No final de 2008 e nos primórdios deste ano o mundo inteiro assiste, passiva e comovidamente, ao massacre israelense na Faixa de Gaza. Independentemente das motivações político-eleitoreiras do conflito, o massacre de crianças, visivelmente indefesas, mostra o despreparo e a ineficiência bélica para resolver qualquer tipo de conflito.
Por falar em eficiência bélica, uma das indústrias mais exitosas das últimas décadas – e que não foi sequer afetada pela tão propalada crise econômica mundial – é a indústria das armas. Nunca se fabricou tantos equipamentos letais, desde armas individuais e caseiras, até grandes equipamentos de artilharia terrestre, aérea e naval.
Impulsionados em boa medida pelo ‘senhor da guerra’, o presidente George W. Bush, que não poupou esforços nos anos de seu (des)governo para promover e motivar guerras em várias partes do globo, essa indústria, como polvo de vários tentáculos, vem se especializando cada vez mais e oferece todo tipo de armamento para todo tipo de demandante e quaisquer situações.
Líder num ranking indesejável
No Brasil, país que não está em guerra (sob o ponto de vista semântico) essa indústria cresce assustadoramente. E no seu calcanhar aumenta, não menos perigosamente, a indústria da segurança privada. Estima-se que cerca de 10% do PIB brasileiro é empenhado em segurança. E quanto mais ineficiente é a segurança pública, mais sofisticada e cara (e para muitos, indispensável) é a segurança privada.
Os horrores das guerras em outros países parecem ofuscar a carnificina humana que dizima milhões de vidas no Brasil a cada ano. Parece algo proposital como a barbaridade alheia, noticiada em doses cavalares pela mídia, serve para anestesiar o pouco que resta da nossa sensibilidade em relação às mortes em nosso país.
Somente numa cidade brasileira, Salvador, nos cinco primeiros dias deste ano 50 pessoas foram assassinadas, o que dá uma média de dez mortes violentas por dia, o dobro do registrado no mesmo período de 2008. Esta informação freqüentou alguns sites de notícia, mas não foi, sequer, objeto de debate sobre as causas da mortandade em nossas cidades.
Em um dos rankings mais indesejáveis, o Brasil está muito, mas muito à frente da Itália, por exemplo, e é um dos líderes mundiais. Enquanto a taxa de homicídios por 100 mil habitantes no Brasil chega a 25,2, na Itália o índice é ínfimo, de 1,1. No Brasil, com os dados do último ano disponível (2005), foram registradas 47.578 mortes; na Itália, os dados de 2003 indicavam apenas 648 mortes (73 vezes menos). O Brasil ocupa o sexto posto entre 83 países analisados.
Não seria uma excelente pauta?
Quando se trata apenas de homicídios entre jovens, o Brasil avança no ranking e ocupa a quinta posição, com uma taxa de 51,6 por 100 mil habitantes. No ano em que os dados foram computados – 2005 – ocorreram 17.994 homicídios juvenis contra 29.775 de não-jovens. Na Itália, no ano avaliado (2003), ocorreram 73 homicídios entre jovens e 570 entre não-jovens. Na Europa, como um todo, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes fica em 1,2 jovens por grupo de 100 mil pessoas.
Em uma situação melhor do que a Itália encontram-se países como Cingapura (taxa total de homicídios em 100 mil habitantes de 0,3), República das Maldivas (0,3), Reino Unido (0,4), Japão (0,5), Malta (0,5), Noruega (0,6) e República tcheca (0,9). Junto com a Itália está a Suécia, também com uma taxa 1,1.
Já à frente do Brasil, portanto em pior situação, estão El Salvador, com uma taxa de homicídios total em 100 mil habitantes de 48,8, Colômbia (43,8), Venezuela (29,5) Guatemala (28,5) e Ilhas Virgens (28,4).
Estes dados fazem parte de um relatório divulgado em novembro do ano passado pelo Instituto Sangari, em parceria com a Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana (Ritla) e Ministério da Justiça. Salvo a notícia, amplamente divulgada, a informação não suscitou qualquer debate ou mobilização nacional.
A probabilidade de um jovem da América Latina morrer vítima de homicídio é trinta vezes maior que a de um jovem da Europa e acima de setenta vezes maior que a de jovens de países como a Grécia ou a Hungria, ou a Inglaterra, ou a Áustria, ou o Japão, ou a Irlanda. Isso não seria uma excelente pauta? Não seria motivo para a produção de cadernos especiais, documentários e outros produtos midiáticos voltados para a discussão e compreensão do fenômeno da violência urbana?
O carro, segunda arma mortífera
Os dados disponíveis permitem caracterizar a América Latina como região muito violenta também em termos de mortalidade por acidentes de transporte. Efetivamente, agregando os dados dos 83 países disponíveis por região ou continente, percebe-se que a América Latina, com sua taxa de 16,2 óbitos por acidentes de transporte para cada 100 mil habitantes, ultrapassa levemente a América do Norte – 16,1 – e de forma bem mais ampla a Europa (10,5) e a Ásia (11,8). Mas, semelhante à África, seus índices de vitimização juvenil são relativamente baixos: 1,19, o que implica que morrem proporcionalmente 19% mais jovens que não-jovens, enquanto na Europa essa proporção é de 77% e na Oceania de 124% maior. Por isso, a grande responsável pelas elevadas taxas regionais é a mortalidade não-jovem, que também supera, e em alguns casos amplamente, os índices das outras regiões.
Não obstante, a cada dia que passa e com o aumento do número de automóveis circulando (num país que incentiva o transporte privada em detrimento do transporte público), além de inúmeros homicídios, o carro virou a segunda arma mortífera nas mãos dos brasileiros. O número de mortes nas estradas federais durante o feriado de fim de ano cresceu 13,3% em relação ao mesmo período do ano passado. De 20 de dezembro de 2008 até o dia 04 de janeiro, 435 pessoas morreram ao longo dos 61 mil quilômetros de rodovias federais em todo o país. Nas festas de final de ano de 2007 para 2008, foram 384 mortos.
No mesmo período, o conflito no Oriente Médio tinha matado 500 palestinos. Se somarmos os homicídios mais os acidentes de trânsito, no período entre o final de 2008 e a primeira semana de 2009, teremos algo semelhante a três vezes o número de vítimas fatais em relação a Gaza.
Quando a mídia aprofundará o tema?
Em boa medida e salvo raras exceções, a grande mídia trata a violência urbana de duas maneiras: ou superexpondo o drama das nossas cidades em folhetins policiais que, na sua maioria, prestam para aumentar o sentimento de impotência da população e, no outro extremo, insuflando a idéia de se fazer justiça com as próprias mãos; ou glamourizando a criminalidade violenta, principalmente o tráfico de drogas, transformando tão sórdida e letal atividade em inesgotável fonte de renda. Vide o sucesso do filme Tropa de Elite – o qual, segundo notícias, virará seriado na maior emissora de TV brasileira e outros tantos produtos midiáticos derivados da deificação, pela mídia, da guerra urbana.
A TV Record está investido pesadamente numa minissérie, em dezesseis capítulos, sobre o tráfico de drogas no Rio. A emissora anuncia aos quatros ventos o requinte de sua mais ousada produção. A câmera utilizada para as filmagens custou 500 mil dólares. A TV do bispo Macedo não esconde de ninguém que vê nos dilemas urbanos da violência, na contemporaneidade, substrato para travar uma guerra de audiência com sua principal concorrente. Várias de suas novelas têm enfocado, e com sucesso, a questão da criminalidade urbana. Para uma emissora controlada por instituição religiosa caberia, no mínimo, uma pergunta: a (igreja) Universal estaria apostando na glamourização da violência, com a qual ganharia mais espaço e mais poder?
Na avaliação da ONU, apenas 10% dos homicídios em São Paulo e no Rio são levados ao tribunal. Em Pernambuco, essa taxa é de apenas 3%. Dos casos levados a julgamento em São Paulo, apenas metade acabam em condenação.
No estado do Rio de Janeiro, a polícia matou mais de 1,3 mil pessoas no ano de 2007, número que representa 18% de todos os assassinatos ocorridos no estado. Todos estes óbitos são descritos pelos dados da segurança pública como ‘resistência seguida de morte’. No estado de Pernambuco, cerca de 70% dos homicídios registrados foram praticados por grupos de extermínio, muitos dos quais contam com participação de policiais.
Os números de homicídios e mortes no trânsito, somado ao aumento constante no número dos suicídios, são responsáveis, anualmente, pela dizimação de cerca de 100 mil vidas de brasileiros.
A mídia, que em nosso país tem influência inquestionável sobre a opinião pública, não pode ficar alheia. Quando a mídia aprofundará essa temática? A pergunta que, ano após ano, continuamos fazendo…
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Do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (UFMG) e Núcleo de Direitos Humanos (Proex/PUC Minas)