Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Intolerância religiosa? E a culpa da mídia?

Alguns dos profissionais mais corajosos de que se tem notícia foram jornalistas. Ao longo da História, eles desafiaram aristocracias e ditaduras, quase invariavelmente tombando mortos porque a palavra não podia ficar presa na garganta: era preciso denunciar e questionar aquilo que fazia mal ao cidadão. Curiosamente, ao mesmo tempo em que estufaram o peito para as balas letais dos poderes explícitos, eles silenciaram constrangedoramente perante o poder oculto da igreja.

Mas, se os jornalistas não estiverem à margem dos paradigmas e dos dogmas, como vai se pretender uma imprensa isenta ou independente? Já ficou mais do que provado que fiel não pode dirigir nem jornalões nem jornalecos, senão ele inibe a opinião dos articulistas e restringe a manifestação dos leitores, porque está a serviço de sua igreja sempre – isso é a condição ‘moral’ do fiel.

É difícil achar relevância prática para os assuntos religiosos, essa é que é a dura verdade. Parece até mesmo descabido que um jornal se ocupe de noticiar os passos do papa como se o destino da humanidade caminhasse de mãos dadas com o sacerdote polonês. O papa tosse, sai no jornal; o papa soluça, sai no jornal; alguém ao lado do papa espirra, também sai no jornal!

Ora, mas o que interessa se o chefe da Igreja Católica dormiu e acordou? O que deveria interessar mesmo aos jornais e pautar o sentido de ‘interesse coletivo’, sendo que estranhamente passa ao largo com breves notas e logo se esvazia, é que o Vaticano divulgou recentemente outra de suas cartilhas intolerantes e desta vez manifestou publicamente aquilo que a história já demonstrava: que a Igreja Católica menospreza a mulher e que a relega a ser inferior, restando-lhe se submeter – nesta ordem – a Deus, à Igreja e ao homem, para todo o sempre. Isso sim interessa a todos.

Omissão covarde

A mídia não precisa dar ressonância aos atos religiosos: a Igreja Católica já tem suas próprias formas de publicidade, pela pregação diária ou pelos abundantes boletins e jornalecos bancados por pastorais, dioceses e paróquias. E têm dado muito certo ao longo dos anos. Em vez disso, a imprensa deveria se revestir de porta-voz da sociedade: primeiro, resgatando os fatos históricos e oferecendo uma chance real para que todos os cidadãos tivessem acesso às verdades que cercearam os séculos, com todas as improbidades cometidas ou patrocinadas pelas igrejas; segundo, dando liberdade para que os próprios articulistas falem mais agudamente inclusive da intolerância religiosa; e, terceiro, ocupando as páginas dos diários com receitas culinárias, na falta de algo mais importante, e não com romarias e transferências de santas para cá e para lá – porque não é desse tipo de fato noticioso que necessitam os que desejam erguer um país.

A posteriori, também não adianta convocar pensadores e publicar longas teses sobre a intolerância que gera guerras: isso é o mesmo que colocar tranca de ferro em porta arrombada. Aliás, as autoridades religiosas sempre proferiram aos quatro ventos que os homens sem fé não podem ser bons, embora a história ensine que por trás das mais sangrentas batalhas e dos mais escabrosos genocídios da humanidade havia sempre as disputas religiosas.

Muito já se comentou que o Holocausto nazista teve uma omissão covarde – e decisiva – da Igreja Católica, que durante todos aqueles anos vergonhosos fingiu que não estava acontecendo nada. Também, pudera: Hitler estava dizimando os judeus que a própria Bíblia cristã classifica como ‘imundos’! O führer só fez o trabalho sujo. Ou não? E depois, uma das próprias Cruzadas do cristianismo dizimou cerca de 70 mil judeus em Jerusalém durante apenas três dias do ano de 1099. Por que a imprensa em geral não questiona mais incisivamente este tipo de coisa? Isso, sim, interessa a toda a humanidade, porque é somente pela compreensão dessas intolerâncias históricas que se pode almejar um futuro sem guerras e sem preconceitos para os nossos filhos.

Campanhas ‘difamatórias’

Por outro lado, as reportagens que denunciaram desmandos, crimes e protecionismos religiosos sempre acabaram oferecendo um ‘direito de resposta’ aos representantes do clero – muito mais por medo do reflexo na tiragem do veículo do que meramente por paridade de opiniões. No fim, graças à hábil força de manipulação dos fiéis, fica sempre o dito pelo não-dito: o repórter vai lá, investiga, colhe depoimentos e fecha a matéria; o veículo publica porque escândalos de qualquer tipo são garantia certa de grandes tiragens; mas depois a igreja vai para cima, as chefias das redações acabam se ajoelhando e terminam por abrir generosos espaços para a pregação cristã, onde fica então consumada a ratificação do poder onipresente da igreja.

Engraçado é que poucas pessoas se sentem ‘ofendidas’ quando a televisão transmite baixarias e informação inócua, quando as empresas de telefonia formam cartel em transmissão de voz e dados ou quando ainda os governos não fazem nada do que prometeram; mas a maioria fica simplesmente injuriada se os dogmas religiosos são questionados. Os cristãos, por sua vez, aceitam que você invada a casa deles, consuma toda a comida disponível, xingue a mãe e ainda chute o cachorro deles, mas não toleram jamais que se questione quaisquer termos daquilo no qual acreditam piamente. Enquanto isso, em nome de Alá ou do Deus que seja, malucos fanáticos amarram bombas na cintura e explodem tudo o que estiver ao alcance, até mesmo crianças inocentes. Para a igreja isso não deve ser muito importante, afinal em tempos inquisitórios todas as crianças nascidas de ‘bruxas’ eram atiradas à fogueira com a mesma veemência das mães e sem nenhum direito a contestação ou piedade.

Hoje inclusive espocam denúncias de abusos sexuais cometidos por pastores, padres e bispos contra crianças em todos os cantos do planeta – que não é quadrado, cabe lembrar, ao contrário do que desejavam as autoridades religiosas. Pois bem, o que a Igreja Católica faz nesses casos? Assume a culpa e pune rigorosamente? Não: abafa, simplesmente. Recentemente em Porto Alegre foi descoberto que um pároco abusava de uma menina de 11 anos. Os jornais noticiaram o fato e repercutiram no dia seguinte, mas no terceiro dia já havia somente uma pequena nota e o assunto se esgotou ali mesmo. Em compensação, a autoridade porto-alegrense do clero, arcebispo Dadeus Grings, tratou logo de eximir a culpa da instituição e conclamar os fiéis a que não permitam que a imprensa e outros setores da sociedade façam campanhas ‘difamatórias’ e de ‘perseguição’ à igreja. Fariseu é este Dom Dadeus, francamente! E vocês vão ver na próxima semana, quando ele não tardará a encher algum veículo de comunicação com o mesmo discurso surrado de sempre.

Túnel no fim da luz

Inacreditável é que entra ano e sai ano dezenas de novas publicações tomam conta das bancas do país, mas nenhuma pauta mais do que uma matéria superficial que vá contra os interesses da Igreja Católica (ainda que os interesses da Igreja Católica estejam embasados em suntuosas mentiras, como as falsas estatísticas contestando a eficácia da camisinha). Os articulistas, que quase sempre são funcionários dos veículos para o qual escrevem, atravessam os tempos de mãos amarradas, pois mesmo que quisessem fazer os seus questionamentos particulares: não podem infringir a linha editorial imposta pela direção ou pelas chefias imediatas das redações. Seria mais uma das tantas manifestações de pré-censura de algumas redações?

Agora, pasmem, para liquidar de vez com a esperança de uma mídia de melhor qualidade, religiosos de alguma vertente detectaram que precisam aumentar a presença do rebanho nos canais de imprensa e recomendaram que os pupilos estudem Comunicação e se formem em jornalismo. É possível imaginar o que se sucederá daí em diante? Se hoje os manifestos questionadores das condutas religiosas já são uma minoria absoluta, imaginem como será quando religiosos com diplomas de jornalistas estiverem inundando as redações. Além de ser um país de bacharéis, como bem lembra o Dines, o Brasil passará a ser um país de religiosos bacharéis.

Não bastasse o controle onipresente da Igreja Católica em tudo, ainda teremos formadores de opinião canalizando as discussões para a religiosidade dos cidadãos. Isso é o que eu chamo de um legítimo túnel no fim da luz, sob todos os aspectos.

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