De todos os trabalhos de George Orwell, Política e a Língua Inglesa, escrito em 1946, é certamente uma de suas obras mais interessantes. Nela, Orwell discutia a forma com que palavras como ‘democracia’ ou ‘socialismo’ eram gravemente distorcidas por seus usuários, a ponto de perderem qualquer nexo com a realidade. ‘Palavras deste tipo são conscientemente usadas com o intuito de se enganar’, nos lembra Orwell. ‘As pessoas que as usam tem sua definição particular, mas induzem sua platéia a acreditar que queiram dizer algo bastante diferente.’ Certamente o termo ‘liberdade de expressão’ se encaixaria em sua crítica, mas talvez até o próprio Orwell se espantasse com o seminário ocorrido no Tucarena, da Pontifícia Universidade de São Paulo, no dia 28 de maio último. O evento, com o curioso nome ‘Mídia e liberdade de expressão’, era organizado pelo maior conglomerado de mídia do país e principal força na luta contra a democratização dos meios de comunicação, a Rede Globo.
O seminário, verdade seja dita, teve um caráter bastante pedagógico sobre mim e alguns de meus colegas. Chocados com o evento, decidimos panfletar um pequeno texto a respeito do papel vergonhoso da Globo na história do nosso país e levar alguns questionamentos ao seu diretor de jornalismo, Ali Kamel.
Perigosos cartazes
O caráter pedagógico do evento, porém, não se deu graças às reflexões expostas pelos palestrantes no seminário. A unidimensionalidade da mesa, incapaz de minimamente vislumbrar a profunda contradição de se discutir sobre ‘liberdade de expressão’ em um evento organizado por uma de suas maiores inimigas, deteve-se a criticar a regulamentação do Estado sobre a mídia. Nem mesmo a conferência da comunicação, prestes a ocorrer em dezembro, gerou qualquer tipo de reflexão por parte de nossos ilustres acadêmicos.
O que realmente marcou o evento, entretanto, foi a forma com que seus organizadores –a Rede Globo e a PUC-SP – demonstraram seu entendimento pelo termo ‘liberdade de expressão’. Pode-se dizer que poucos seminários organizados pela reitoria da PUC foram marcados por um temor tão grande a tal liberdade. Em quase quatro anos de casa, esta foi a primeira vez que fui literalmente proibido de entrar em um seminário por causa das minhas convicções políticas.
A razão oficial por trás da proibição de nossa entrada foi que alguns de meus colegas portavam perigosos cartazes e a Globo, segundo fomos informados, não gosta de cartazes. Não que os cartazes possuíssem perigosas palavras de ordem contra a emissora; estavam inscritos neles somente alguns nomes de desaparecidos políticos que a Globo se recusara a anunciar durante a época da ditadura.
Espanto geral
Assim que abandonamos os nossos cartazes para podermos entrar no evento, novamente fomos barrados. Desta vez, um crescente número de funcionários da companhia de segurança Graber, tanto os da PUC quanto os da Globo (sim, a Globo fez questão de trazer alguns de seus próprios seguranças) começaram a cercar a entrada Tucarena e nosso pequeno grupo de amigos.
A razão por trás da nova proibição, agora, não era mais os cartazes. Segundo a chefe dos seguranças, nossa postura ia contra o que ela entendia ser uma ‘postura correta’. Portanto, com cartazes ou sem eles, estávamos proibidos de entrar no evento. O argumento foi repetido pelos outros organizadores, visivelmente irritados com nossa presença e o indesejável ponto de vista que a acompanhava. Quando lembramos à direção que o tema ‘liberdade de expressão’ estava sendo tratada de forma, no mínimo peculiar, fomos avisados que ‘a vida é assim mesmo’.
Quando já estávamos prestes a desistir do seminário, encontramos, saindo do Tucarena, nosso vice-reitor, professor Vico Mañas. Inconformados com a postura da PUC, que co-patrocinava o evento, apelamos ao professor Mañas para que nos deixasse entrar. Notava-se na face do vice-reitor uma certa indisposição em lidar com o ocorrido, mas mesmo assim nos garantiu que faria o que fosse possível para resolver o impasse. Após o vaivém com os representantes da Rede Globo, o vice-reitor retornou ao nosso grupo pedindo para falar em separado com o nosso ‘líder'(?!).
A busca por uma ‘liderança’ em um grupo de por volta de 15 estudantes e alguns curiosos que mal sabiam por que estavam sendo proibidos de entrar na arena (todos aqueles que ousavam nos cumprimentar na porta eram também automaticamente barrados) contribuiu ainda mais ao espanto geral. Após ser convencido do absurdo de sua idéia, o professor decidiu negociar a entrada com todos nós.
Sorrisos amarelos
Assim que começou a falar, o vice-reitor tirou de seu bolso o pequeno panfleto que alguns de nossos colegas que conseguiram entrar haviam distribuído no auditório. Mañas, que sacudia seus punhos segurando firmemente o pedaço de papel, reiterava que o texto exposto no panfleto era inaceitável. Quando dizíamos a ele que era nossa opinião, o vice-reitor, meio que sem saber o que fazer, alegava que se resolvêssemos o problema do conteúdo poderíamos entrar no seminário. O vice-reitor queria negociar nossa posição ideológica.
O inicialmente calmo Mañas, logo começou a se descontrolar e assim que viu que sua conversa estava sendo gravada por um estudante, nos dirigiu algumas palavras ríspidas e, no melhor estilo da ex-reitora Maura Veras, virou as costas e saiu andando. O professor Mañas parecia muito mais amigável durante sua campanha a reitoria…
Infelizmente, não foram os esforços do diretor executivo do Tucarena, Sergio Resende (que, ao contrário de Vico Mañas, estava visivelmente constrangido com a situação) que garantiu a entrada dos estudantes no seminário. Parte do público dentro do evento, também chocado com o impedimento de nossa entrada, começava a protestar no auditório. Assim que uma estudante se apossou do microfone ali presente para denunciar o que ocorria do lado de fora, o jornalista chefe da Globo decidiu permitir nossa entrada. Os poucos estudantes que ainda insistiam em entrar foram recebidos com sorrisos amarelos por parte dos palestrantes.
Idéias inaceitáveis
A novilíngua moderna exige que os opostos sejam sempre invertidos. Guerra é paz, escravatura é liberdade e ignorância é força. Somente no mundo imaginado pelos intelectuais puqueanos, a Globo é vitima e o agressor são os que querem regulamentar concessões públicas. Nesta nova investida contra a democracia, a PUC é cúmplice em favor dos que têm poder e contra os que dele são desprovidos. A postura lamentável de seu vice-reitor, que provavelmente sequer se importava pelo tema discutido no seminário, é sintomática da imoralidade de uma reitoria disposta a vender sua alma ao diabo, não só por dinheiro, mas também pela glória dos holofotes.
Defender a liberdade de expressão significa defender o direito de pessoas revoltantes expressarem idéias inaceitáveis. Hitler e Stalin certamente defenderiam a liberdade de expressão, desde que as idéias não fossem contra o que acreditavam. De certo modo, a reitoria de nossa universidade e a TV Globo, junto obviamente com os palestrantes que ali estavam, pouco diferem de Andrei Zhdanov; liberdade de expressão só interessa quando os homens livres seguem a ‘linha do partido’.
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Estudante de Direito e Relações Internacionais, São Paulo, SP