Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O ‘jornalismo twitter’ não muda nada

A cobertura em tempo real e colaborativa do acidente com o avião que caiu no rio Hudson, em Nova York, na semana retrasada, motivou vários artigos e análises sobre o papel das chamadas ‘mídias sociais’ no trabalho jornalístico. Em geral, exultam e dão as boas vindas a algo que já ganhou o apelido de ‘jornalismo twitter’ – em referência à plataforma de microblogging que vem sendo usada por jornalistas e amadores para dar flashes informativos sobre eventos ainda em andamento.

(Aos que não conhecem, microblogging é um tipo de ferramenta da web que une o princípio do blog ao dos portais de relacionamentos, como o Orkut. Seus dois grandes diferenciais, porém, são a convergência – pode ser atualizado na web, por e-mail ou por celular – e o limite de cada post a 140 toques. O site Twitter, criado em 2006, é o paradigmático, mas também existem os menos conhecidos Jaiku [da Google] e o Plurk.)

Já havia acontecido algo parecido no final de 2008, quando ‘twitteiros’ em Bombaim ajudaram a compensar a falta de informações na mídia durante o seqüestro no Hotel Taj Mahal. A bola da vez, agora, foi chutada por Janis Krums, empresário de suplementos alimentares da Flórida. Ele teve a sorte (ou azar?) de estar junto ao rio na hora e ser o primeiro a divulgar uma foto dos passageiros sendo resgatados, tirada minutos após o acidente com o seu iPhone. A imagem foi enviada direto do aparelho, publicada no Twitter às 18h36 do dia 15/1 e começou a ser linkada e redirecionada. Nas primeiras quatro horas, o post somou 40.000 acessos.

Pouco depois, com o número de acessos crescendo em proporção geométrica, o servidor da plataforma entrou em colapso.

‘Névoa de bits’

A foto de Krums foi reproduzida nas emissoras de TV e websites de mídia e transformou seu autor em celebridade. Mais que isso, deu a deixa que (não) faltava para quem queria provar que o ‘jornalismo twitter’ é tendência inexorável. Na onda de exaltações, vêm asserções mirabolantes, como a de que ‘agora qualquer celular pode se tornar uma unidade de reportagem global‘, que o Twitter é herdeiro dos telex da AP, que é a face do ‘jornalismo cidadão turbinado, tomando Viagra e esteróides’, e de que a nova modalidade ‘está não apenas suplementando, mas suplantando‘ as mídias tradicionais, tanto a TV como a imprensa, além do estilo corporativo de se fazer jornalismo na web.

Será mesmo?

Não se coloca na berlinda o fato de que as novas tecnologias de informação e comunicação (NTICs) descentralizam o potencial de produzir conteúdo e fazem com que qualquer pobre mortal possa ser chamado de ‘jornalista cidadão’. Por ora, nem entremos na questão do diploma. Vamos apenas questionar que tipo de jornalismo e que tipo de cidadania o Twitter permite alcançar.

Muitas vezes, tais celebrações têm origem no contexto das sociedades pós-industriais, onde de fato já é realidade o acesso quase universalizado às tecnologias que permitem esse novo tipo de construção da notícia. Nas maiores cidades da Europa, da América do Norte, do Japão e da Austrália, é tão grande o número de aparelhos portáteis de comunicação circulando nas ruas que chega a criar uma ‘névoa de bits’ no ar. Qualquer esquina é passível de gerar notícia, pois há sempre uma câmera ligada apontando para ela. Neste ambiente hiper-coberto, realmente bastam só alguns segundos para que qualquer evento socialmente notável seja fotografado, filmado ou ‘twittado’, de local a internacionalmente.

Acesso difícil

A ‘névoa’, porém, não tem dispersão homogênea nem alcance global. Sim, é fácil fazer a cobertura de um acidente aéreo bem ao sul de Manhattan, onde a concentração de iPhones, smartPhones e blackberries – todos apetrechos com câmeras, teclados e acesso rápido e ‘pagável’ à internet – por metro quadrado é densa o suficiente. Mas tentemos imaginar quantos celulares haverá por perto para cobrir as dezenas de aviões que caem todos os anos no Congo (estes sim, sempre com mortes, ao contrário do caso nova-iorquino), com seus Tupolevs e Antonovs dos anos 1960 que continuam voando. E, destes, quantos terão conexão banda larga para enviar imagens ou vídeos em resolução ‘publicável’?

Definitivamente, não é o caso do Terceiro Mundo, que continua de fora da cobertura da imprensa em larga medida. Não se fez a NOMIC, não se alteraram os fluxos de informação e os países pobres, onde moram dois terços da humanidade, continuam longe das lentes das câmeras, sejam elas da CNN ou dos iPhones. Para o imenso Sul do planeta, o ‘jornalismo twitter’ não oferece mudança alguma.

Não é o caso do Brasil tampouco. Embora o país seja um dos líderes em ‘conectividade’ e uso de telefonia móvel, nem em São Paulo, nem no Rio de Janeiro a densidade da ‘névoa de bits’ se aproxima da de Paris, Londres ou Tóquio. Sim, hoje em dia o telefone celular está acessível e uma enorme parcela da população brasileira possui um ou mais deles. Mas alguém se pergunta se o aparelho ‘popular’, na média, é o que vem com banda larga, câmera de 2 megapixel e gravador de voz? E questiona quanto as operadoras cobram pelo acesso à web, em tempo ou volume de dados, se comparado às tarifas do Primeiro Mundo? E, mais ainda, alguém se lembra de perguntar quem são os indivíduos que têm poder aquisitivo para comprar (e usar!) um aparelho 3G fora do eixo Rio-SP, para ‘twittar’ a partir do sertão nordestino ou da nossa imensa Amazônia?

‘Fato’ e ‘acontecimento’

Como as respostas são conhecidas, sabemos que quem vai documentar o drama da seca ou das queimadas, por enquanto, são ainda as já existentes organizações de mídia com verbas para viagens e equipamentos convencionais, sediadas nos centros econômicos e políticos e alinhadas com interesses de anunciantes e elites.

Igual ao que acontece no resto do mundo.

Em segundo lugar, é preciso bater na mesma tecla que muitos apologéticos da tecnologia por vezes esquecem na hora de soltar seus fogos: o jornalismo tem muito mais funções além de reportar o factual. Isso é apenas uma delas. A análise, a interpretação, a contextualização e a correlação com outros fatos também fazem parte do trabalho jornalístico – seja em texto, em som, em vídeo ou em infográficos. Tudo isto exige muito mais que o máximo de 140 toques permitido pela ferramenta.

Exige ainda um distanciamento que a cobertura imediata e construída coletivamente (que é o caso das social media, colaborativas) não é capaz de prover. Pois é a práxis jornalística que marca a diferença entre ‘fato’ e ‘acontecimento’, como bem ressalta Muniz Sodré. Sem o trabalho de construção, conceituação e interpretação, sem a atribuição de sentido à notícia, não há mediação – há apenas midiatização. Sobram numa tela os nomes e números dispersos no calor da hora.

Desigualdades econômicas

O exercício da cidadania se baseia em um complexo processo de interação social que, por sua vez, exige informação qualitativamente elaborada. Quando se tem uma profusão de posts sobre os ricos e nada sobre os pobres, esse processo fica seriamente prejudicado. E, ironicamente, com esse tipo de cidadania o ‘jornalismo cidadão’ não está contribuindo. Existe consumo, só isso.

Mas, claro, isto ainda é suficiente para atrair curiosidade dos consumidores (não cidadãos) de informação, o que por si já basta a quem financia as operações de mídia, que é o mercado. O mesmo Muniz Sodré lembra que a principal mercadoria que se revende à publicidade é a atenção do público, não a compreensão. É suficiente captar a atenção para vender produtos, sem importar se alguém vai entender a notícia.

E isso, a foto de Krums, sem dúvida alguma, conseguiu.

De fato, o ‘jornalismo twitter’ pode habilmente elaborar, colaborar e ainda acelerar o processo de midiatização na sociedade, mas dificilmente trabalha pela mediação entre os diferentes atores, indivíduos e pedaços do mundo, que continuam separados por desertos de desigualdades econômicas – que, de virtuais, não têm nada.

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Jornalista e mestrando em Comunicação e Cultura pela UFRJ