Em 2009, o incidente na construtora Pacheco Fernandes (para muitos, uma chacina) completou 50 anos. Eis um exemplo de ausência do jornalismo, ou seja, de uma cobertura insatisfatória da imprensa, considerando os critérios de noticiabilidade, os deveres e o papel do profissional do jornalismo.
Mas o que foi esse fato?
Dia 8 de fevereiro de 1959, a Guarda Especial de Brasília (GEB) reprimiu com violência um motim dos trabalhadores no acampamento dos funcionários da construtora Pacheco Fernandes, ocasionando mortes e ferimentos. Isso ocorreu durante a construção de Brasília (governo JK). A maioria das publicações sobre a história de Brasília ignorou totalmente a ocorrência.
Depoimentos dos sobreviventes contam que o conflito foi o ápice da indignação dos candangos quanto às condições de trabalho e à pressão para trabalho ininterrupto. Em 14 meses, Brasília seria inaugurada. Na véspera do carnaval, os candangos esperavam o salário para se divertirem nas cidades vizinhas. Contudo, não teria sido pago. Em 7 de fevereiro, a água do acampamento foi cortada. A coincidência foi interpretada como uma estratégia para mantê-los trabalhando.
Parece tratar-se de uma lenda
No dia 8, dois carpinteiros teriam recebido marmitas em más condições de higiene e começaram uma confusão. Três guardas deram ordem de prisão, porém dezenas de trabalhadores impediram a ação. Mais guardas foram ao acampamento, armados e atirando. O inquérito policial aponta 45 trabalhadores agredidos.
A disparidade entre a versão do inquérito policial e os relatos dos candangos é enorme. A história oficial apresenta um morto e três baleados. Entre os sobreviventes há especulações que vão de 20 a mais de 100 assassinados. O incidente foi publicado na mídia alguns dias depois da ocorrência (em geral, notas) e seu destaque foi insuficiente. Por se tratar de um período de carnaval, muitos veículos da época não imprimiram suas edições nesses dias, mostrando deficiência na estrutura profissional das empresas. A primeira nota foi publicada quatro dias depois do incidente, no jornalÚltima Hora.
Eis um desafio ao jornalismo: cumprir o seu papel mesmo quando não há estrutura profissional e estar presente em localidades onde as condições tecnológicas não são adequadas. Em que medida a ausência do jornalismo contribui para deixar lacunas na historiografia? Não é por acaso que existem hoje várias versões, díspares, parecendo se tratar mais de uma lenda do que de um fato (embora existam evidências concretas da existência do incidente, como, por exemplo, o inquérito policial).
Jornalismo e memória
Como diz Robert E. Park, emA Notícia como Forma de Conhecimento: ‘Lendas e baladas não necessitam de datas ou nomes de pessoas ou lugares para autenticá-las. Elas vivem e sobrevivem em nossas memórias e na memória do público devido o seu interesse humano.’ Se o jornalismo fornece adequadamente datas, nomes de pessoas ou lugares, além de provas documentais, reduz o espaço para surgimento de lendas e distorções.
Em tempos de internet, comunicação ágil, convergência de meios, é difícil imaginar uma chacina passar despercebida. Mas naquela época viajar até Brasília era uma aventura: dois dias de carro saindo do Rio de Janeiro. Brasília estava praticamente ‘ilhada’, sem comunicação com o resto do Brasil. O sistema de telefonia para a população só estaria disponível um ano depois, na inauguração da nova capital.
Quanta falta fez o jornalismo quando e onde não havia jornalismo. Mas quanta falta faz o jornalismo quando e onde, mesmo com toda a estrutura tecnológica atual, não há jornalismo.
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Mestrando em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina