Meu artigo publicado neste Observatório sob o título de ‘O mantra da desproporcionalidade‘ (nº 519, de 6/01/2009) havia sido comentado por 24 leitores até a manhã de segunda-feira (12/01). Desses, oito o aprovaram e 16 o censuraram, com mais ou menos veemência. Quero tecer aqui comentários sobre a desaprovação. Separei os que estão mais próximos de argumentos daquilo que não passa de agressão irada.
Fui acusado de ser conivente com o massacre de inocentes, porque insensível aos mortos palestinos, e de escudar-me na liberdade de imprensa para dizer tais barbaridades. Houve um cálculo, que serviu de apoio a uma revoltada manifestação: eu estaria avalizando a conta segundo a qual há um palestino morto para cada 1.400 quilos de explosivos lançados sobre Gaza; estaria ainda ignorando o trágico fato de que até hoje (escrevo na segunda-feira, dia 12), dos mortos, 257 são crianças. Mais, de desconsiderar a trivialidade neurológica de que a inteligência é uma função de sinapses e não do número de neurônios – esta crítica aparentemente, destina-se a desnudar minha pretensiosa e (alegadamente) incorreta correlação entre a faculdade intelectiva humana e a existência, minimamente, de dois neurônios e meio no cérebro. Nessa linha, também sou alvo de contrariedade por tentar justificar a desproporção existente entre o número de mortos palestinos (mais de 800, em 14 dias) e israelenses (14, em oito anos) e, por decorrência, fazer a pregação do massacre. Sou criticado por ter usado a palavra ‘cirúrgico’ aos ataques feitos por Israel. O uso do vocábulo somente comprovaria minha adesão à carnificina de civis palestinos.
‘Assassinar a verdade’
Ora, perguntam, como poderia eu falar em custo baixíssimo de vidas? Sou também criticado pelo inapropriado emprego do termo guerra, que somente seria aplicável a um conflito entre nações (não constituindo uma o Hamas). No mesmo corretivo pretendido, o leitor lembra este autor que as fábricas de armas pertencem aos judeus americanos e eles precisam escoar sua produção. Ora, demonstra-se assim que o ataque de Israel não teria (condicional aqui) ‘nenhuma justificação plausível’. Há um leitor, parece-me moderado, que se insurge contra qualquer confronto bélico. Todos são ilógicos, imorais. ‘Apenas isto’, conclui.
Um comentário, extraído de uma consciência horrorizada, acusa-me: o soberbo filósofo, como sou designado, está excitado com o número de mortos palestinos. Outro mais: esqueço-me de que as terras palestinas foram griladas e roubadas por colonos judeus. Meu texto, assim, estaria ‘cheio de informação unilateral e retórica’. Meu objetivo: justificar a existência do Estado judeu. Prossegue o mesmo leitor: ‘um estado legítimo não se faz por imposição à força, mas sim com identidade cultural e com terra a que se baseia a população’. E mais: ‘Não é isso que acontece com Israel, um Estado artificial, construído pela sociedade ocidental, invasor e extremamente violento.’
Sou acusado de assassinar a verdade – a primeira vítima de todas as guerras –, ao falar que o Hamas possui um pequeno exército, com armamento etc. Não pode ser, infere o leitor: ou teríamos tanques destruídos, aviões abatidos e um número significativo de vítimas entre os israelenses. Vale lembrar, segundo outro leitor: Israel financiou o Hamas ‘em sua origem, para combater o Fatah’.
A causa central
Resumi os argumentos arremessados contra meu artigo. Procurei excluir apenas o rosnar abertamente anti-semita. Penso, quanto aos pretensos argumentos, poder refutar todos. Inicio pelo último. Israel jamais financiou o Hamas, que surgiu em 1987. Desafio o leitor a aportar alguma fonte ou evidência do que afirma. Antecipo-me, no entanto. Essa é uma mistificação apregoada por setores da mídia irresponsável e ideologicamente enviesada. Também não é verdade que os EUA financiaram Bin Laden, outra mentira repetida mil vezes e que se tornou verdade.
Em meu texto não há sequer insinuada, quanto mais explícita, a conivência com a morte de civis. Eu apenas registro que, no tipo de guerra que está sendo travada – em território urbano, muito densamente povoado (novamente a hipérbole intencional) vítimas civis são inevitáveis. E Israel as minimiza o quanto pode. Foi o que escrevi. Qual a alternativa israelense? Não travar a guerra e continuar suportando os ataques do Hamas contra seus habitantes, via mísseis Grad e Kassam? Que país faria isso? O Brasil? A Rússia? A guerra se impôs no território (ênfase aqui) de onde partem os ataques. Lembro que Gaza tem a metade do tamanho de Porto Alegre, aproximadamente. E lá estão 20 mil milicianos do Hamas, da Jihad Islâmica e outros grupelhos terroristas que atacam Israel sem seguirem regra alguma.
A questão a ser respondida não diz respeito à legitimidade da guerra (em todos os sentidos, é legítima, porque defensiva). O problema pertinente está ligado às causas da guerra. E que causas são essas? Há mais do que uma, mas a central é a seguinte: o Hamas é uma organização terrorista que prega e pratica sua doutrina definidora, a saber, a extinção (leia-se erradicação) por meio da jihad, do Estado judeu. Essa organização usurpou o controle policial e militar legítimo da Autoridade Nacional Palestina (AP) na Faixa de Gaza, depois de uma curta guerra civil ocorrida em 2007.
O significado de guerra
Sei que o Hamas venceu as eleições parlamentares em todos os territórios palestinos em 2006. Mas depois de vencê-las, ele usurpou as instituições da AP à força, impondo aos palestinos sua Carta de 1988, que contraria a essência dos Acordos de Oslo e do Tratado de reconhecimento recíproco assinado entre o Estado judeu e a AP (1993). O Hamas, de Gaza, passou a praticar a jihad contra Israel com o apoio do Irã. Não tenho dúvidas de que alguns de meus críticos no OI, fossem eles palestinos, estariam perfilados na trincheira do Hamas. Contra interpretações delirantes da realidade, não há defesa racional. Mas outros estariam na trincheira do Fatah, lutando contra o regime de terror imposto em Gaza desde junho de 2007 contra os próprios palestinos. O Hamas não sabe governar de outro modo. Ou você se submete à sua doutrina teocrática ou é inimigo (não adversário, inimigo mesmo) dela.
Estou ciente de que a faculdade intelectiva é uma função sináptica (não de conexões sinápticas, porque sinapses, por definição, são conexões) dos neurônios. Mas se não houver neurônios, não há sinapses. E um ser humano tem cerca de 100 bilhões de neurônios. Ergo, posso sim, a título de constatação sobre a desinteligência de muitos, inclusive a de meus críticos no OI, afirmar que bastam dois neurônios e meio para que se entenda o que ocorre hoje em Gaza. Quem possui mais de dois (é uma figura de linguagem, entenderam?) é refratário à racionalidade porque quer.
Estou convicto, sim, de que os ataques de Israel estão sendo cirúrgicos. Se não fossem – ou, por outra, fossem eles indiscriminados – haveria, sim, uma carnificina. Não centenas de mortos. Mas muitos, muitos milhares. E há de se acentuar. Das centenas de mortes, a grande maioria é constituída de milicianos do Hamas e de outros grupos armados em Gaza. São alvos militares de Israel, baixas de guerra para quem os apóia. Mas não são vítimas civis.
Não emprego inadvertidamente o termo ‘guerra’ para caracterizar o confronto entre o Hamas e Israel. Guerra significa originalmente confusão (wirro, em latim), mas tradicionalmente é sinônimo de conflito armado, que pode se dar entre nações ou entre uma nação e uma organização terrorista ou secessionista ou, ainda, uma guerra civil (interna) como ocorreu nos EUA e hoje ocorre na Somália e no Sri Lanka. A Colômbia mantém uma guerra contra as Farc, a Turquia, contra o PKK, a Espanha, contra o ETA, os EUA, contra os talibans e a al-Qaida, e Israel contra o Hamas. É nesse sentido que também se fala, aqui no Brasil (é no Brasil mesmo!), em guerra contra o narcotráfico, por exemplo. Meu leitor-crítico deve consultar um dicionário.
Estado ‘artificial’ é caricato
E as fábricas de armas, de propriedade dos judeus americanos (ênfase aqui)? Respondo: não são apenas as fábricas de armas. São também os bancos, as corporações de petróleo, a mídia, o governo de Washington, a maçonaria, os regimes árabes anti-iranianos, a Fifa. Cheira a antissemitismo (é o dígrafo agora sem hífen, da reforma ortográfica)? O problema aqui não é do meu leitor-crítico. O leitor é um delirante. O problema é do moderador do OI, que deveria fixar: fabulações antissemitas não entram no site. Registro o ‘argumento’ apenas por isto.
Quanto à imoralidade absoluta dos confrontos bélicos, a sua falta de lógica? Primeiro: não, há uma lógica dos conflitos armados. É só consultar a história da civilização. Não de uma, mas de todas as civilizações. Segundo: há guerras morais, contra o mal absoluto (já que o leitor é inflexível na sua moralidade), por exemplo. E qual é o mal absoluto? O governo atual do Sudão, os totalitarismos hitlerista, stalinista e maoísta de antanho. O Hamas, o Hezbollah e o Irã (de hoje), que arma e financia essas organizações e ainda persegue uma bomba atômica. Alguém dirá: ah, mas Israel tem a bomba atômica! Certo. Mas, até onde sei, os israelenses jamais propugnaram (quanto mais agiram) pela extinção de uma nação. O mal absoluto é genocida. E, contra genocidas, é impostivo pegar em armas. Já provei, em meu artigo anterior, que Israel não comete nem genocídio, nem massacre, nem carnificina, nem qualquer coisa parecida com isto. Israel luta uma guerra justa contra um inimigo que quer destruí-lo. Israel é militarmente forte? Azar do Hamas.
Para finalizar: meu artigo não pretendeu justificar a existência do Estado judeu. Não preciso disso. Nem Israel. Estamos falando aqui de um Estado soberano há 60 anos. Lá vivem seis milhões de judeus (homens, mulheres, idosos e crianças, de vários matizes ideológicos) e pouco mais de um milhão de árabes. Dizer a um judeu israelense que ele está vivendo num Estado artificial é caricato. Se necessário, ele coloca em risco a vida para defender sua família, sua casa, seu Estado (que garante tudo isso).
A invenção do Brasil
O que é um Estado artificial? Alguém morreria por um? Meu leitor-crítico morreria? Sei que todos os israelenses possuem passaportes e podem deixar aquele país quando bem entendem. Vivi em Israel por quatro anos e meu filho mais velho, que lá nasceu, hoje lá vive. A imensa maioria dos israelenses não deixa Israel. Fica lá, apesar do Hamas, do Hezbollah, do Irã e, mais para trás, de todo mundo árabe, que tentou – e não conseguiu – destruir o Estado artificial em três guerras (1948, 1967 e 1973). São fatos.
Meu leitor-crítico não gosta desses fatos. Por quê? Porque não digere a idéia de que judeus possam ter um Estado. E esse é um problema, para ser gentil, ideológico. Não é um problema histórico. Não discuti, em meu artigo, ideologia. Detectei a conexão de imprecisões, omissões e comparações despropositadas com respeito ao atual conflito. Não gosto de ideologia. Tenho, é certo, minhas crenças e são todas morais. Gosto de teoria e de análise. Ideologia fica para meu leitor-crítico.
A propósito, meu leitor-crítico. Informe-se, a respeito de artificialismo, de como foram criados a Arábia Saudita, o Iraque, o Kuwait e a Jordânia. Ou o Brasil. Os portugueses e castelhanos traçaram, pelo Tratado de Tordesilhas (1494), uma linha longitudinal imaginária que demarcava, como portuguesas, as terras descobertas e a descobrir, localizadas a leste da linha, num raio de 370 léguas de Cabo Verde. A Espanha ficava com as terras a oeste da linha. Legal. Inventaram o Brasil depois (o nome vem de pau-brasil, i.e., pau com cor de brasa), que os portugueses adoravam e tinha muita saída no mercado da época.
Perguntaram aos índios se eles concordavam? Não. Nem havia um Estado nacional indígena aqui. E índio não era problema. Os portugueses foram ocupando, ocupando, houve algumas guerrinhas com franceses e holandeses, mas no fim tudo ficou português, até 1822. Na linha do tempo, o sionismo é de 1897, ou seja, ele é um movimento nacional que irrompe apenas 75 anos depois que o Brasil se tornou independente de Portugal. O Brasil pode e o sionismo não pode?
Convém estudar algo sobre a antiga Palestina. Sempre na linha do tempo, a Palestina integrava o sultanato mameluco (de 1250 a 1517, sede em Damasco); depois passou para o sultanato turco otomano (com pequenas interrupções egípcias e napoleônicas), até 1917. Após a Primeira Guerra, passou para a Inglaterra, que ficou lá até 1947, quando a ONU promulgou a famosa partilha: um Estado árabe e outro judeu. Os judeus toparam e não haviam grilado nada. Eles compraram terras, ao longo de cem anos, de proprietários árabes que nem residiam na Palestina. De qualquer modo, os árabes de lá não tinham país nenhum. Quando puderam criar um, não aceitaram a partilha e o resto meu leitor-crítico deve conhecer (espero). Simples? Talvez nem tanto. Mais simples é explicar a invenção do Brasil. Lembram do Tratado de Tordesilhas?
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Jornalista e doutor em Filosofia, Porto Alegre, RS