Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Registros necessários sobre a cobertura

Ainda está por ser escrita a história das batalhas políticas que foram coroadas de êxito apesar da omissão/hostilidade da grande imprensa. Eu mesmo participei de três.


Em 1986, como único jornalista disposto a assumir a defesa pública da greve de fome dos ‘quatro de Salvador’ (militantes petistas detidos ao tentarem ressuscitar extemporaneamente a prática de assaltos a banco para financiar a revolução e alvos, na prisão, de arbitrariedades e de um complô contra sua vida), deparei com a situação kafkiana de que nenhum veículo da grande imprensa noticiava o que era, sem dúvida, um fato político de interesse jornalístico.


Cansei de enviar notícias, como as cartas da OAB e da Cúria Metropolitana de São Paulo, pedindo respeito para os direitos humanos dos prisioneiros. Cheguei até a escrever aos diretores-proprietários das empresas jornalísticas, alertando-os de que, com essa prática de blindagem, tornavam-se responsáveis por tudo de mal que viesse a acontecer.


Melhor sorte tive com os correspondentes estrangeiros, que seguiram critérios profissionais, despachando pequenas notícias a seus veículos.


Favorecimentos na anistia


Finalmente, um colunista honesto cumpriu com seu dever: o grande Newton Rodrigues, da Folha de S.Paulo, não só usou duas vezes seu espaço para abordar o caso, como encaminhou meu dossiê ao então ministro da Justiça Fernando Lyra, o qual pediu ao então governador baiano Waldir Pires que tomasse as providências de cunho humanitário cabíveis.


Os quatro, com a garantia oficial de que receberiam tratamento correto e não seriam mais alvos de retaliações da repressão clandestina (integrantes de órgãos de segurança inconformados com a redemocratização do país), saíram ilesos da greve de fome.


Em junho de 2004, quando a reparação concedida pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça ao jornalista/escritor Carlos Heitor Cony foi muito criticada na imprensa, iniciei uma cruzada pessoal contra os favorecimentos a celebridades e apaniguados nas decisões desse colegiado.


É que, desempregado, tido como idoso demais para o jornalismo e enfrentando terríveis problemas financeiros, eu contava com a reparação a que fazia jus (na condição de ex-preso político com lesão permanente decorrente de torturas) como tábua de salvação para reconstruir minha vida. E notei que os critérios da Comissão de Anistia para a priorização dos casos a serem julgados estavam sendo flagrantemente descumpridos.


O número 1 da lista, a condição de desempregado, nem sequer era levado em conta, para meu desespero. Era o que me favoreceria.


Desfecho tecnicamente correto


Apresentei queixas ao Ministério Público Federal, à Ouvidoria Geral da República, à OAB, à Anistia Internacional, às comissões de direitos humanos e de justiça do Congresso etc. A que produziu mais efeitos foi a primeira, culminando com uma recomendação à Comissão de Anistia no sentido de que passasse a cumprir suas próprias normas.


Mesmo sendo o único anistiando, dentre dezenas de milhares, a tomar medidas concretas para moralizar a atuação do colegiado (do qual nunca discordei em tese, só criticando as distorções do dia-a-dia), enfrentei novamente o mesmo problema: enviava mensagens e mais mensagens aos veículos, contatava os repórteres que faziam matérias sobre a Comissão, sugeria pautas, contestava colunistas e articulistas… em vão. Tudo era ignorado.


Pior ainda fez a CartaCapital, cuja repórter estruturou a partir do meu depoimento e dos entrevistados que lhe indiquei uma matéria de capa sobre a Comissão de Anistia. No fechamento, entretanto, foram suprimidas todas as referências ao meu nome. Dispus-me a brigar com a revista na seção de cartas, mas até isto me foi negado.


Bem diferente foi a repercussão na internet, onde consegui sensibilizar um número cada vez maior de cidadãos com senso de justiça. Quando meu julgamento foi finalmente marcado – e adiado em plena sessão por motivo inusitado (o relator alegou não haver tido tempo para redigir o relatório) –, saltou aos olhos a existência de um trâmite diferenciado e anômalo no meu caso.


Os apoios virtuais se avolumaram, começando a transbordar para a imprensa. Pessoas influentes passaram a fazer gestões em meu favor. E o processo acabou tendo o desfecho tecnicamente correto.


‘Coragem política e decência moral’


Foi um marco desta nova realidade, em que a internet é capaz de levar à vitória uma batalha política que a grande imprensa faz questão de ignorar.


A luta em prol de Cesare Battisti foi travada basicamente na internet, ao longo de 2007 e dos primeiros dez meses de 2008, enquanto a grande imprensa a ignorava ou minimizava.


A CartaCapital se destacou negativamente: quando mais difícil era obter apoios para a causa, produziu uma matéria tendenciosa, 100% alinhada com as razões do governo italiano, sem qualquer consideração pelo outro lado.


Ao apresentar Battisti como criminoso comum, afugentou pessoas que, se tivessem um quadro mais completo do caso, tenderiam a simpatizar com sua causa. Reforçou os preconceitos que, desde o compromisso histórico, a esquerda ortodoxa italiana dissemina a respeito dos ultras.


Só as revistas piauí e Caros Amigos concederam ao caso Battisti o destaque merecido nessa fase, dando voz à vítima das perseguições rancorosas do governo Berlusconi.


Mesmo assim, o trabalho infatigável do jornalista Rui Martins ia produzindo seus efeitos na internet, com seus textos sendo reproduzidos por portais e sites jornalísticos, além de disseminados nos circuitos de e-mails.


Em novembro de 2008, o Conselho Nacional para os Refugiados negou por 3×2 o refúgio humanitário para Cesare Battisti. Esta decisão, um cavalo de batalha para os italianos e os brasileiros alinhados com as posições italianas, deve ser relativizada: o ministro Tarso Genro confessou à Folha de S.Paulo ter instruído o secretário-executivo do Conare, Luiz Paulo Barreto, a, ocorrendo empate, dar o voto de minerva contra Cesare (‘Não quero que pensem que eu não tenho coragem política e decência moral para decidir um assunto conflituoso como esse’, disse o ministro).


Decisão soberana


O certo é que os cidadãos solidários a Cesare Battisti passamos a ver o recurso a Genro como a última chance de evitar-se a extradição do perseguido político italiano. O trabalho de redação de artigos e sua difusão na internet foi intensificado ao máximo, com a minha participação e de Laerte Braga, dentre outros.


Na semana decisiva, uma digna matéria de duas páginas da revista Época apresentou o assunto como se deve, sem viés ideológico, com todos os prós e contras expostos.


Mesmo assim, a consistente decisão de Tarso Genro, justificada de forma impecável num arrazoado de 12 laudas, foi sucedida por um verdadeiro rolo compressor midiático tentando forçar o recuo do governo brasileiro.


A destemperada e arrogante reação italiana foi literalmente encampada por O Globo, O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e o Jornal Nacional (na sua primeira abordagem do assunto, pois, quando ficou evidenciado o fracasso da articulação reacionária na mídia, voltou à sua habitual postura de bajular governos).


No olho do furacão, Rui Martins, eu e Laerte Braga reagíamos aos enfoques tendenciosos, provando que, pela Lei do Refúgio, Tarso Genro tinha pleno direito de decidir como decidiu; que era justa sua crítica às aberrações jurídicas cometidas pelo Estado italiano contra os ultras, em meio à onda de indignação causada pelo assassinato de Aldo Moro, gerando uma histeria punitiva em que foram atropelados os princípios mais sagrados do Direito; e que as autoridades italianas estavam flagrantemente atingindo a soberania nacional.


Coincidência ou não, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao dar um xeque-mate na questão (‘A decisão do Brasil neste episódio é soberana’, disse), foi bem na linha sugerida pelo meu artigo do dia anterior, intitulado ‘Somos um país soberano ou uma república das bananas?’, no qual escrevi: ‘Cabe ao governo Lula colocar as coisas no seu devido lugar, fazendo a Itália entender que não está lidando com uma república das bananas, daquelas que se borram de medo das potências centrais e estão sempre prontas para acatar ultimatos velados’ – ver aqui.


A posição de Gilmar Mendes


E as boas práticas jornalísticas continuaram sendo olimpicamente ignoradas.


Rui Martins mandou mensagem à Folha de S.Paulo contestando o editorial ‘Assunto da Itália’, principalmente por sua insistência em exigir que o Brasil acatasse sem reflexão alguma as decisões da Justiça de outros países (‘Pode haver divisões políticas dentro de um país, porém, por mais agudas que sejam, os contendores não podem recorrer ao argumento de uma superioridade jurídica de um julgamento estrangeiro… Esse ato de sobrepor as leis italianas às nossas seria uma afronta à nossa soberania’). Ignorada.Eu enviei carta à seção de leitores de O Estado de S.Paulo respondendo ao editorial ‘Decisão desastrada’, que questionei, dentre outros motivos por ter concedido ‘espaço descomunal’ à ‘choradeira’ e às ‘ameaças italianas’, sem, em momento algum, lamentar ‘as agressões às instituições brasileiras’. Ignorada.


Rui Martins lançou uma carta aberta a Mino Carta, chamando-o às falas: ‘Sua influência como editor da revista CartaCapital poderia ter sido bastante nefasta e significar para um homem, batido pela vida, em nada diferente dos `subversivos´ brasileiros que você tanto entendeu, o retorno à Itália na condição de um condenado a apodrecer na prisão’ (ver aqui). Mino a colocou como mero comentário no seu blog, não respondeu e depois tirou do ar.


Finalizando, a luta pró-Cesare deixa uma grande lição: a de que, mesmo na contramão da grande imprensa, hoje é possível vencerem-se batalhas políticas a partir da acumulação de forças na internet, preparando o terreno para a entrada em cena dos cidadãos influentes e da mídia convencional no momento decisivo.


E foi evitada a abertura de um precedente odioso, uma verdadeira cunha que o STF de Gilmar Mendes queria fincar na Lei do Refúgio, limitando a acolhida de perseguidos políticos estrangeiros apenas àqueles que não pegaram em armas na defesa de suas causas.É a mesma posição que ele já manifestou a respeito dos resistentes brasileiros: por piores que tenham sido o extermínio e as atrocidades cometidos pelos usurpadores do poder que governavam sob terrorismo de Estado, Gilmar Mendes nega aos militantes da luta armada o direito de se defenderem. Considera que quem respondeu ao fogo inimigo (em situação de extrema inferioridade de forças!) não passou de criminoso comum.


O Brasil entendeu de maneira diferente.


 


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Jornalista, escritor e ex-preso político, mantém blogs aqui e aqui