Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Brasil na guerra, a tentação totalitária

 

A guerra travada na distante Europa desde setembro de 1939 chega à América com o ataque à base naval americana de Pearl Harbor, no Havaí, em dezembro de 1941. Acaba a neutralidade dos Estados Unidos, começa a Guerra no Pacífico. Signatário do Tratado do Atlântico – acordo que previa que se um dos países fosse atacado, imediatamente haveria um alinhamento em favor dos Aliados – o Brasil começa a ser pressionado pelo governo americano. No curso de poucas semanas, após a Conferência dos Chanceleres, realizadla no Rio de Janeiro, o Brasil declara estado de beligerância com Alemanha, Itália e Japão.

É o fim da aproximação com as potências do Eixo. Desde a ascensão dos regimes totalitários na Europa, Vargas aproximava-se do modelo autoritário. Termina o "namoro" com o Eixo e a política de neutralidade do Brasil. O Observatório da Imprensa de terça-feira (3/11) exibiu o terceiro episódio da série de programas especiais sobre a Segunda Guerra Mundial, intitulado "A Tentação Totalitária". O programa, excepcionalmente gravado, analisou o "namoro" do Brasil com os regimes nazista e fascista, o cenário político da entrada do Brasil no conflito e a participação do Brasil nos combates travados na Itália.

No editorial, Alberto Dines explicou que o ditador alemão Adolf Hitler não inventou o racismo. "Apenas modernizou as teorias do francês Gobineau sobre a inferioridade de certas raças. Hitler não procurou a política, a política foi atrás dele quando logo depois da Primeira Guerra fez um curso para líderes antibolcheviques", disse. Para Dines, Hitler "juntou as duas paranóias" e com elas criou uma nova doutrina segundo a qual o comunismo era uma invenção dos judeus para dominar o mundo.

Também no editorial, Dines comentou que Hitler e Mussolini, ditador da Itália, acreditavam-se predestinados e imbatíveis e que a Itália "se saiu melhor na exportação de ideologias" devido à cultura latina e ao apoio da igreja católica depois da concordata com o Vaticano. "Num cenário tão favorável aos regimes autoritários, três anos depois dos primeiros triunfos militares do nazi-fascismo uma surpresa: o Brasil passa para o outro lado, rompe relações com o Eixo, enfrenta o cerco dos submarinos e entra entusiasmado num conflito que se trava no outro lado do globo."

Cenário conturbado

Um dos fatores a contribuir para a aproximação do então presidente Getúlio Vargas com o nazismo e o fascismo foi a "histeria" causada pelo fracassado golpe militar ocorrido em 1935, a chamada Intentona Comunista. "A proporção da chamada intentona como movimento de oposição foi mínima. Bem restrito. Mas deu a Vargas os argumentos políticos que ele desejava. Então ele veio, a partir daí, endurecendo progressivamente, perseguindo os inimigos, enchendo as prisões e também instalando em postos chave as pessoas de sua confiança", explicou Orlando de Barros, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

A guerra civil na Espanha também contribuiu para o alinhamento com os regimes autoritários. Reforçou os setores reacionários da igreja e fortaleceu a convicção dos militares de que a legislação em vigor era insuficiente para reprimir sublevações populares. "A Guerra Civil Espanhola passa a ser uma forma de o Brasil perceber a influência comunista. Nós temos aí a alternativa de o governo assumir um posicionamento de direita muito mais próximo do que seria o modelo fascista de um modo geral, e o encaminhamento para simpatias para com o Franco vão reforçar essas situação", explicou José Carlos Sebe Bom Meihy, professor da Universidade de São Paulo (USP).

"As mudanças ocorriam em grande velocidade e eu diria até que com grande proveito para, pelo ao menos, uma parte da população. Nós tínhamos uma tensão muito grande, por causa das conseqüências da crise mundial de 1929. O fascismo já ocorria na Itália e o nazismo tomaria a Alemanha logo no começo de 1933", explicou Orlando de Barros. A União Soviética "exportava" a revolução de 1917 e esse clima internacional chegava ao Brasil. "Juntava de um lado as esperanças, do outro as transformações, de outro as tensões", disse. Neste caldeirão, o governo brasileiro tenta tomar pulso dos acontecimentos.

Em 1937, com o Plano Cohen, nome judeu para um suposto golpe comunista, Getúlio Vargas conseguiu um pretexto para continuar no poder e anular as eleições do ano seguinte. "Congresso fechado, Constituição cancelada, censura implantada, estava criado o Estado Novo", lembrou Dines. Neste clima de censura, o filme O Grande Ditador, de Charles Chaplin, era proibido de ser exibido no Brasil. A sátira a Adolf Hitler chegou ao país somente dois anos após a estreia mundial. O historiador Eduardo de Souza Soares comentou que o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) considerou que a obra ameaçava as Forças Armadas e poderia por em risco a imagem de Getúlio Vargas. Enquanto a obra de Chaplin era proibida, o governo, em parceria com a embaixada alemã, organizava sessões de cinema para a exibição de filmes nazistas para soldados, como contou o general Octávio Costa, que à época era cadete.

O fascismo muito próximo

Alberto Dines explicou que era muito forte o círculo fascista em torno de Vargas. Lourival Fontes, diretor do DIP, era muito próximo ao presidente. "Jornalista culto, hábil, adepto do fascismo antes mesmo da criação da Ação Integralista Brasileira. O próprio Mussolini o considerava como um dos três maiores entendidos em fascismo fora da Itália", disse Dines. Outro integrante do governo que exercia grande influência sobre o presidente era o ministro das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha. Aliado desde os tempos da Revolução de 1930, Aranha ocupou outros cargos no governo até ser enviado para a embaixada brasileira em Washington, onde consolidou suas convicções democráticas e liberais.

"Surpreendido pela promulgação do Estado Novo, Aranha tentou persuadir Vargas a amenizar seus excessos. Não conseguiu, pediu demissão. Vargas convenceu-o a ficar ao seu lado como ministro das Relações Exteriores para assim neutralizar o poderoso lobby político-militar pró-Eixo." Luiz Aranha Corrêa do Lago, professor da PUC e neto do então ministro, contou como a atitude de Vargas foi interpretada pelos diplomatas estrangeiros: "É sempre no sentido que o Getúlio, mesmo ali, deu uma mensagem: `Olha, eu não estou totalmente totalitário. Eu tenho elementos no meu convívio que podem ter uma influência em um certo sentido´. E eu acho que a partir desse momento, fica clara a participação dele, evidentemente de aproximação com os Aliados, e mais particularmente com os Estados Unidos", comentou.

Dines explicou que o movimento integralista, "versão cabocla do fascismo", foi criado pelo poeta nativista Plínio Salgado em 1932, em São Paulo, e rapidamente se alastrou pelo Brasil, penetrando em vários setores da sociedade e esferas do governo. "Depois de 1934, principalmente, o integralismo vai se manifestar dentro de instituições. No Exército, por exemplo, na Escola Militar do Realengo, temos o exemplo da emersão de duas forças, uma de esquerda e outra de direita. A de direita caracterizada por militares que aderiram ao integralismo. É importante também destacar que o integralismo incorporava segmentos da sociedade, alguns aparentemente contraditórios, como a própria igreja", explicou José Carlos Sebe Bom Meihy.

Um regime mais palatável

Em comparação com o nazismo, as idéias fascistas foram mais bem aceitas fora da Europa. "Me parece que o fascismo tem uma face, se não me engano, mais palatável aos latinos como um todo. E por mais brutal que tenha sido, tinha uma certa aura mais civilizada. E ainda que especialmente italiano em sua origem, ele não foi tão nacional com o tempo. Me parece que havia uma boa imagem do fascismo, para ser aceito em uma série de outros países conforme sua formação, o ar de sua civilização e seu enquadramento histórico", analisou Orlando de Barros. Por essa razão, houve um processo de "aculturamento" do movimento fascista no Brasil, ao contrário da doutrina nazista.

Um exemplo de como o fascismo espalhou-se pelo Brasil é a região de Paranapanema, no interior de São Paulo. Na localidade, duas fazendas – propriedades de dois irmãos herdeiros de uma abastada família carioca – identificavam-se com o nazi-fascismo. Na primeira, a suástica era usada para marcar o gado, era exibida em bandeiras e decorava a papelada administrativa das terras. O atual dono, José Ricardo da Rosa Maciel, descobriu por acaso que até os tijolos tinham o símbolo nazista estampado, quando porcos derrubaram uma parede da fazenda. Na outra propriedade, meninos órfãos retirados de uma instituição do Rio de Janeiro viviam em condições de semi-escravidão e eram obrigados a vestir o uniforme dos integralistas e fazer a saudação "Anauê!", marca dos "camisas-verdes". O Observatório entrevistou um sobrevivente desta fazenda.

Dines explicou que oito meses depois de iniciada a guerra, a bordo do encouraçado Minas Gerais, Vargas faz um discurso claramente antidemocrático alinhado com as doutrinas totalitárias. "Primeiro, ele transitou entre o apoio aos nazistas e o apoio aos aliados abertamente", relembrou o general Octávio Costa. "O trabalho do Osvaldo Aranha e da diplomacia brasileira de interpretar esse discurso e para suavizar os impactos daquela barbaridade foi importantíssimo. Ele dizia que o tempo do liberalismo tinha acabado, quer dizer, `eu estou ao lado dos totalitários´. Claramente", lembrou Octávio Costa.

O articulador da virada

O papel de Oswaldo Aranha na virada política em favor dos aliados foi fundamental. Articulador da Conferência dos Chanceleres, não mediu esforços para convencer Getúlio Vargas sobre a urgência da mudança de posicionamento do Brasil na guerra. "Quando os japoneses atacam Pearl Harbor e os americanos entram na guerra, já não havia muitas dúvidas sobre a posição brasileira", disse Dines. Luiz Aranha Corrêa do Lago comentou que durante o encontro de representantes diplomáticos, Oswaldo Aranha "realmente forçou a mão" porque ainda havia muitas dúvidas dentro do governo sobre o alinhamento.

Dezoito dias após a entrada do Brasil na guerra, navios mercantes brasileiros começam a ser torpedeados por submarinos alemães e italianos. No monumento construído no Rio de Janeiro em memória dos mortos brasileiros na guerra, Dines comentou que, entre 1942 e 1943, 36 embarcações foram destruídas. Mais de mil pessoas, entre civis e militares, morreram. Após o envio de equipamento norte-americano para o reforço da defesa da costa brasileira, os alemães endureceram os ataques e não permitiam mais ações de salvamento.

O objetivo era alcançar o maior número possível de mortes. Um único submarino alemão, em menos de 12 horas, matou mais de 500 brasileiros. Os estudantes tomaram as ruas e a população se mobilizou, pedindo a entrada efetiva do Brasil na guerra. Vargas decide enviar tropas brasileiras para a luta na Itália e transformar a Base Aérea de Natal em ponto de apoio para aviões aliados. Em troca, recebe incentivo para a construção da primeira siderúrgica brasileira, em Volta Redonda (RJ).

Retaliações aos antigos parceiros

Em agosto de 1942, quando o Brasil entrou na guerra, foi proibida a utilização de referências aos países do Eixo em entidades e associações. Dines explicou que o tradicional Hospital Alemão de São Paulo virou Hospital Oswaldo Cruz. "O Sindicato Condor, que operava uma vasta rede de aviação, converteu-se nos Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul e seus aviões Junkers foram trocados pelos DC-3 americanos." Diversos clubes mudaram de nome por todo o país. Dines visitou a sala onde foi decidida a troca de nome do Palestra Itália para Palmeiras. O jornalista contou que a mudança ocorreu três dias antes da final do campeonato daquele ano e o time sagrou-se campeão.

Ângelo Trento, professor da Universidade de Nápoles, explicou que as medidas tomadas pelo Brasil na ocasião eliminaram os canais de propaganda fascista: as escolas, as associações, a imprensa. "Naturalmente, tudo isso deixou os emigrados muito desnorteados. Além disso, porém, houve outro fato importante: o antifascismo imigrado começou a ter uma visibilidade que tinha perdido na década de 1930, mas o fato mais importante da imigração italiana durante a guerra foi que mesmo antes de setembro de 1943, quanto a Itália deixou de ser aliada da Alemanha e por isso deixou de ser inimiga do Brasil, os italianos foram naturalmente reprimidos, perseguidos individualmente e reprimidos também como coletividade, com exceção talvez do Rio Grande do Sul", disse.

Campos de internamento de súditos do Eixo em terras brasileiras foram utilizados para demonstrar, em ações, o novo posicionamento do Brasil no contexto da guerra. A historiadora Priscilla Perazzo explicou que era preciso conter a influência do nazismo e do fascismo no Brasil. Alemães e italianos foram confinados em presídios e hospedarias por todo o Brasil. Dois dos mais emblemáticos funcionaram no Rio de Janeiro: o presídio da Ilha Grande e a Ilha das Flores. Cerca de cinco mil imigrantes foram detidos.

O perigo entre nós

Dines explicou que a guerra forjou uma expressão funesta – "quinta-coluna" – para designar espiões e infiltrados. Agentes secretos "muito bem situados" passavam informações via rádio diretamente para o alto comando em Berlim. As embaixadas alemã e italiana sustentavam muitos jornalistas e alguns jornais. "A tradicional Gazeta de Notícias, que no século anterior publicava as crônicas de Eça de Queiroz, não escondia suas preferências pelas idéias de Hitler com o evidente apoio de círculos oficiais."

O vespertino Meio Dia, fundado em 1939, era financiado pela embaixada alemã. Em Salvador, o Diário de Notícias da Bahia era apoiado pelo "poderoso núcleo integralista local, pelo governo federal e interesses germânicos investindo contra a `conspiração anglo-judaica´". Dines destacou que a agência telegráfica alemã Transocean oferecia gratuitamente material noticioso "impregnado" de doutrinação nazista. "A `quinta-coluna´ até utilizou o cinema ao alugar o cine-teatro Broadway, da Cinelândia, no centro do Rio, para exibir produções alemãs", contou.

O Brasil na guerra

Em 1943, as tropas brasileiras começam a ser preparadas para o combate. O general Octávio Costa, que integrou o Regimento Tiradentes, de São João Del Rei (MG), lembrou que as primeiras noites do treinamento foram terríveis. "Esses jovens saíam às ruas traumatizados, chegavam àqueles bares das margens daquele riozinho que passava por São João Del Rei, se embebedavam e saiam à rua em tropelia de toda ordem. A ponto de a unidade ter que sair, botar uma fração de tropa na rua para caçá-los e voltarem a pau e pedra para o quartel. Esse episódio bem caracteriza o clima dessa mobilização", disse o combatente.

O ex-pracinha Boris Schneiderman, que se alistou voluntariamente, espantou-se com o clima entre os convocados. "Naquela idade, para mim, a participação na FEB foi um desmoronar de muita coisa que eu imaginava, que eu pensava sobre o nosso povo. A guerra foi declarada em 1942 e nós embarcamos em 1944. Eu esperava encontrar, entre os convocados, um clima de ódio ao nazismo, de repulsa por aqueles afundamentos de navios e tudo, e o que eu encontrei foi muito diferente. Acontece que a grande maioria dos convocados não era do Rio ou de São Paulo, era do interior. E para eles a coisa era muito mais distante. Eu estranhei isso muito, porque eu esperava encontrar entre os meus companheiros na guerra aquele ódio ao nazismo, aquela vontade de lutar", relembrou Schneiderman.

Os dois combatentes destacaram que apesar da relutância, durante a viagem os brasileiros mudaram a atitude. "É uma aventura inesquecível essa de um transporte de guerra. Ser transportado sem uma luz sequer durante a escuridão, porque tem sempre a expectativa de um submarino. É uma coisa incomparável, uma lição de vida inenarrável", destacou Octávio Costa. Ao chegar em Nápoles, Schneiderman impressionou-se com o cenário da cidade destruída pela guerra. O racismo nas tropas americanas marcou a memória do ex-pracinha. "Havia, na tripulação americana, alguns negros e mulatos, e eles tinham compartimentos à parte, uma parte completamente isolada do navio, e tinham refeições à parte. E essa discriminação permaneceu, eu a vi, no decorrer de todas as ações militares", lembrou.

Mesmo sem o treinamento adequado para o combate, e enfrentando o rigoroso inverno europeu, os pracinhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB) venceram importantes batalhas, como as de Monte Castelo, Monte Casino e Montese. O cientista social Renato Lessa avaliou que a participação do Brasil na guerra foi significativa. "Nós temos no Brasil essa mania de desconstruir e jogar pedras no passado. Então, a nossa Independência não foi de verdade, a Abolição não foi pra valer, a República de mentirinha. A entrada na guerra teria sido uma `treta´, uma coisa mal ajambrada. Mas eu acho que foi fundamental, foi um passo de inserção do Brasil no mundo, nós estarmos presentes numa crise forte. Claro que houve vantagens estratégicas e materiais, mas, em termos de longo prazo, foi uma opção por integrar o Brasil numa configuração internacional que acabou sendo a configuração vitoriosa", disse.