Friday, 29 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Derrotado pela História

Não veio nenhum título dizendo ‘O Muro caiu’ quando a notícia chegou à redação do Estado na tarde de 9 de novembro de 1989. As agências – na época não existia a internet tal como a conhecemos hoje, nem telefone celular – falavam em ‘suspensão das restrições de viagens’ para os alemães orientais. Mas o significado era óbvio: para que um muro, se os alemães agora podiam ir para onde quisessem?

A Berlim que eu encontrei no dia seguinte à tarde, descendo de um avião de companhia americana no aeroporto Tegel (então só aviões da França, Estados Unidos e Grã-Bretanha podiam voar para lá), no lado ocidental, nada tinha a ver com a cidade que eu visitara tantas vezes enquanto correspondente na Alemanha, de 1975 a 1984. Saíra da modorra confortável (subsídios garantiam a contracultura) de ilha capitalista no mar comunista para um Estado de efervescência contagiante. Os alemães contavam o que estava acontecendo como se precisassem eles mesmos falar para acreditar.

Ajudado por um taxista que desligou o taxímetro passei a recolher alemães orientais junto ao Muro e lhes oferecia carona para visitar algum parente no lado ocidental, até então proibido. Ouvia um relato, registrava um reencontro, e voltava para o Muro, em busca de outro alemão oriental. Foi a madrugada inteira assim, interrompida apenas para assistir a um comício de políticos de vários partidos, que dividiam o mesmo palanque e a mesma surpresa (hoje sabe-se que o governo de Bonn havia sido avisado que algo ocorreria no dia 10, mas não deu grande importância).

Significado único

Fazia um frio que ninguém sentia, existia uma entusiasmada solidariedade entre gente que não se conhecia e uma empolgação generalizada que levava pedestres a saudar como heróis os Trabis, os carrinhos malcheirosos do lado oriental. Eu mesmo me deixei contagiar pelo sentimento de ‘não consigo acreditar’. Tinha visto o Muro muitas vezes antes – a primeira, por sinal, como estudante e turista. O Muro era uma inestimável aula de política. Se o Muro era virado para dentro, contra a própria população, como a propaganda política dos regimes comunistas podia dizer que era uma proteção contra fascistas?

Na primeira vez que fora correspondente do Estado na então Alemanha Ocidental, de 1975 a 1978, tinha sido citado uma vez num editorial do próprio jornal para o qual trabalhava como o ‘jovem correspondente que teme chamar o Muro pelo nome que ele merece, Muro da Vergonha’. O texto era de um editorialista refugiado da revolta húngara de 1956 – portanto alguém que sabia bem mais do que eu sobre os regimes impostos pelos soviéticos aos países que ocuparam.

Eu precisaria ainda viver de perto a revolta trabalhista na Polônia a partir de 1979, que cobri para o Jornal do Brasil, para tratar aquilo tudo com o nome que merecia (e parar de brigar com notícia, como dizia o saudoso colega espanhol Pepe Comas, correspondente do jornal El País): vergonhoso fracasso.

Era claro para todos nós, jornalistas que participávamos daquela cobertura, que a queda do Muro não iniciava um processo, mas, sim, tornava estrondosamente evidente a demolição de um sistema de ideias esgotado, corrupto e apodrecido. Derrotado pela História. Mesmo assim, era impossível negar seu significado único. Política e história andam de mãos dadas a símbolos e aquela barreira gigantesca sucumbindo à vontade de milhões de pessoas era a expressão perfeita do triunfo de direitos humanos.

Manchete extemporânea

Para os veteranos da cobertura do Bloco – e em 1989 eu era um deles – os alemães orientais nunca foram dos mais simpáticos. Eles não tinham figuras dissidentes de expressão, charme, vigor intelectual ou mesmo cinismo e humor, como acontecia na Checoslováquia, Hungria e, principalmente, Polônia. E os alemães ocidentais já não se importavam tanto com os ‘irmãos’ do lado oriental.

Na verdade – e isso era pauta recorrente para os correspondentes em Bonn –, os ocidentais estavam perfeitamente acomodados à vida riquíssima de gigante econômico e anão político no cenário internacional. Até serem atropelados pelos acontecimentos da mesma forma que nós, jornalistas.

Lembro-me com muita força ainda de uma cena no meu café favorito em Berlim, o Café am Literaturhaus, na Fasanenstrasse (agora meio decadente, com o ressurgimento da Berlim central). Eu devorava os jornais da manhã pensando no que escreveria de noite e perto da minha mesa havia outra com duas alemãs na melhor fase dos 30 e tantos de idade – elegantes, bem vestidas, tomando o café latte que aprenderam a apreciar na Itália. Foi quando uma família de alemães orientais, empurrando um enorme carrinho de bebê, tratava de negociar à porta do elegante café. ‘Das ist das ende’, disse uma para a outra – ‘Isto é o fim’.

E lembro-me também quando voltei para o Brasil, depois da cobertura do Muro, de encontrar meu país engalfinhado no segundo turno da eleição presidencial, Lula contra Collor, hoje tão amigos. Não tinha internet e eu, curioso para ver como tinham saído os jornais brasileiros no dia 10 de novembro, a manhã após a queda do Muro, levei uma lição de como a perspectiva de cada um atrapalha ou ajuda a entender acontecimentos. ‘Silvio Santos não é candidato’, tinha sido manchete mais destacada que a do Muro.

Ninguém precisa se envergonhar. Naquela mesma manhã a manchete principal do jornal Pravda, em Moscou, tinha sido ‘Viva o dia da polícia soviética’.

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Trecho de reportagem de William Waack publicada pelo Estado em 10/11/1989

(…) Por incrível que pareça, foi o Muro que levou, poucos anos depois, à reaproximação das duas Alemanhas, arquitetada por Willy Brandt. ‘Ele não foi derrubado, mas está cheio de buracos’, comentava o veterano chefe de governo. Em silêncio, a liderança da Alemanha Oriental removeu nos últimos dez anos a ordem de atirar para matar, as minas antipessoa e os cães ferozes.

A abertura da fronteira entre as duas Alemanhas de certa maneira recoloca ambos os países na mesma situação de 1945, quando a fronteira era apenas uma linha provisória aguardando uma definição dos vencedores da 2.ª Guerra. A diferença é que, hoje, a divisão do mundo em duas partes parece bastante superada e as duas Alemanhas têm outra consciência: a de que dificilmente alguém as segura.

Em fevereiro de 1945, os (então) três grandes – União Soviética, Estados Unidos e Grã-Bretanha – encontraram-se em Ialta (Criméia) para decidir o futuro do mundo. Dentro de poucos dias, Bush e Gorbachev vão conversar em um navio de guerra no Mar Mediterrâneo, próximo a Malta. Estarão sepultando 45 anos de História.’ (…)

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Jornalista, âncora do Jornal da Globo, foi correspondente do Estado na Alemanha, editor de Internacional e repórter especial