A imprensa e a democracia dos EUA estão num rumo preocupante. Essa é a principal conclusão que pode ser tirada do discurso proferido no sábado (11/9), em Nova York, na convenção nacional da Society of Professional Journalists, pelo experiente jornalista Bill Moyers, produtor de alguns dos mais incisivos documentários de TV americanos e apresentador de um programa na rede pública PBS.
Com 54 anos de carreira, ele pretende se aposentar no fim deste ano. Relembrando sua trajetória, Moyers reafirma o compromisso do jornalista com a informação, mas alerta: ‘O trabalho de dizer a verdade sobre pessoas cuja missão é escondê-la é quase tão complicado quanto tentar esconder a verdade’. Todo seu discurso gira em torno dos grupos que se esforçam para omitir certas verdades da opinião pública e o esforço que os jornalistas devem fazer para trazê-las à tona.
‘Quando meus colegas e eu começamos a pesquisar o assunto de pesticidas e alimentos para um documentário do Frontline, meu produtor Marty Koughan descobriu que a indústria tentava, a portas fechadas, diluir as conclusões de um estudo da Academia Nacional de Ciências sobre os efeitos de resíduos de pesticidas sobre crianças. Antes de terminarmos o documentário, a indústria, de algum modo – ainda não sabemos com certeza como –, roubou uma cópia do nosso rascunho de roteiro e montou uma sofisticada e cara campanha para desacreditar nosso programa antes que fosse ao ar’, conta Moyers. A campanha foi tão pesada que jornais criticaram o filme sem ter tido acesso a ele e gerentes de retransmissoras locais escreveram à PBS antes mesmo de o terem assistido, com cartas preparadas pela própria indústria química.
Pior que isso, uma semana antes de o documentário ser transmitido, a Sociedade Americana de Câncer, que sequer era citada nele, enviou uma ‘crítica’ a suas 3.000 subsidiárias locais afirmando que ele exagerava os efeitos dos pesticidas nos alimentos. Mais tarde descobriu-se que uma empresa de relações públicas que atendia diversas indústrias químicas trabalhava gratuitamente, como forma de ‘caridade’, para a Sociedade Americana de Câncer. A entidade, portanto, em troca do serviço recebido gratuitamente, teria aceitado participar do esforço para desacreditar o filme da PBS. Sua imagem positiva chegou a ser usada por grupos direitistas para pedir o fim da própria emissora pública.
Jornalismo e fundamentalismo
Ainda existem muitos outros segredos guardados pelo governo e pelas corporações que a opinião pública precisa saber para que a sociedade possa se transformar e fazer algo a respeito. Moyers lembra, por exemplo, que o efeito-estufa é um fato para o qual os cientistas alertam desde 1980. Agora, a calota polar ártica está liberando tanta água doce no oceano que a mudança climática que isso pode provocar representa uma ameaça à civilização como um todo.
‘Como nós jornalistas devemos lidar com algo de tamanha enormidade?’ Moyers compara a perplexidade do profissional de imprensa diante desse fato com a dificuldade em aceitar o terrorismo e o extremismo. ‘Uma das maiores mudanças ao longo de minha vida é que o iludido não é mais marginal.’ Com isso, o jornalista se refere ao importante papel que hoje desempenha gente que não hesita em matar crianças numa escola ou se lançar contra um prédio com um avião cheio de passageiros inocentes.
Mas não são só esses que ele cita como equivocados: ‘Como explicamos a possibilidade de que a eleição de novembro pode mobilizar milhões de cidadãos bons e decentes que acreditam no ‘rapture index’ (algo como ‘índice do arrebatamento’)?’ Quando se fala de eleições presidenciais esse fato não é muito citado, mas há cálculos de que até 15% do eleitorado possam ser seguidores dessa crença que tem origem no século 19 e foi fundada por dois pregadores imigrantes que juntaram trechos da Bíblia para fundamentar uma espécie de profecia. Segundo ela, Jesus voltará à Terra depois que Israel se estabelecer como Estado, ocupar todas as ‘terras bíblicas’ ao seu redor e reconstruir o Terceiro Templo onde hoje estão as mesquitas de Al Aqsa e Domo da Rocha, em Jerusalém, sendo, por causa disso, atacado por legiões do anticristo. Isso resultará num embate final no Vale do Armagedon, em que queimarão todos os judeus não-convertidos ao cristianismo. ‘Então o Messias retorna à Terra. O Arrebatamento ocorre uma vez que a grande batalha comece. Os verdadeiros crentes ‘serão levitados para fora de suas roupas e transportados para o céu, onde, sentados próximos à mão direita de Deus, assistirão seus oponentes políticos e religiosos sofrerem pragas (…) durante os anos de sofrimento que se seguirão’. Eu não estou inventando isto’, relata Moyers.
Não por acaso, um best seller do mercado editorial americano é a coleção de 12 livros que conta como se concretizará esta apocalíptica volta do Messias. O jornalista conta que fez reportagem sobre as pessoas que acreditam nesta história – que não são poucas – e que se trata de gente educada e sincera. O problema é que eles apóiam as ações violentas de Israel contra os palestinos e a guerra no Iraque por acreditarem que isso seja o prenúncio do embate final no Vale do Armagedon. Para essas pessoas, que tendem a votar no Partido Republicano, uma guerra contra o Islã é algo bem-vindo no sentido pessoal e espiritual.
Quando George W. Bush pediu a Ariel Sharon que tirasse seus tanques de Jenin, em 2002, mais de 100 mil evangélicos fundamentalistas escreveram para a Casa Branca protestando e o presidente americano não tocou mais no assunto. Na verdade, os EUA passaram a apoiar a expansão dos assentamentos israelenses na Cisjordânia.
‘Este é o tipo de história que ilustra o desafio que os jornalistas enfrentam num mundo guiado por ideologias que se mantêm firmes apesar de contradizerem o que é genericamente aceito como realidade’, analisa Moyers, completando que aqueles que insistem em chamar atenção ao assunto são atacados, difamados ou isolados.
Acesso à informação
Além do avanço do fundamentalismo, o jornalista alerta para o fato de que os americanos estão ficando mais tolerantes com a restrição de acesso à informação pública. O livre acesso a dados do governo sempre causou arrepios na classe política. Moyers lembra que trabalhava como secretário de Imprensa para o presidente Lyndon Johnson quando ele assinou a Lei de Liberdade de Informação. O mandatário, apesar dos elogios feitos à lei durante o ato de assinatura, teve que ser praticamente arrastado para rubricar o documento. Ele odiava a idéia de que jornalistas pudessem fuçar os arquivos oficiais.
Desde então, segundo Moyers, nunca houve um governo americano tão aplicado, eficiente e sistemático em omitir informações do público quanto o que está no poder agora. Entraves ao acesso à informação estão sendo colocados em todos os níveis da administração pública. Segundo o Washington Post, um comitê judicial vetou mais de 600 vezes nos últimos anos informações sobre juízes federais atuando em conflito de interesse com os casos que julgavam.
Mesmo localmente, a situação tem se agravado. Em Notasulga, no Alabama, os registros públicos podem ser consultados somente durante uma hora por semana e, ainda assim, mediante preenchimento de justificativa. ‘O sigilo é contagioso, escandaloso e tóxico’, conclui Moyers. ‘Este ‘zelo pelo confidencial’ de que falo contribui para uma vitória dos terroristas. Se conseguiram encher nossa psique de medo – como se a imaginação de cada um de nós fosse o Afeganistão e eles fossem o Talibã – eles podem nos privar da confiança necessária para que uma sociedade livre funcione’.
Mercado concentrado
O jornalismo, além do desafio de questionar um governo fechado apoiado por uma população cada vez mais tolerante com sua falta abertura, tem ainda que enfrentar o problema da concentração de mercado, que em nada contribui para sua melhora. As fusões de empresas de mídia não acontecem para que seu produto, a informação, dê um salto de qualidade. É o número de clientes, o faturamento e o preço das ações que devem dar um salto. Moyers confessa ter ficado atônito quando a imprensa saudou de forma acrítica a maior fusão de companhias de todos os tempos – Time Warner com AOL.
Para dar sua contribuição à margem de lucro das megacorporações, o jornalismo abandona os assuntos que contribuem para a construção de uma sociedade livre. Pesquisas mostram que as matérias de TV sobre a administração pública estão cedendo cada vez mais espaço a notícias sobre crime e celebridades. Um estudo da Consumer Federation of America mostra que dois terços dos mercados locais de jornais são dominados por monopólios. Diários pequenos são vendidos e revendidos duas, três vezes ao ano. Não demorará para que o mercado de jornais americano se reduza a um punhado de conglomerados gigantescos.
O enxugamento dos quadros de funcionários dos veículos de comunicação é uma grave conseqüência do processo de consolidação. Segundo o Project for Excellence in Journalism, as redações americanas perderam 2.200 profissionais desde 1990. Na pequena Cumberland, no estado de Maryland, o repórter policial do jornal local acumulou tantas funções que já não tem tempo para ir à delegacia. Para resolver esse problema, a direção do diário teve a idéia de instalar um aparelho de fax no distrito policial, para que os próprios guardas pudessem enviar à redação as histórias que julgassem interessantes.
‘‘Algum caso de brutalidade policial hoje, delegado?’‘Não. Se houver algum, mandaremos um fax a respeito para vocês’’, ironiza Moyers, criando um diálogo fictício. Ele destaca ainda que setores importantes do governo federal não têm mais cobertura permanente.
Ao apoiar a consolidação do mercado de mídia, não se refletiu como seria uma sociedade com um governo fechado e apoiado por enormes companhias que não têm mais compromisso com o interesse público, senão com o lucro. Ninguém contou com o fato de que surgiria uma ampla imprensa quase-oficial, que comumente escolhe os assuntos do dia pela pauta do Comitê Nacional Republicano e que se empenha em desacreditar qualquer um que discorde de fazer propaganda do governo.
Uma possibilidade de romper o monopólio de informação está na internet. Moyers compara os blogueiros aos pioneiros do jornalismo americano, que foram responsáveis pelo surgimento de centenas de panfletos na primeira metade do século 19. ‘A internet pode, de fato, nos engajar numa nova conversação democrática. Mas, mesmo que o faça, não estaremos, de forma alguma, livres de debater o que significa, no que concerne à ética, ser um jornalista profissional.’
O veterano documentarista conta que ficou assustado com a entrevista de um repórter do Baltimore Sun, David Simon, a uma revista alternativa. Ele ganhou notoriedade após lançar um livro em que relata o que viveu durante o ano em que cobriu a divisão de homicídios da polícia de sua cidade. Simon comenta na entrevista que tem ficado cada vez mais descrente ‘da capacidade do jornalismo diário de causar alguma mudança significativa’ e que ‘uma das coisas tristes do jornalismo contemporâneo é que ele, na verdade, importa muito pouco’.
Relembrando casos de jornalistas assassinados recentemente ao redor do mundo, Moyers conclui que o jornalismo ainda importa muito, sim. Por que a imprensa independente cubana foi dizimada pelo governo no ano passado? ‘Porque Fidel Castro sabe que o jornalismo importa. O regime totalitário do Turcomenistão acredita que o jornalismo importa – tanto que todos os jornais, rádios e emissoras de TV foram colocadas sob estrito controle do Estado.’
‘Por termos tanta facilidade aqui na América, tendemos a pegar leve com ela – tão leve que [David] Simon pode estar certo; comparado ao entretenimento e à propaganda, talvez o jornalismo não importe. Mas eu chego ao fim de minha longa jornada acreditando com mais força que a qualidade do jornalismo e a qualidade da democracia estão inextricavelmente unidos’, conclui Bill Moyers.