Amuado com os governos do México e do Peru, cobrado pela União Européia por conta da violação sistemática dos direitos humanos na ilha, preocupado com o problema da sua própria sucessão – e sempre se esquivando do fantasma de uma invasão americana –, Fidel Castro por certo não precisava de mais dores de cabeça.
Mas, pelo jeito, tão cedo não vai relaxar: além de sua certamente conflitiva presença (ainda não confirmada) na 3ª Cúpula dos Chefes de Estado da América Latina e Caribe e União Européia, no fim de maio, em Guadalajara (México), em junho serão lançados dois novos livros com tudo para azedar mais o clima político da região e mexer fundo com o mito revolucionário fidelista: La autobiografía de Fidel Castro (Planeta, 876 pp.), do jornalista e escritor cubano dissidente Norberto Fuentes, e Dancing with Cuba (Random House, 304 pp.) da jornalista e escritora mexicana Alma Guillermoprieto.
O assunto veio à baila com a publicação, no sábado (15/5), no suplemento cultural Confabulario, do jornalão mexicano El Universal, de fragmentos dos dois livros – além do texto de outro inimigo incansável, o escritor cubano radicado no México Eliseo Alberto. E para fechar a edição em grande estilo, Confabulario publica quatro poemas inéditos do poeta e jornalista Raúl Rivero, em alguma época bardo favorito do sistema, condenado no ano passado a 20 anos de prisão sob a acusação de ter cometido, por suas abertas críticas à falta de liberdade de expressão no país, ‘delito intencional e consumado de atos contra a independência ou a integridade territorial do Estado’.
‘Era a asma’
A julgar pela contundente e minuciosa denúncia sobre a construção dos alicerces do regime cubano, ou seja, como Castro erigiu e consolidou seu poder ao longo de 45 anos, incluindo ‘seu primeiro assassinato’ e outras ‘passagens misteriosas’ de sua vida, o livro de Fuentes pinta como best-seller garantido nos próximos meses, sobretudo pelo currículo teoricamente insuspeito do autor: aos 61 anos, hoje exilado nos Estados Unidos, ele foi, nos tempos primevos da Revolução, um dos intelectuais queridinhos da corte, amigo íntimo dos irmãos Castro Ruz, Fidel e Raúl, e colaborador da dupla em várias ‘operações secretas’.
De fato, seria a partir de 1968 que Fuentes (qualificado por Gabriel García Márquez como ‘o único grande escritor que não escreve’, preferindo dedicar-se de corpo e alma ao jornalismo puro, a reportagem) entraria na lista dos menos cotados do regime ao publicar um livro, Condenados del Condado, que o fez cair em desgraça junto ao exército revolucionário. E, à época, só não foi além de uma prisão domiciliar porque o amigo ‘Raulito’ o salvou na última hora. Mas o estrago já estava feito: havia virado persona non grata ao sistema.
Daí para a frente, mesmo portando no peito a ‘Medalha da Cultura Nacional’, Fuentes foi se afundando, indefeso, numa rede de intrigas, suspeitas, ameaças e prisões, até que, em 1994, graças a pressões internacionais, recebeu permissão para deixar o país, levado então pelas mãos do próprio García Márquez. A única coisa que ele diz agora, em seu exílio americano, é que escreveu o livro por ‘puro tédio, por não ter nada novo para fazer’.
Declaração meio blasé, que na verdade oculta passagens corajosas, atrevidas, para fazer tremer nas bases os até hoje adoradores do mito Che Guevara. O seu livro contém, por exemplo, uma descrição impressionante, com algumas afirmações e hipóteses no mínimo estranhas, das fraquezas físicas e emocionais do jovem médico argentino convertido em guerrilheiro cubano, tido como o herói romântico da Revolução, no final supostamente abandonado pelo velho companheiro Fidel, um pragmático de carteirinha, e acabando por isso assassinado covardemente nos fundões selváticos da Bolívia por gente muito abaixo de seu nível como homem e idealista revolucionário.
Trecho do livro:
‘Era um coitado. Mas a verdadeira biografia desse coitado que todo mundo conhece como Che Guevara e que se chamava Ernesto Guevara de la Serna é dificilmente compatível com a do personagem criado pela Revolução cubana. Sei que para todos vocês será um travo amargo reconhecer que levam 40 anos prostrados de admiração por um homem que só existe como propaganda.
‘(…) Ele forçava a mão, queria chegar mais e mais longe, e ao mesmo tempo se metia em situações extremas, coisas que fazia como um desafio a si mesmo. Muitos anos depois – e como resultado direto de minhas observações sobre o Che – entendi que a força de suas convicções e estoicismo diante do perigo e sua vontade de ferro nada tinham a ver com autênticas convicções, estoicismo ou vontade. Era a asma. É uma coisa consubstancial com os asmáticos. Esse afogar-se permanente curte o doente para resistir a qualquer onda de medo e com muita consistência.’
Dançando na guerra
Jornalista e escritora respeitada não só no México como na Europa e Estados Unidos, a mexicana Alma Guillermoprieto, autora de quatro livros de reportagens sobre uma sofrida, corrupta e violenta América Latina, com perfis de gente famosa da região (Evita Perón, Mario Vargas Llosa, o subcomandante Marcos, Che Guevara e Fidel), e finos ensaios sociopolíticos na revista The New Yorker, publica agora, em inglês, seu primeiro romance, Dancing with Cuba, com versão em espanhol no prelo.
No livro, Alma faz um retrospecto romanceado dos seis meses que passou em Cuba, em 1969, dando aulas de dança, com base no que aprendera em Nova York com Martha Graham, Merce Cunningham e Twyla Tharp, mestras da dança moderna.
Muito jovem na época, a personagem narradora do livro, uma estrangeira desconcertada, vive uma experiência ao mesmo tempo complexa e fascinante: como se comportar diante da idolatria generalizada a Fidel Castro e o idealismo revolucionário de então? Como resistir a fervorosa sedução das armas engatilhadas aos gritos de ‘Patria o Muerte!’? Aos poucos ela vai intuindo por que, na escola oficial de dança, os espelhos eram banidos, proibidos: ‘Num país que brandia a bandeira da liberdade, os artistas não tinham espelhos nas academias (…) para que os rapazes nem sequer tenham a liberdade de controlar sua própria imagem’. Mas no Instituto Psiquiátrico Nacional, os pacientes ‘tinham direito a contemplar seu reflexo e deleitar-se com o espetáculo de si mesmos’.
Em conversas com os colegas de ofício, cubanos, ela pergunta se a Revolução tem seus artistas prediletos e os nem tão prediletos, e quais são. Na resposta, sente a própria perplexidade e ambivalência dos jovens dançarinos diante da grandeza histórica e política da Revolução, ao longo do caminho aviltada, desviada de seus propósitos iniciais, brutalmente encurralada pelo Império vizinho, entregue a politicalha preconceituosa dos burocratas de plantão:
‘Tem gente boa, é claro, mas ainda não souberam compreender a Revolução e nem ver em Fidel o grande homem que ele é. Mas é bom não falar dessas coisas porque senão nos metemos em sérios problemas. (…) Os que mais sofreram somos nós que nos dedicamos às artes. Sempre me pergunto o que aconteceria se todos nós, artistas do país, subíssemos numa balsa gigantesca e remássemos até os confins do mundo. Eu lhe garanto que nem um único membro do honorável Politburo do Partido Comunista Cubano nem do Comitê Central derramaria uma lágrima. Nem mesmo perceberiam! E eu vou ficando. Porque se abandonasse este processo, durante o resto da minha vida teria que viver com a consciência de não passar de uma titica. Esta Revolução é a única coisa que deu algum sentido a minha vida…’
‘Panela da melancolia’
Escritor premiado (Premio Internacional Alfaguara de Romance 1998), Eliseo Alberto há muitos anos vive e trabalha, discretamente, na Cidade do México, de onde às vezes cutuca o regime cubano da melhor maneira que sabe: escrevendo, além de romances, duros artigos sobre as dores do exílio, com uma faceta particular: o que significa ‘inventar a pátria a cada dia’.
Em seu artigo para o suplemento Confabulario (sábado, 15/5), depois de fazer um histórico crítico da revolução do ponto de vista da participação dos intelectuais no processo, seu pai Eliseo Diego incluído, inicialmente cooptados e bajulados e depois repudiados e acusados de ‘diversionismo ideológico’, Eliseo fala na condição de um dos milhares de ‘perdedores’ – aqueles forçados a abandonar Cuba por ‘expressar o que pensam, por escrever suas amarguras, por fazer reportagens com base no que o povo cochicha nas ruas’.
Bom escritor que é, ele recheia seu texto com passagens melancólicas, as vezes líricas, no fundo tristes e amargas:
‘Os que continuamos perdendo, é claro, somos nós que sobrevivemos no México, Caracas, Madri, Miami, Estocolmo, Paris e Buenos Aires, e inventamos a pátria a cada dia numa banquinha de rua que vende carne de porco com molho de nostalgia ou num prato de ajiaco [sopa espessa, ao molho de ají — um tipo de alho —, que mistura vegetais e carnes] cozinhado em banho-maria com camote [espécie de batata-doce do México] amarelo no lugar de boniato [batata-doce cubana] e sons de Compay Segundo ou uma canção de Silvio Rodríguez ou Celia Cruz ou Pablo Milanês, tudo misturado na panela da melancolia – nós, os errantes, os homens e mulheres sem país, sem casas, sem pais, sem túmulos. Não existe cultura que sobreviva a tanto sofrimento. Quem será o próximo? Não nos deixem muito tempo sozinhos.’
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Jornalista e escritor brasileiro radicado no México