Posicionamentos mais consistentes, pouco afeitos às ilusões ideológicas, ao uníssono da mídia e à pompa das cerimônias não se deixam surpreender nem dobrar pelas ondas de entusiasmo fácil que movimentos como o da troca da guarda na presidência dos EUA costumam suscitar. Contra o posicionamento allegro ou irrefletido de tanta parte da mídia, despontam tomadas de posição mais críticas. Foram alertadas por ‘atos falhos’ ou declarações temerárias, apressadas e, quem sabe, mesmo ansiosas, de Barack Obama no discurso de posse. Ele fecha, com efeito, um parágrafo afirmando que os Estados Unidos já estão ‘preparados para liderar novamente’…
Ele podia assim consolar os saudosistas, fortemente sacudidos pela crise – econômica e internacional – dos Estados Unidos, mas e os reflexos disso na consciência dos críticos do poder norte-americano no mundo, que não são tão poucos assim? Esta já não é, aliás, uma maneira de reafirmar o passado que viu, sempre, os Estados Unidos olhando para a ‘democracia dentro’ do próprio território e impondo, nos termos de um célebre editorial do jornal Le Monde, ao tempo da guerra do Vietnã, o ‘fascismo fora’?
O novo presidente e suas assessorias não podiam imaginar que esta linguagem só serviria para redespertar a suspeita, muito legítima, de que Obama é um ‘novo’ que necessitará de forças demiúrgicas para resistir às miras e reflexos muito mecânicos do combalido e já velho, mas ainda tão poderoso, império norte-americano?
‘Liderar novamente’…
O escritor britânico Thimoty Garton Ash pergunta: ‘E se o mundo não quiser mais isso? E achar que a América perdeu muito de seu direito moral de liderar e não tem mais o poder que tinha e que, assim, estamos caminhando para um sistema global multipolar?’ Mas já não é isto que o ‘mundo’ está dizendo há um bom tempo?
Os ‘lapsos’ de Obama, de marca tão conhecida, repisam, com efeito, o unilateralismo que sua eleição parecia ter sepultado. Eles arranham e ferem as esperanças multilaterais que contribuíram para mobilizar os votos que lhe deram a vitória. É isto, enfim, o que dizem seus primeiros críticos de proa. Um deles, Richard Haas, presidente do Council on Foreign Relations, reafirma que ‘a era da unipolaridade norte-americana acabou e Obama herda um mundo no qual o poder em todas suas formas – militar, econômica, diplomática e cultural – é mais igualmente distribuído como nunca’.
Para os críticos mais atentos, um precoce e tenaz autismo pareceu manifestar-se, portanto, já nas primeiras falas do novo presidente. É o caso de Peter Beinart, outro estudioso das relações externas dos EUA. Ele aponta para a explosão da ‘bolha de poder’ que vê, no campo militar, ‘movimentos guerrilheiros selvagens e espertos sugando o nosso dinheiro, nossas vidas e membros’; na economia, a escassez de recursos’, que impede os USA de ‘pagar para transformar o Oriente Médio quando nós estamos afundados no débito e tentando recuperar ainda o (nosso próprio) middle west; e no campo ideológico, ‘a dúvida sobre se a democracia seja mesmo o destino inevitável da humanidade’!
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Cientista político, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, autor de A história pela metade, cenários de política contemporânea, Editora da Universidade Federal de Viçosa, 2008