Não mereceu chamada na primeira página – saiu no lugar habitual, com o destaque de sempre –, mas a matéria do repórter Josias de Souza na Folha de S.Paulo de domingo (19/9, pág. A15) é uma peça clássica de jornalismo investigativo. Uma ‘bomba’ de alto teor: ‘Novo Presidente da FIESP é um ‘sem-indústria’’.
Paulo Skaf, que ganhou as eleições mais disputadas na poderosíssima Federação das Indústrias do Estado de S.Paulo, não é industrial. Fortemente apoiado pelo governo federal, além de ser um empresário sem empresa (na tradição do velho peleguismo patronal dos tempos de Vargas), Skaf deve à Previdência, à Receita Federal e aos antigos funcionários. Sua fonte de renda é o aluguel do maquinário que pertencia à antiga indústria têxtil conforme minucia a matéria.
A revelação é estarrecedora. E não apenas pela esmerada investigação do repórter. Trata-se também de uma implacável radiografia da mais importante organização empresarial brasileira, um dos baluartes da nossa renovação política e econômica.
Mais surpreendente do que a burla sobre o currículo daquele que deveria ser o industrial-modelo é a constatação de que o grosso da imprensa brasileira continua rigorosamente incapaz de investigar qualquer coisa que não venha empacotado como ‘dossiê’ secreto, grampo ou disquete surrupiado.
Esta dependência dos vazamentos retirou de nossos grandes veículos não apenas a sua curiosidade – ferramenta básica para a sua sobrevivência – mas a capacidade de satisfazer a curiosidade dos leitores.
Quando começou a badalada disputa pela presidência da Fiesp com o declarado apoio do governo ao até então desconhecido Paulo Skaf, não ocorreu a ninguém fazer o perfil biográfico desta desconhecida estrela no mundo da indústria. Ninguém poderia prever que da pesquisa surgiria a constatação de que o empresário-modelo era um modelo a não ser imitado. O que se exige de uma imprensa minimamente comprometida com a transparência é a busca de um mínimo de transparência.
Novo em folha
Pode-se entender as razões que levam o nosso patronato midiático a desinteressar-se da exposição dos seus camaradas na área industrial, comercial ou bancária. Mas esse pacto, digamos, corporativo deve estender-se aos jornalistas? Se a mídia confere um status privilegiado ao empresariado tem o direito de investigar a classe política?
A resposta está na matéria da Folha. Não interessa saber se houve discussões prévias no andar de cima antes da publicação da reportagem. Interessa que a matéria foi publicada. Mesmo depois de conhecidos os resultados do pleito na Fiesp, uma semana antes da posse do novo presidente, é importante saber como as coisas se processam atrás dos cortinados dos suntuosos escritórios da Avenida Paulista.
Mais estarrecedor do que este flagrante de corpo inteiro do novo presidente da Fiesp foi o silêncio que se seguiu à sua divulgação – exceto pela carta que publicou no mesmo jornal (Painel do Leitor, pág A3) na terça-feira (21/9). E não apenas nos demais veículos furados pela Folha, mas na própria Folha furadora [veja abaixo as íntegras da carta de Skaf e da matéria que a motivou].
Nove dias depois das revelações de Josias de Souza (véspera da posse do novo presidente da Fiesp), a Folha entrevistou Skaf com toda a solenidade e, também, com toda a sua capacidade de ser inocente (segunda-feira, 27/9, pág. B3). Como se fosse um dos nossos capitães da indústria, padrão inconteste de sucesso ou campeão do desenvolvimento e da luta contra o desemprego, o presidente Paulo Skaf é reapresentado novinho em folha prometendo ir a Brasília todas as semanas.
Ainda bem. Conhecida a sua agenda, não haverá desculpa para os silêncios.
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Carta de Paulo Skaf à Folha
Copyright ‘Painel do Leitor’, Folha de S.Paulo, 21/9/04
‘O artigo publicado por Josias de Souza no domingo passado nesta Folha (‘Novo presidente da Fiesp é um ‘sem-indústria’, Brasil, pág. A15), apesar do tom acusatório, não consegue apontar nenhuma irregularidade ou ilegalidade em meus negócios ou em minha conduta empresarial. Ao contrário, mostra-me como um industrial que enfrenta os mesmos problemas que atingem todos os empresários e que é obrigado a recorrer a parcelamento legal para honrar seus compromissos. Esse parcelamento, pago rigorosamente em dia, tem garantia real: um terreno com valor muitas vezes superior ao total do débito. Não deixei dívida pendente. Tenho, hoje, 49 anos. Aos 18 assumi a responsabilidade de minha indústria e o fiz com êxito: a empresa alugava 500 metros quadrados na zona leste paulistana e, anos depois, passou a ocupar um complexo próprio de 172 mil m2 em Pindamonhangaba (SP).Quando decidi dedicar-me à atividade sindical e à defesa dos interesses do meu setor, mudei o foco de minha atividade empresarial. Tenho orgulho de ter ajudado o setor têxtil a transformar um déficit de US$ 1,2 bilhão em superávit de cerca de US$ 1 bilhão, bem como de ter estimulado a geração de 150 mil empregos, além da valorização da moda brasileira. Isso foi possível graças à articulação de toda a cadeia têxtil brasileira. Ao assumir a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), a entidade contava com menos de cem associados. Deixo-a com mais de 4.000. Sou acionista e vice-presidente de uma das maiores empresas têxteis do país -a Paramount Lansul S.A. Mesmo assim, o colunista da Folha me tacha de ‘sem-indústria’. Sem dúvida, não é essa a opinião dos industriais de São Paulo que me elegeram para a honrosa função de presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo.’ Paulo Skaf, presidente eleito da Fiesp (São Paulo, SP)’
A matéria do repórter
‘Novo presidente da Fiesp é um ‘sem-indústria’’, de Josias de Souza, copyright Folha de S.Paulo, 19/09/04
‘Skaf Indústria Têxtil Ltda., eis o nome da empresa de Paulo Antonio Skaf, o presidente eleito da Fiesp. Tem sede em São Paulo e filial em Pindamonhangaba. Figura nos cadastros da Receita Federal como firma ‘ativa’. No mundo real, foi à breca.
Sob a biografia de sucesso no ramo do sindicalismo patronal, Paulo Skaf esconde um infortúnio que deslustra o currículo do homem de negócios. No próximo dia 27, a Fiesp passará às mãos de um ‘sem-indústria’.
A ficha de inscrição da chapa que triunfou na Fiesp informa que, além de dono da Skaf Indústria, Paulo Skaf é vice-presidente do conselho administrativo da Paramount Lansul S.A., empresa do amigo Fuad Mattar.
‘Eu convidei o Paulo [Skaf] para o conselho há uns seis, oito meses’, conta Fuad Mattar. ‘Temos pelo menos uma reunião por mês. Se ele usou o nome da Paramount, isso me enche de orgulho.’
A julgar pelo conteúdo dos computadores de Brasília, o abrigo no conselho da Paramount foi providencial para Paulo Skaf.
De acordo com os arquivos do Ministério do Trabalho, deu-se no dia 2 de janeiro de 2001 a demissão de Janete Alves dos Santos. Era a última empregada que a Skaf Indústria Têxtil mantinha registrada no cadastro da Rais (Relação Anual de Informações Sociais). Janete recebia R$ 1.577,21 por mês quando foi para o olho da rua.
Os terminais eletrônicos do INSS anotam o nome de outro ‘empregado’, único sobrevivente na folha salarial da companhia. Vem a ser o próprio Paulo Skaf. Em dezembro de 2001, data da última atualização dos dados, amealhava R$ 180 mensais.
Mergulhando mais fundo nos anais do INSS, descobre-se que, ao tempo em que mantinha quadro regular de funcionários, a Skaf têxtil acumulou dívidas com a Previdência. Em abril de 1999, quando o débito somava R$ 918,6 mil, o governo, então sob FHC, decidiu bater à porta dos tribunais.
Em agosto de 2000, a Justiça expediu mandado de penhora dos bens da indústria Skaf. Era tarde. Cinco meses antes, a empresa aderira ao Refis, o programa de parcelamento de débitos fiscais. Além da dívida com o INSS, Paulo Skaf reconheceu um passivo com a Receita. Tudo somado, o total parcelado foi a R$ 1,074 milhão.
Sancionada por FHC em abril de 2000, a lei do Refis abriu uma janela de oportunidades. O pagamento dos tributos em atraso foi atrelado a um percentual do faturamento (1,5% no caso da indústria Skaf). Sem prazo para a quitação.
Entre março e dezembro de 2000, a Skaf têxtil recolheu ao fisco R$ 360 mensais. A partir de janeiro de 2001, passou a pagar R$ 12 por mês.
Adocicado pelo Refis, o passivo da firma de Paulo Skaf foi excluído do rol de pendências sujeitas a ajuizamento. Folheando o processo de cobrança movido pelo INSS (2ª Vara de Execuções Fiscais de São Paulo), o repórter descobriu que o governo tentou levar adiante a execução.
A procuradoria do INSS alegou que, apesar do parcelamento das pendências pretéritas, a indústria Skaf deixara de efetuar o pagamento de débitos correntes de 2001. Mencionaram-se contribuições sociais incidentes sobre o 13º salário dos empregados.
Em resposta, os advogados de Paulo Skaf levaram aos autos um documento que corrobora a atmosfera de ruína que corroeu a empresa. A peça de defesa está datada de 24 de setembro de 2002. Anota à página cinco: ‘Com relação ao 13º salário de 2001, cumpre ressaltar que a empresa não dispõe de funcionários, razão pela qual não houve obrigação de recolher contribuição social’.
Em julho de 2003, já de olho na Fiesp, Paulo Skaf agiu como se desejasse suavizar a imagem de sua indústria. Migrou do Refis para outro programa de parcelamento, baixado sob Lula. Chama-se Paes.
A despeito de ter sido apelidado no Ministério da Fazenda de ‘Mães’, o Paes tem regras menos concessivas que as do Refis. Um exemplo: fixa o prazo de 180 meses para liquidação dos débitos. A primeira parcela amortizada pela Skaf têxtil foi de R$ 2.000.
Súbito, a dívida tributária da empresa minguou. Nos computadores da Receita, caiu da casa do milhão para R$ 398.189,98 (valor de maio de 2004). ‘Aproveitamos créditos decorrentes de processos administrativos e judiciais’, informa Helcio Honda, advogado do presidente eleito da Fiesp.
O diabo é que, por ora, o INSS desconhece a compensação de créditos. Nos arquivos eletrônicos do instituto, que não dialogam com os congêneres da Receita, o débito previdenciário da firma somava na última segunda-feira R$ 977,2 mil.
Nas palavras do advogado Honda, Paulo Skaf é ‘um patriota’. Foi por ‘seriedade’ e não por conveniência eleitoral que abdicou de um programa que o favorecia, o Refis, para ingressar em outro mais draconiano, o Paes. A dívida remanescente, diz ele, ‘será quitada em 143 meses’.
O doutor Honda informa que a indústria de seu cliente começou a definhar na década de 90. Foi dobrada pela concorrência dos têxteis vindos da China.
A Junta Comercial de São Paulo guarda um documento que diz muito sobre o estágio atual dos negócios do novo presidente da Fiesp, eleito sob os auspícios do Palácio do Planalto. Trata-se da ata de fundação, em maio de 1998, da empresa Turn Key Parques Empresariais Ltda.. Tem como sócios Paulo Skaf, Aref Farkouh e Cláudia Farkouh.
A Turn Key dedica-se a alugar o maquinário que jaz nas instalações da indústria Skaf. De industrial, o novo presidente da Fiesp converteu-se em locador de utensílios têxteis. Uma atividade que, segundo o doutor Honda, proporciona lucros ‘pouco expressivos’.’