Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A emissora da violência

Damasco – Hoje de manhã, enquanto preparava meu café e os ovos, liguei no melhor programa de televisão. Fui ao armazém ao lado comprar leite e o dono também já assistia ao programa; no bairro de Shaalan, onde tomei o café da manhã ontem, os fregueses tomavam sua sopa de feijão com os olhos grudados na tela. São milhões de pessoas, nesta região, que acompanham diariamente o programa.


O programa é o conflito em Gaza. Transmitido pela al-Jazira. Israel proibiu a presença de repórteres internacionais e equipes de televisão de Gaza e, por isso, a emissora do Qatar é uma das poucas agências internacionais de mídia que conta com um local de trabalho completo dentro da cidade de Gaza.


Mesmo que a CNN conseguisse fazer passar uma câmera pelos pontos de vigilância israelenses, seria difícil imaginar que produzissem algo semelhante ao que faz a al-Jazira – um drama constantemente diferente, vinte e quatro horas por dia, que joga a guerra na cara do espectador com todos os seus horrores e crueldade. É abertamente parcial e quase nunca mostra mortos ou feridos israelenses. Também é provocador e perturbador – de uma maneira em nada semelhante aos noticiários ocidentais. Seus telejornais mostram constantemente cadáveres sendo retirados da cena de uma explosão, ou entrevistas, em hospitais, com crianças mutiladas que lamentam a perda de parentes, ou dos pais – muitas vezes, mortos à sua frente.


A emissora muitas vezes anexa imagens de arquivo às tomadas ao vivo, entrelaçando entrevistas e montagens habilmente produzidas, numa narrativa devastadora a que você pode assistir do conforto de sua casa.


Contra sofrimento e morte


Trata-se de notícias sem qualquer pretensão de imparcialidade. Após acompanhar a cobertura feita do conflito de Gaza pela al-Jazira por vários dias, nunca vi uma entrevista ao vivo com um israelense, político ou civil. Na versão da al-Jazira, o conflito de Gaza tem apenas dois protagonistas: o exército israelense – uma força impessoal por tanques e aviões no mapa – e os civis palestinos, muitas vezes mostrados dando entrada em hospitais em macas improvisadas. Há poucos foguetes do Hamas e nenhuma família israelense. Não é difícil perceber o motivo pelo qual a al-Jazira é deliberadamente acusada de exacerbar a inimizade e instabilidade na região.


Porém, num sentido mais amplo, a resposta gráfica da al-Jazira ao estilo de jornalismo de uma ‘guerra sem sangue’ da CNN é uma crítica contundente à maneira pela qual nós vemos e falamos sobre guerra nos Estados Unidos. Sugere que uma cobertura de guerra sem sangue é o privilégio de um país longe do conflito. O tipo de noticiário da al-Jazira – que poderia ser chamado ‘jornalismo sangrento’ – aborda a guerra como ela é: uma perda brutal de vidas humanas. As imagens que mostram põem o espectador em contato profundo com a violência da guerra, o que as estatísticas jamais poderiam fazer.


A experiência de assistir à cobertura da al-Jazira de Gaza, para um cidadão norte-americano, significa compreender que ele não só se tornou alienado em relação à guerra, mas também à representação da guerra como algo concreto. Nós, cidadãos norte-americanos, estamos habituados a ouvir o som de artilharia pesada, de metralhadoras e bombas em filmes de ação e vídeo games. Aqui no noticiário, entretanto, esses sons parecem inteiramente fora de lugar.


É possível argumentar que a al-Jazira usa imagens de violência contra civis para alimentar o ultraje do público contra Israel. E isso pode ser verdade. Ao mesmo tempo, no entanto, essas imagens transmitem o sofrimento humano e a morte de civis e colocam-se veementemente contra eles – e, ao fazê-lo, alimentam o ultraje contra a própria guerra.


A cada dia, um novo ‘episódio’


Seja o espectador um apreciador ou um crítico da forma pela qual a emissora apresenta as notícias, dificilmente se pode negar que a al-Jazira faz, acima de tudo, um excelente trabalho de televisão. O controle que emissora faz da forma é um dos motivos que lhe permitiu resistir à marginalização – e até acumular prestígio – apesar das severas críticas por parte do governo norte-americano e de outras fontes de mídia ocidentais. Observar os sons e as imagens, dia após dia, produz um efeito poderoso e totalmente alheio à estrutura do conflito de que faz a cobertura.


A sofisticação da coreografia com que a al-Jazira faz sua cobertura de Gaza vai muito além de uma representação dramática da violência. Assistir à guerra na al-Jazira significa ser capturado numa nova interpretação do tempo e tornar-se parte de uma ‘comunidade imaginada’ por ela definida. A emissora utiliza um gerador de caracteres com um fluxo permanente de texto abaixo da imagem principal. À esquerda, uma espécie de caixinha conta os dias da guerra em fontes vermelha e branca. Assim, ao assistir ao noticiário, o espectador é apresentado a um novo calendário no qual o início da guerra é o princípio do tempo. O gerador de caracteres na parte inferior da tela inclui uma estatística do custo humano da guerra, divulgando o número de mortos e feridos.


Os produtores parecem ter aprendido muito com a televisão norte-americana, na qual uma tomada concreta pode ser construída e anexada a uma narrativa irresistivelmente atraente, com personagens, conflitos pessoais e um fundo dramático. A cada dia, os espectadores aqui na Síria, assim como através do mundo árabe, preparam-se para assistir a um novo ‘episódio’.


A cada dia, a narrativa da guerra é construída e devolvida para si própria, reforçando a familiaridade dos espectadores com o elenco de personagens: Hamas, o rebelde combativo; Israel, o tirano belicoso e cruel; e a população civil de Gaza – principalmente, as crianças feridas –, surpreendida no meio do conflito. A ‘comunidade internacional’ é um modelo de ineficácia e fica atolada em inúmeras comissões e reuniões. Em meio a tudo isso, desfilam os correspondentes da al-Jazira, com seus coletes à prova de balas.


Omissão da violência não é neutra


O correspondente da al-Jazira na cidade de Gaza entra freqüentemente com informações ao vivo no início do cessar-fogo diário de três horas, quando o exército israelense deveria depor as armas para permitir a entrada de ajuda humanitária em Gaza. Durante essa tomada, o correspondente invariavelmente ‘flagra’ israelenses continuando a bombardear durante o período de cessar-fogo – e invariavelmente manifesta sua surpresa e desespero pelo que vê, mesmo que a cena em questão tenha sido gravada na véspera ou mesmo dois dias antes.


O suspense ensaiado, os protestos de surpresa – tudo cheira a um teatro cínico. Mas é difícil contestar o material gravado propriamente dito: houve diversos relatos de ataques e raids israelenses durante o cessar-fogo diário. Façam como fizerem, os correspondentes da al-Jazira transmitem acontecimentos que as outras emissoras não transmitem. Nesse nível, o que estão fazendo é único, em termos de jornalismo.


Perverso como possa parecer, a cobertura da guerra pela al-Jazira é satisfatória, da mesma forma que um programa de humor ou um seriado de ação pode ser satisfatório. Não é tanto pela surpresa que o espectador continua voltando, mas talvez por sua familiaridade com as imperfeições e erros das personagens. Além do que ele sabe que sua experiência do drama não é individual, mas coletiva. Você entra num café, num armazém ou numa lavanderia em Damasco e é quase certo que encontrará um televisor acompanhando o noticiário de 24 horas por dia sobre o conflito de Gaza pela al-Jazira. Existe solidariedade, mas também uma sensação de conforto em acompanhar a realidade sinistra da guerra como um todo.


Para mim, é impossível imaginar espectadores norte-americanos preocupando-se tanto com uma guerra que eles próprios não estejam lutando – principalmente se apresentada no estilo CNN, com relatórios intermitentes de estatísticas, diplomacia e comunicados militares. Os críticos da al-Jazira poderiam argumentar que a emissora tem muito a aprender com a objetividade tão valorizada e defendida por meios de comunicação de renome da mídia ocidental. Mas a mídia norte-americana também tem algo a aprender: ao mostrar a verdadeira violência da guerra, você consegue que o espectador compreenda a natureza da guerra. Os escrúpulos das nossas emissoras para com a violência fazem com que mantenhamos a morte e o sofrimento humanos à distância, tais como uma conseqüência abstrata dos fatos. Se é com os indivíduos que o espectador se preocupa, então a omissão da violência não é uma posição neutra.


Guerra de palavras


O refrão mais fascinante da cobertura que a al-Jazira faz do conflito de Gaza não é, no entanto, o noticiário propriamente dito, mas uma curta montagem, intitulada ‘A Guerra em Gaza’, que a emissora intercala entre os blocos de notícias. A montagem é refeita a cada dia, com a incorporação de novas imagens e a reorganização de outras, anteriores, e a inserção de imagens da guerra e imagens de protestos internacionais contra a guerra.


As imagens mudam diariamente, mas duas delas aparecem sempre. Uma é de uma menina, com o rosto coberto de sangue, chorando por entre a fumaça de uma explosão recente. Um braço de adulto conduz a menina para fora da cena. O corpo do adulto está cortado e tudo o que se vê é o rosto da menina congelado por angústia e dor. A segunda imagem recorrente é a que fecha cada edição da montagem: cenas de manifestações de rua pró-palestinas por todo o mundo, terminando com o close-up de um pôster desafiador com as seguintes palavras em inglês: ‘Stop the Holocaust in Gaza’. Aí, a montagem vai desaparecendo lentamente para um fundo avermelhado no qual é possível perceber a imagem de uma criança cujos olhos moribundos estão voltados para o céu. A montagem passa a impressão, renovada a cada dia, de um ultraje maciço contra a guerra – não apenas no mundo árabe, mas também na Europa. Entretanto, aqui mesmo, em Damasco, as próprias manifestações de rua a que assisti não parecem envolver uma massa de pessoas comparável à da cobertura da guerra pela televisão.


A palavra ‘Holocausto’ naquele pôster (mihraqa, em árabe) também é uma provocação e faz parte de um vocabulário deliberado utilizada pela al-Jazira para descrever a guerra de Gaza: ‘agressão’ (`udwan), ‘invasão’ (ihtilal) e ‘genocídio’ (ibada). Se a objetividade fosse um critério, a forma pela qual os apresentadores da emissora discutem a guerra os desqualificaria totalmente, enquanto jornalistas. Mas é também essa a forma pela qual meus vizinhos sírios vêem o jornalismo norte-americano, que junta indiscriminadamente árabes, muçulmanos e rebeldes políticos, chamando-os ‘terroristas’.


Visão pouco promissora


Aqui em Damasco, os limites éticos desta guerra de palavras são muito concretos. Ontem, fui a um bairro comercial a poucas quadras de minha casa para comprar alguns mantimentos. No principal setor comercial, notei que alguns armazéns tinham colocado pôsteres de propaganda antiisraelense. Muitos deles tinham uma bandeira norte-americana queimando com uma estrela de David e uma suástica no meio. Em vários lugares, à entrada, os proprietários haviam pintado a bandeira israelense para que seus fregueses pudessem pisá-la. Na frente de um armazém, o dono colocara um pôster que dizia: ‘Norte-americanos não são bem-vindos’. Ironicamente, o dono dessa loja também é o senhorio de vários de meus melhores amigos norte-americanos em Damasco.


É possível compreender por que muita gente acredita, sinceramente, que a própria al-Jazira contribua para estes ódios regionais. Mas, após assistir intensamente à programação da emissora por vários meses, posso afirmar, com toda honestidade, que ouvi seus apresentadores abordarem uma discussão ou uma matéria em termos anti-semitas ou anti-americanos. E a al-Jazira tem um dos programas de jornalismo mais ecumênicos que já vi em televisão: chama-se Press Tour e vai ao ar de manhã – mostra imagens de jornais dos Estados Unidos, da Europa, do mundo árabe e (significativamente) de Israel, e traduz trechos dos artigos mais importantes.


Desde o início do atual conflito de Gaza, a al-Jazira aumentou sua cobertura da imprensa israelense para um segmento noturno no qual um apresentador faz um resumo dos principais artigos dos jornais israelenses, com imagens legíveis do texto, em hebraico, que está traduzindo. Muitos desses artigos apóiam abertamente a guerra e condenam o Hamas e alguns deles até condenam a cobertura que a al-Jazira faz da guerra. Para avaliar o que isso tem de extraordinário, basta imaginar um âncora de um telejornal norte-americano resumindo, artigo após artigo, jornais de Teerã, Mossul ou mesmo Paris.


De certa forma, é esse o paradoxo do jornalismo de guerra da al-Jazira: é flagrantemente político, mas faz-se acompanhar por uma curiosidade concreta de conhecer outras perspectivas. E também faz o espectador desejar algo mais: uma emissora de televisão com a coragem de mostrar as imagens da guerra tal como faz a al-Jazira, mas com a integridade de fazê-lo a serviço da paz, e não a serviço de um dos lados. A violência das imagens, por mais desagradáveis que sejam, seriam um trunfo para o combate do indivíduo à violência e para a compaixão humana contra ódios facilmente ateados.


Talvez então, da próxima vez que for comprar verduras no meu bairro em Damasco, não veja suásticas ou bandeiras norte-americanas queimando, e sim, fotos de civis feridos – tanto israelenses, quanto palestinos. Infelizmente, no entanto, a visão que tenho de minha sala neste momento não parece muito promissora.

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Estudante pós-graduado pela Universidade Harvard, vive na Síria e pesquisa as relações entre muçulmanos e cristãos naquela região do Mediterrâneo