Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Contar os mortos, disseminar o pânico

Sim, há uma nova gripe circulando no país, especialmente nas regiões Sul e Sudeste, como de resto em praticamente todo o mundo. É fato. Algumas pessoas vão morrer da moléstia, como de resto morre gente vítima das outras gripes existentes. Também é fato. O que tem sido visto na grande imprensa brasileira nos últimos dias, porém, é praticamente um crime contra o bom senso e a inteligência do distinto público. A cobertura da chamada gripe suína (o nome correto é Influenza A H1N1) se tornou uma verdadeira aberração, provoca pânico na população e certamente vai se mostrar exagerada em menos de dois ou três meses, quando os números da tal ‘terrível pandemia’ começarem a murchar. Como a mídia não tem autocrítica, porém, logo surgirá outro assunto para a irresponsabilidade dos responsáveis pelas manchetes e escaladas dos telejornais.


Não é preciso ser gênio para perceber que a cobertura dos últimos dias e semanas, focada na contagem do número de mortos que a maléfica gripe já provocou no país, não tem nenhuma outra utilidade senão a de disseminar o pânico. O ombudsman da Folha de S.Paulo, Carlos Eduardo Lins da Silva, em sua coluna dominical (26/7) reproduzida ao final deste texto, classificou a cobertura da Folha – e em especial uma reportagem publicada no domingo anterior (19/7), intitulada ‘Gripe suína deve atingir ao menos 35 milhões no país em 2 meses’ – como ‘um dos mais graves erros jornalísticos cometidos por este jornal desde que assumi o cargo, em abril de 2008’.


Carlos Eduardo se limitou a escrever sobre a Folha, mas as suas observações valem para praticamente todos os grandes jornais e telejornais. Todos os dias o público vai sendo informado do número de mortos em decorrência da nova gripe, porém sem qualquer referência estatística ou base comparativa que permita a compreensão do fenômeno em curso. O ministro da Saúde, José Gomes Temporão, já explicou, inclusive no programa televisivo deste Observatório, que a taxa de letalidade da gripe suína é a mesma da gripe comum – cerca de 0,6% dos infectados acabam morrendo. (Para ser preciso, usando os dados da OMS divulgados na segunda-feira, 27/7, são 87 mil infectados nas Américas para 707 mortes. A taxa de letalidade fica em 0,8%, mas deve ser muito mais baixa porque os países pararam de fazer testes para descobrir os infectados, que devem superar em muito os 87 mil).


Do ponto de vista da imprensa, porém, este é um dado que não deve ser de maneira alguma alardeado – afinal, notícia ruim é o que vende jornal e aumenta audiência na televisão. As estatísticas também mostram que morre muito mais gente de diarréia e verminose por semana no Brasil do que, desde o início do ano (quase oito meses!) de gripe suína. Aliás, só no inverno passado (junho/julho) foram 4,5 mil mortos da gripe ‘normal’ contra os tais 45 da gripe suína neste ano.


Recordar é viver


O pior de tudo é que a mídia insiste em não aprender com os erros passados. Ao contrário, gosta de repetir os mesmos equívocos, mesmo que eles possam vir a cobrar seu preço em perda de credibilidade. A cobertura da nova doença, por exemplo, faz lembrar um pouco a do tal do Ebola, o vírus que dizimaria meia África e deixaria um rastro de desgraça pelo mundo afora. Na época (edição de 9 de agosto de 2000), a revista Veja publicou reportagem cujos títulos e lides eram os seguintes:




Truque assassino


Descoberto mecanismo de infecção do vírus Ebola, que mata nove entre dez contaminados


O Ebola é um pesadelo. Capaz de liquidar suas vítimas em poucos dias, é o mais violento de todos os vírus. De cada dez pessoas contaminadas, nove morrem. Isso ocorre porque o microrganismo ataca veias e artérias de todo o corpo, provocando hemorragia generalizada. Certos órgãos, como o fígado e os rins, simplesmente se desfazem e o sangue jorra em tal profusão que sai pelos olhos e poros. Na semana passada, cientistas americanos anunciaram o primeiro passo para combater esse assassino cruel: a descoberta da proteína usada pelo Ebola para destruir as células, causando o rompimento dos vasos sanguíneos. Entender o mecanismo de infecção torna possível o desenvolvimento de recursos para controlá-lo. ‘Remédios exigem maior prazo de pesquisa, mas uma vacina pode ser desenvolvida com rapidez’, disse a VEJA Gary Nabel, coordenador da pesquisa no Instituto Nacional de Saúde, responsável pelos estudos com o vírus, nos Estados Unidos.


Bem, a África continua por lá e os africanos também. Mundo afora, parece que não foi muita gente que morreu contaminada pelo ‘pesadelo’ da Veja, que mataria nove de cada dez contaminados. É evidente que a taxa de letalidade não poderia ser tão alta, é óbvio que a ‘reportagem’ era uma aula de sensacionalismo barato.


Sensacionalismo ou motivação política


A reportagem da Folha, cuja irresponsabilidade foi apontada pelo ombudsman do jornal, é apenas um exemplo entre tantos outros que poderiam ser colhidos ao acaso em todos os grandes veículos de comunicação do país. Resta então analisar por que a mídia brasileira realiza uma cobertura tão equivocada da gripe suína. Vamos lá:


Qualquer estudante de primeiro ano de jornalismo ou qualquer jovem esperto, sem diploma, que entrar em uma redação percebe, em questão de minutos, o verdadeiro fascínio que as más notícias exercem sobre os jornalistas. Notícia ruim, tragédia das realmente pesadas, vende muito mais do que fatos positivos. A menos, é claro, que a boa notícia seja algum novo milagre de Fátima, a cura definitiva do câncer ou vitória da seleção em Copa do Mundo. O fato é que jornalistas gostam de notícias ruins porque elas vendem, portanto os ajudam a levar para casa o leitinho das crianças (em alguns casos, o ‘leitinho’ é para os adultos mesmo). Enfim, a vida é dura e nada como uma boa manchete trágica para chamar atenção do público.


Por outro lado, já circula na internet, em blogs pró e contra o atual governo, a versão de que a cobertura da imprensa no caso da gripe suína visa desestabilizar o até aqui muito bem avaliado trabalho do ministro Temporão e, por tabela, tirar mais uns pontinhos da altíssima popularidade do presidente Lula. Sim, é a clássica teoria conspiratória: a mídia contra o governo, usando as armas disponíveis, mesmo que elas signifiquem botar no papel ou na telinha da televisão algo que pouco tem a ver com a realidade. Para os partidários desta teoria, o caso da gripe seria ainda mais estratégico, pois o candidato preferido da oposição ao cargo de Lula, o governador paulista José Serra (PSDB), foi ministro da Saúde, e a ‘desconstrução’ da competência do atual ministro cairia como uma luva para a candidatura tucano-demista em 2010. Quem advoga esta tese lembra as ‘crises artificiais’ criadas pela mídia, como a aérea, que no entanto pouco ou nada afetaram a popularidade do governo Lula.


É claro que ainda é cedo para dar um veredicto final sobre a cobertura da imprensa da gripe suína, mas já é possível sustentar a hipótese de a fome (de audiência e vendas) estar colada à vontade de comer (prejudicar um governo em relação ao qual a grande imprensa sempre foi francamente hostil). Os fatos, porém, acabam se impondo e são sempre mais fortes do que as versões construídas pela mídia, como prova o caso do ‘sequestro da caderneta de poupança’, tão ventilado nas folhas e que se mostrou frágil como um castelo de cartas. Portanto, nada como um dia após o outro para que um quadro mais preciso das reais motivações da mídia nesta cobertura acabe aparecendo. O distinto público, para desalento de certos mancheteiros, é mais esperto do que se imagina…


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No limite da irresponsabilidade


Carlos Eduardo Lins da Silva # reproduzido da Folha de S. Paulo, 26/7/2009


‘A reportagem e principalmente a chamada de capa sobre a gripe A (H1N1) no domingo passado constituem um dos mais graves erros jornalísticos cometidos por este jornal desde que assumi o cargo, em abril de 2008.


O título da chamada, na parte superior da página, dizia: ‘Gripe suína deve atingir ao menos 35 milhões no país em 2 meses’. A afirmação é taxativa e o número, impressionante.
Nas vésperas, os hospitais estavam sobrecarregados, com esperas de oito horas para atendimento.


Mesmo os menos paranóicos devem ter achado que suas chances de contrair a enfermidade são enormes. Quem estivesse febril e com tosse ao abrir o jornal pode ter procurado assistência médica.


O texto da chamada dizia que um modelo matemático do Ministério da Saúde `estima que de 35 milhões a 67 milhões de brasileiros podem [em vez de devem, como no título] ser afetados pela gripe suína em oito semanas (…). O número de hospitalizações iria de 205 mil a 4,4 milhões´.


É quase impossível ler isso e não se alarmar. Está mais do que implícito que o modelo matemático citado decorre de estudos feitos a partir dos casos já constatados de gripe A (H1N1) no Brasil.


Mas não. Quem foi à página C5 (e não C4 para onde erradamente a chamada remetia) descobriu que o tal modelo matemático, publicado em abril de 2006, foi baseado em dados de pandemias anteriores e visavam formular cenários para a gripe aviária (H5N1).
Ali, o texto dizia que `por ser um esquema genérico e não um estudo específico para o atual vírus, são necessários alguns cuidados ao extrapolá-lo para o presente surto´.


Ora, se era preciso cautela, por que o jornal foi tão imprudente? Ou, como pergunta o leitor Martim Silveira: `já que não tem base em nada nas circunstâncias atuais, qual a relevância de publicar algo que evidentemente só pode causar pânico numa população que já está abarrotando os postos de saúde por causa da gripe, quando os casos mal passam do milhar?´


Muitos leitores se manifestaram ao ombudsman. José Rubens Elias classificou a chamada de `leviana e irresponsável´. José Roberto Teixeira Leite disse que `se o objetivo do jornal era espalhar pânico, conseguiu o intento´. Para José Clauver de Aguiar Júnior, `trata-se claramente de sensacionalismo´.


O pior é que a Redação não admite o erro. Em resposta à carta do Ministério da Saúde, que tentava restabelecer os fatos, respondeu com firulas formalistas como se o missivista e os leitores não soubessem ver o óbvio. Em resposta ao ombudsman, disse que considera a chamada e a reportagem `adequadas´ e que `informar a genealogia do estudo na chamada teria sido interessante, mas não era absolutamente essencial´.’

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