A audiência pública realizada quarta-feira passada, dia 5, na Comissão de Educação do Senado, lançou algumas luzes sobre o processo de salvamento das empresas brasileiras de comunicação, que está sendo negociado pelas entidades representativas de emissoras de rádio e TV, editoras de jornais e de revistas junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
O presidente do BNDES, Carlos Lessa, comprometeu-se a enviar à comissão um documento contendo os princípios do programa de socorro, cujos pontos mais polêmicos deverão ser a possibilidade de financiamento do capital de giro e o refinanciamento das dívidas das empresas. Lessa e outros porta-vozes do BNDES já repetiram à exaustão que injetar recursos no cofre das empresas para o pagamento de despesas operacionais é prática que está longe dos procedimentos normais do banco de fomento. Lessa quer o respaldo do Senado para evitar que respinguem sobre o Executivo eventuais acusações de favorecimento ao setor, mas também quer que a mídia fique satisfeita com a solução que for possível.
Outro nó da questão é que o modelo que vem sendo estudado pelo BNDES não combina com a estrutura de gestão da grande maioria das empresas. As exigências de transparência e controle que se anunciam dificilmente poderiam ser cumpridas por empresas sob gestão familiar e extremamente sujeitas aos humores e premissas de seus proprietários. Além disso, em alguns setores do governo, especialmente na Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica, rosna uma premissa segundo a qual os atuais proprietários de empresas de mídia não seriam os parceiros de sonho de um projeto de governo petista.
Poder desproporcional
A proposta de um programa de socorro às empresas de mídia está em estudos no governo desde 2003, depois que as entidades do setor chegaram ao primeiro consenso após mais de três anos de debates. Do ponto de vista operacional, já há um projeto esboçado, onde estão claras as três exigências que serão feitas pelo BNDES.
Em primeiro lugar, o BNDES não oferecerá empréstimos diretos e os bancos comerciais que são credores das empresas de comunicação terão de se juntar à operação de refinanciamento, não podendo aproveitar a situação para reaver perdas ou melhorar resultados de operações anteriores – ou seja, terão de oferecer condições correspondentes às do BNDES.
Em segundo lugar, e com grandes possibilidades de produzir editoriais azedos, Lessa decidiu que os créditos devidos a acionistas ou relacionados às empresas terão de ser convertidos em aporte de capital. Portanto, os acionistas não poderão aproveitar o empréstimo do banco para receber créditos contra a empresa e abandonar o barco ou alterar sua posição na organização.
Por último, e também com grande potencial para mexer com o fígado dos donos da imprensa brasileira, a exigência de gestão transparente não deverá ser relaxada pelo BNDES. As empresas terão de publicar balanços trimestrais e submeter suas contas a auditorias independentes, como ponto de partida para um novo modelo de gestão.
Não custa lembrar que outros setores, como o de energia, já se esquivaram de planos de socorro diante de exigência semelhante e não é pouco o dinheiro que mofou nos cofres oficiais à espera de que empresas em situação de resgate cumprissem sua parte em transparência.
Além desses aspectos, que tocam diretamente no que o presidente do BNDES chama de falta de ‘padrões prudenciais mínimos’ – uma forma delicada de dizer que falta credibilidade financeira e de gestão à empresas de mídia –, vão sobrar ainda muitos obstáculos entre a mão que pede e a que concede. O fato de haver, segundo Lessa, uma grande desproporção entre o poder de influência dos empresários de mídia e o valor relativo de suas empresas no contexto econômico, também tem sido um impedimento para a criação de programas dirigidos ao setor.
Oportunidade estratégica
Presente à mesma sessão da Comissão de Educação do Senado, o diretor de redação da revista CartaCapital, Mino Carta, lembrou o que se tem afirmado neste Observatório – que muitas das dívidas assumidas por empresas do setor devem-se ao ‘espírito perdulário e à incompetência’ de seus gestores. Se realmente se estabelecer o primado da transparência, um dos esqueletos que vai transparecer é a continuidade do mesmo espírito, apenas contido por ações pontuais, mas nunca exorcizado das redações e dos conselhos diretivos da mídia.
Já Paulo Marinho, vice-presidente executivo do Jornal do Brasil, repetiu o que tem sido afirmado por Nélson Tanure, proprietário do JB e donatário das operações da Gazeta Mercantil: não é de socorro que a indústria nacional precisa, mas de ‘aquecimento do mercado, taxas de juros factíveis e racionalização da carga tributária’.
A criação de uma comissão composta por Mino Carta e Paulo Marinho para conduzir o que Lessa chama de ‘pacto político-social explícito’ dá uma idéia mais clara das cautelas com que o governo cerca a questão – e dos problemas que os donos da mídia ainda terão que contornar antes de ver a cor do dinheiro público. Carta e Marinho não são propriamente os mediadores desejados pela indústria de mídia.
De qualquer maneira, a segunda rodada pública de debates sobre o plano de socorro deixou para trás alguns pressupostos que animavam os empresários da imprensa nacional e derrubou algumas de suas alegações.
Primeiro, em relação às alegações, depois dos debates do dia 5 passado ninguém vai ficar repetindo que a crise da mídia é circunstancial ou causada por turbulências do mercado: ‘espírito perdulário e incompetência’ são expressões claramente registradas nos anais do Senado.
Segundo, quanto ao pressuposto de que um socorro à mídia seria um tônico para a democracia, basta a lembrança de Carlos Lessa quanto à inconveniência de se entregar recursos públicos a conglomerados de negócio que são mais propriamente definidos como clãs familiares habituados ao exercício de um poder político muito superior à sua real influência no contexto corporativo.
Filtrado o discurso oficial e penteado o texto da mídia, como se dizia no tempo do copidesque, pode-se dizer que a bóia está lançada. O BNDES já está tecnicamente pronto para ajudar uma parte do setor, criando um instrumento para estimular a produção nacional de papel de imprensa, o que poderá reduzir as dificuldades dos jornais quanto à dependência de papel importado. Também já estão alinhavadas algumas fórmulas para a criação de uma linha de crédito específica para a reestruturação financeira, que poderá beneficiar todas as empresas de mídia.
Pode estar próximo, portanto, o primeiro movimento. A menos que alguém se lembre de uma frase de Mino Carta durante a audiência pública de 5/5. Com a clareza que lhe é peculiar, e que lhe tem rendido não poucos desafetos, o veterano jornalista observou que esta é uma oportunidade estratégica para a sociedade brasileira reestruturar a imprensa.
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Jornalista