vida brasileira, ganha crescentemente forma: o ódio e o desprezo à cultura letrada, ou seja, a presença hegemônica do ‘troço’ que, não satisfeita em reinar, ainda precisa ‘matar’ seu adversário.

No ringue da (in)cultura brasileira, o nocaute tem que ser seguido de morte. Para esse propósito, não faltam ofertas em emissoras de TV, jornais, revistas. Quanto pior, melhor. No Brasil, há algum tempo, demonstrar qualificação intelectual é motivo de preocupação, incômodo e, até, maldição. É a perversão completa, sob a liderança da promíscua lógica quantitativa. No quadro posto, só há lugar para o popularesco e o populacho. Fora daí, é ameaça. Que lástima!

Sob o rótulo de ‘entretenimento’, empurram-se entulhos e ataques explícitos a tudo que entulho não for. Em nome de se afirmar a indigência intelectual, tenta-se banir a qualificação. Isto é ‘ditadura da maioria’, travestida de democracia. O assassinato cultural, no Brasil, está a passos céleres – prática verificável em todos os planos da vida nacional. Quando se abrirem os olhos, talvez não reste cenário nem paisagem. Apenas ruínas… Enquanto isso, salve a cultura do traço! Bom apetite aos cultores do troço, do treco, das traças…

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro