Como diriam os comentaristas de futebol d’antanho: não adianta chorar que a neguinha tá lá dentro. Ziraldo, desenhista e gênio da raça, até hoje não se conforma e fica danado da vida com a constatação de que imagem é mídia. Caiu na real mais uma vez ao perceber que o logotipo do Bradesco introjetou-se na memória visual brasileira ‘a ponto de nos fazer acreditar que qualquer imagem, por mais boboca que seja, se exibida à exaustão, cumpre sua função’. Com todo o respeito e admiração pelo Ziraldo e por tudo o que fez pelo imaginário brasileiro (sou da geração Pererê, e com muito orgulho), é forçoso reconhecer que embora a logo do Bradesco não tenha saído da prancheta de nenhum designer tupiniquim, ela é apenas genial.
E genial não pelo que significa mas pelo que passou a significar, por força do uso. A abstração visual daquelas duas torres debaixo de umas nuvens (ou seja-lá-o-que-for aquilo), sobre um fundo vermelho-sangue é um show. E quem disse que imagens-ícone precisam obrigatoriamente fazer remissão à realidade? Fosse assim, como o próprio Ziraldo reconhece, e jamais teríamos aceitado a cruz vermelha como símbolo de saúde. (Aliás, a própria cruz é um símbolo de tortura, só que esquecemos disso. É bom lembrar que o crucifixo, que as famílias cristãs de orgulham de exibir em suas salas e que ornamenta até mesmo o plenário do Congresso Nacional, é a representação de uma cena de tortura a um preso político chamado Jesus. Mas, com o tempo, em vez de ícone de revolta transmutou-se em símbolo de devoção).
Ponto. Parágrafo.
‘Bush e seus Rumsfelds’, o conjunto musical que vem animando nossos salões com um show recheado de efeitos especiais, começou finalmente a desafinar. E tudo graças à força da imagem. Alguém já escreveu aí que a Guerra do Vietnã começou a terminar quando o mundo – e sobretudo o povo norte-americano – deparou-se com a imagem daquela menina de My Lai, o corpo ardendo de napalm, correndo nua por uma estrada próxima a Hanói, enquanto o mundo explodia em torno.
O nome daquilo é re-a-li-da-de. Pois é anotar para cobrar depois: as cenas das tortura aos presos de Abu Ghraib e Camp Bucca, divulgadas pela TV norte-americana, são o My Lai da ocupação do Iraque. A partir dali a invasão começou a dar pra trás. Se todos os apelos internacionais feitos antes, durante e depois não foram suficientes para demover Bush e sua gang – nem mesmo a comprovação da inexistência das tais armas de destruição em massa – um punhado de fotos está sendo capaz de virar o jogo. O fiel cão-de-guarda Rumsfeld foi ao Congresso reconhecer que sabia das torturas a presos políticos iraquianos. Só por isso já devia estar no olho da rua, respondendo a um processo brabo. Mas justificou-se afirmando candidamente que não se deu conta da seriedade das alegações até ver as fotos vazadas para a imprensa.
Quem se anima?
A justiça militar, segundo ele, é obrigada a lidar com 18 mil investigações criminais por ano. Uma tortura a mais ou a menos passaria despercebida, não é mesmo? Ou seja: se não fossem as fotos – a força mobilizadora e revolucionária da imagem – e tudo ficaria como dantes no quartel de Janis Karpinski, a supervisora das prisões americanas no Iraque. Da mesma forma, uma coisa é uma família norte-americana saber que o filho morreu em combate contra forças iraquianas; outra, bem diferente, é ver a foto do filho morto correndo o mundo. O nome disso é re-a-li-da-de. Assim como a foto de uma fila de caixões cobertos com bandeiras americanas. Pra completar, a inversão dos papéis: jovens soldados norte-americanos (até então os mocinhos da história) humilhando, torturando e efetuando maus-tratos contra presos iraquianos (ou seja, agindo como bandidos). Tudo ao som de No sleep till Brooklyn, dos Beastie Boys, que ninguém é de ferro.
A opinião pública norte-americana, acostumada a se olhar no espelho e ver um xerife intocável e invencível, começou a cair na real ao se deparar com as imagens dos aviões de bin Laden mergulhando nas torres gêmeas. Ali consumou-se o primeiro abaixar de cabeça, o primeiro reconhecimento das rachaduras na invencibilidade do império. Ainda assim, por força do hábito, a opinião pública apoiou a chacina do Afeganistão, eis que seus mocinhos ainda estavam no lugar que sempre ocuparam. Da mesma forma, quando o Big Father apontou em direção ao Iraque e afirmou que lá residia o Mal, mais uma vez a opinião pública sucumbiu à imagem do Herói Salvador, e apoiou a campanha. Enquanto a guerra se processou dentro dos limites controlados das imagens do conflito, tudo bem. Mesmo quando a ocupação revelou-se um quebra-cabeças extremamente complicado, com marines saltando aos pedaços pela força das bombas dos mártires de Alá, ainda assim, o apoio se manteve. Mas agora, que os boys revelam sua face de meninos maus, a opinião pública percebe que ‘Bush e seus Rumsfelds’ fazem muito barulho ao dar combate aos infiéis, mas não entendem nada de música e muito menos de harmonia. Aí as coisas finalmente começam a se alterar.
Tudo por causa de uma fotos cujo conteúdo devastador só nos prova e comprova mais uma vez que, no império do visual, imagem é mídia, sim, fato que até Rumsfeld teve de reconhecer publicamente. Imagem que nem precisa ser ‘repetida à exaustão’, como defende Ziraldo, referindo-se a imagens sem referencial na realidade. Só uma vezinha, no caso daquelas, e já basta (como aconteceu com a da menina nua de My Lai). Quando estas imagens sujas batem no imaginário do planeta, têm o mesmo efeito do famoso grito das crianças: ‘Mamãe, acabei!’. Resta agora saber quem vai pegar um pedaço de papel e ir até Bagdá, limpar a bunda deles.
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Jornalista, pesquisador, professor da UnB, documentarista, autor de A noite das reformas, O salto sem trapézio, Vermelho, um pessoal garantido, Caprichoso: a Terra é azul e Grande Enciclopédia Internacional de Piauiês. Este artigo é parte do projeto acadêmico Telejornalismo em Close (http://caid.sites.uol.com.br), coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para paulojosecunha@uol.com.br