De um ex-presidente é esperado comportamento discreto, respeitoso para com seus sucessores, que paire acima dos ódios políticos e colabore para o avanço do país. Se eventualmente discordar do modo como o país é conduzido e não quiser guardar para si tal discordância, deve manifestá-la de forma polida, racional, colaborativa, sem qualquer laivo de agressividade ou ataque pessoal.
Os EUA têm dado, ao menos nesse quesito, uma demonstração de civilidade democrática. Em sua grande maioria, seus ex-presidentes mantêm uma postura respeitosa para com os chefes de Estado que os sucedem. Alguns, como Jimmy Carter e Bill Clinton, continuaram servindo ao país em fóruns internacionais mesmo quando governado pela oposição. Até na fase terminal, lame duck, do pior mandatário da história norte-americana, George W. Bush, quando as críticas se fizeram inevitáveis, elas não deixaram de obedecer, no mais das vezes, a certos protocolos e de manter o respeito pela Presidência enquanto instituição.
‘Autoritarismo popular’
Tais digressões vêm à tona no contexto da repercussão do artigo ‘Para onde vamos?’, escrito pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e publicado no domingo (1/11) pelos jornais O Globo, O Estado de S.Paulo e Zero Hora, entre outros. Nele, o ex-mandatário destila acusações contra o ‘autoritarismo popular’, o ‘subperonismo lulista,’ o ‘poder presidencial com aplausos do povo, como em toda boa situação autoritária, e poder burocrático-corporativo, sem graça alguma para o povo’.
Para FHC, ‘diferentemente do que ocorria com o autoritarismo militar, o atual não põe ninguém na cadeia. Mas da própria boca presidencial saem impropérios para matar moralmente empresários, políticos, jornalistas ou quem quer que seja que ouse discordar do estilo `Brasil potência´’. O ataque ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva é direto: ‘decisões governamentais esdrúxulas, frases presidenciais aparentemente sem sentido’.
Não que a conduta de FHC fuja à regra dos ex-presidentes pós-ditadura militar. Sarney procura preservar uma certa liturgia em relação ao cargo que um dia foi seu, mas como a utiliza para a manutenção da imagem de homem cordial e para a satisfação de seus interesses políticos comezinhos, é questionável sua validade ética. A Collor, chamuscado pelo processo de impeachment, não foi cedido o devido espaço midiático para dar vazão a seus humores pós-Presidência, enquanto Itamar Franco não perdeu chances de destilar ressentimentos e críticas ferinas aos que o sucederam.
Altas doses de rancor
Nenhum deles, porém, o fez com a freqüência, a virulência e a dose hiperbólica de rancor utilizadas por FHC – e também não lhes foi franqueado tanto espaço na mídia para divulgação das próprias idéias nem, sobretudo, foram estas tão repercutidas posteriormente por terceiros.
Relevemos o erro crasso de concordância no primeiro parágrafo (‘A enxurrada… talvez levem’) e a atribuição a Hamlet de uma fala que é, na peça de Shakespeare, de Polônio (dirigindo-se ao personagem-título: ‘– Apesar de ser loucura, revela método. Não quereis sair do vento, príncipe?’). Se Lula incorresse em tais erros, seria evidente sinal de ignorância; cometidos pelo príncipe da sociologia brasileira, em meros erros de revisão se tornam.
Concentremo-nos, pois, em três dos aspectos que mais se evidenciam artigo. O primeiro é a acusação difusa e imprecisa de autoritarismo, a qual não é sustentada por nenhum ato institucional ou prova material produzidos pelo governo de turno, constituindo, portanto, mera estratégia retórica de choque empregada pelo dublê de articulista. ‘Poder presidencial com aplausos do povo, como em toda boa situação autoritária’, escreve FHC, como a sugerir, numa lógica torta, que só os governos sob vaias seriam democráticos.
Faça o que eu digo, não o que eu faço
O segundo aspecto diz respeito ao quanto a maioria das acusações ao governo de turno, justas ou não, se mostrariam procedentes se aplicadas à Presidência do próprio FHC. O blog O Hermenauta oferece uma boa revisão crítica nesse sentido, cuja leitura eu recomendo. Ele demonstra, por exemplo, com o auxílio do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil – 2003 (IPEA/PNUD), que a referência à ‘riqueza fácil que beneficia poucos’, presente no artigo de FHC, nunca foi tão recorrente como na administração do agora acusador, e que alguns dos projetos ora por ele criticados – como o reaparelhamento da Força Aérea, tiveram início em seu próprio governo.
Examinemos, de nossa parte, duas dessas acusações-bumerangue: é no mínimo contraditório que um dos líderes tucanos acuse Lula de ter escolhido Dilma Rousseff candidata à sucessão no ‘dedazo’, quando o próprio PSDB escolheu Geraldo Alkimin candidato à Presidência em 2006 em um jantar para quatro convivas, regado a vinhos finos, em um dos mais elegantes restaurantes paulistanos.
Já a acusação contra os fundos de pensão, de sua concentração nas mãos do funcionalismo público, sob alegada hegemonia do PT, vinda do ex-governante que mais incentivou a formação, vitalização econômica e decorrente fortalecimento institucional de tais fundos, soa mais como o lamento de um político derrotado num ponto-chave de sua estratégia de poder do que como uma crítica coerente.
Ora, conquista hegemônica de poder, respeitadas as regras democráticas institucionais – e FHC não fornece evidência alguma de que estas não estejam sendo seguidas –, é o jogo jogado. A leitura de seus arrazoados acaba por dar a impressão de que a ambição – no caso, da aliança liderada por PT e PMDB – de continuar no poder tem algo de intrinsecamente autoritário. Mas não foi Sérgio Motta quem anunciava aos quatro ventos que o projeto do PSDB era de 20 anos na Presidência? Dois pesos e duas medidas?
Rancores mal dissimulados
Mas o aspecto mais evidente do artigo do ex-presidente – que não contém qualquer proposta programática – é seu subtexto, pleno de rancores mal dissimulados e que deixa entrever que o que move o peessedebista não são os ditames da razão e as alegadas preocupações com o futuro do país, mas os humanos, demasiadamente humanos sentimentos figadais da inveja, do despeito e do orgulho ferido.
Bastariam para atiçar tais rancores o sucesso da política econômica – com o Brasil sendo o primeiro país a sair da crise mundial –, das políticas sociais que beneficiam mais de 30 milhões de pessoas, da diplomacia que colocou o Brasil efetivamente como player mundial (um feito que FHC se esforçou por lograr e não conseguiu) e, talvez acima de tudo, a projeção internacional de Lula, reconhecida tanto pelos principais órgãos da mídia mundial como por governantes de modo geral, à frente Barack Obama – que o quer na presidência do Banco Mundial.
Mas há mais: FHC começa, finalmente, a ser preterido e renegado por seu próprio partido, o qual tenta manter sob seu controle desde que deixou a Presidência. Vinha sendo bem sucedido até então, apesar do ônus que impôs a José Serra e a Geraldo Alckmin (SP), respectivamente nas eleições presidenciais de 2002 e 2006 – em que, pesando como uma pedra no lombo dos candidatos peessedebistas, colaborou sobremaneira para o duplo naufrágio. Nesta semana, porém, o PPS do camaleônico Roberto Freire (PE) impôs como condição ao apoio a Serra na próxima corrida ao Planalto que o PSDB se desvencilhe do fardo FHC. Ele acusou o golpe.
Papel constrangedor
Se FHC fosse o grande intelectual e a personalidade política superior que seus acólitos e a mídia de forma geral apregoam, poderia ter evitado o papel constrangedor e pleno de empáfia que vem há tempos desempenhando (e que atinge o ápice no artigo citado), pelo qual será fatalmente julgado pela História. Tivesse mantido uma postura serena e madura – ainda que eventual e respeitosamente crítica –, o tempo encarregar-se-ia de envolver em um véu de esquecimento sua Presidência de raros acertos e colossais erros, entre eles os que – sem enfrentar uma crise mundial sistêmica – levaram o país à insolvência três vezes e legaram um índice altíssimo de desemprego, que ora atinge seu menor nível histórico.
Substituindo os ataques pessoais e a manifestação de sentimentos ao rés do chão por uma atitude urbana, civilizada, condizente com a de um ex-mandatário máximo do país, conseguiria, com o apoio das forças comunicacionais das quais dispõe, preservar a contento sua própria imagem através dos tempos.
Para assim agir, no entanto, é necessário ser um estadista. Coisa que Fernando Henrique Cardoso, pondo sempre seu ego ferido à frente dos interesses do país, já deu mostras evidentes de que não é.
******
Jornalista e cineasta, doutorando em Comunicação pela UFF; seu blog